Saul Leblon - A velha senhora, a turbulência cambial, está de volta à América Latina


Ela nunca viaja sozinha.    


Em geral, faz-se acompanhar de sua inseparável dama de companhia, a instabilidade política.



Divisores importantes da história continental tiveram na alavanca cambial uma de suas forças de impulsão.



O colapso da dívida externa dos anos 80 foi um caso.



A paulada nos juros promovida  pelos EUA, em 1979, reeditou o dólar forte, barateou as importações americanas, baixou a inflação do país (que chegara a 12%) e compensou a sangria comercial, decorrente da elevação dos preços do petróleo, em 1973.



Resolveu o problema americano.  



Mas alteraria toda a estrutura  de passivos das economias  em desenvolvimento.



As taxas de juros norte-americanas  saltaram de um dígito para mais de 20%.



Foi o tiro de largada para a crise da dívida externa que desencadearia um efeito dominó com a quebradeira do México, Polônia, Brasil etc.



Empréstimos tomados a taxas  flutuantes, súbito tornar-se-iam impagáveis.



Teve um aspecto positivo:  a margem de manobra de ditaduras militares, como a brasileira, estreitou-se a tal ponto que terminariam abandonadas por amplos segmentos de seus patrocinadores empresariais.



O que se vive agora é uma  paulada de novo tipo, desfechada pelas  mesmas mãos.



O colapso das sub primes em 2008 produziu a maior crise do capitalismo desde 1929.



Os EUA foram, de novo, o epicentro.



Trilhões de dólares foram despejados então pelo Fed, o BC norte-americano,  para salvar o sistema financeiro hegemônico no planeta.



Bem ou mal, o resgate teve êxito.



Mas a guerra cambial denunciada pelo Brasil, que  valorizou as moedas dos países emergentes e danificou seu equilíbrio de preços, custou caro.



No caso brasileiro, danificaria adicionalmente sua planta industrial que já vinha –há uma década - afogada em importações barateadas pelo poder de compra artificial da moeda.



Com o ensaio de recuperação em marcha nos EUA,  encerra-se a temporada de dinheiro barato.



O mundo – sobretudo o mundo em desenvolvimento - pagará novamente o tranco do ajuste.



O desafio do câmbio veio para ficar na agenda da América Latina.



Erra quem imagina que estamos diante de uma questão técnica. Câmbio e inflação são almas gêmeas, por exemplo.



A taxa de câmbio define qual será o poder real de compra dos salários.



Ela qualifica o trânsito para um novo ciclo econômico; em certa medida antecipa seus vencedores e perdedores.  



Determina a inserção da economia no quadro mundial, o papel da exportação e da indústria (onde ela existe) e o tipo de emprego e de mercado interno que se deseja incentivar.



É por conta dessas implicações delicadas que mesmo governos progressistas usufruíram passivamente do confortável ciclo de alta liquidez internacional que valorizou o câmbio e o poder de compra local nos últimos anos.



No Brasil, na Argentina e alhures, de certa forma, a valorização da moeda nacional tem sido um recurso protelatório  para amortecer a disputa interna pela riqueza.



Importações baratas funcionam como uma baldeação  no conflito de classes.



O custo macroeconômico desse atalho – vide esgarçamento industrial - é elevado e tem um limite de elasticidade incontornável.



O elástico parece ter chegado ao fim para a Argentina. E de certa forma para toda América Latina.
O que vai pesar agora é o saldo dos trunfos acumulados no ciclo  que se encerra.
Quem usou a folga cambial como um risco calculado e  construiu uma nova correlação de forças, na qual os desfavorecidos  ganharam  maior musculatura  para disputar o passo seguinte da história, sai na vantagem.



Quem deflagrou um novo ciclo de investimentos em infraestrutura,  capaz de elevar a produtividade e a competividade da economia e, dessa forma, gerar um nova matriz de acesso à renda, substitutiva ao artifício  cambial, tem margem de manobra para continuar crescendo.



De certa forma foi isso que Dilma afirmou no seu discurso em Davos , quando nomeou as conquistas dos últimos anos:



“Estamos nos tornando, por meio de um processo acelerado de ascensão social, uma nação dominantemente de classe média:  36 milhões de homens e mulheres  foram tirados da extrema pobreza recentemente;  42 milhões  ascenderam à classe média, que passou de 37% da população para 55% da população, apenas entre os anos a partir de 2003 até hoje. A renda per capita mediana das famílias brasileiras cresceu 78% no mesmo período. Nos últimos três anos, nós geramos 4,5 milhões de novos empregos. Criamos um grande mercado interno de consumo de massas. Criamos um imenso contingente de cidadãos com melhores condições de vida, maior acesso à informação e mais consciência de seus direitos. estamos conscientes da necessidade de avançarmos para uma nova etapa (...)O nosso objetivo é melhorar estruturalmente a economia brasileira, tornando-a cada vez mais competitiva”



O Brasil avançou nessa travessia sem perder o controle da inflação, nem das contas fiscais.



O país vem promovendo desde 2012 um lento – ainda que ziguezagueante -  ajuste em seu câmbio.



Estima-se que o Real tenha se desvalorizado cerca de 30% desde então.



A meta do governo é atingir e estabilizar uma paridade de R$ 2,45 por dólar.



O patamar é considerado suficiente para reverter o núcleo duro dos desequilíbrios  na economia brasileira: o definhamento da sua industrialização.



O setor industrial encontra-se esmagado nas pinças de um turquês feito de importações baratas e exportações corroídas pela bola de neve do baixo poder competitivo e baixo incentivo ao investimento tecnológico.



Em 2012 o déficit comercial da indústria (diferença entre manufaturas importadas e exportadas) foi de desastrosos US$ 105 bilhões. Suficiente  para anular  o superávit  comercial conquistado na ponta dos embarques agrícolas.



A industrialização é a grande usina irradiadora de produtividade em uma economia.



O Brasil tem uma planta fabril diferenciada entre os chamados emergentes  - completa, produz  o ‘prego e a máquina de fazer  prego’. Ou seja, bens de consumo e bens de capital.



Se cuidar de preservá-la terá o fermento da riqueza necessária à universalização da cidadania.



Ingressa nesse novo ciclo, ademais, com um poderoso air-bag de reservas cambiais, da ordem de US$ 375 bi.



Está  fresca ainda a tinta da crítica conservadora ao governo Lula  por  acumular reservas ‘excessivas’, segundo a contabilidade  midiático-ortodoxo.



Hoje, é esse ‘excesso’ que  impõe  respeito aos mercados especulativos.



O poder de intervenção do Estado brasileiro não é desprezível: a dívida externa do país  é inferior ao volume das reservas acumuladas pelo setor público.



Embora o passivo externo total (inclui empréstimos inter-companhias das  multinacionais, ademais de aplicações de curto prazo etc) seja quase o dobro das reservas, a hipótese de uma fuga global  capaz de contaminá-lo,  é improvável.



Desencoraja-a  adicionalmente  o mercado de massa  citado por Dilma.



É ele que  atrai um fluxo regular de investimentos produtivos da ordem de dezenas de bilhões de dólares por ano  -cerca de US$ 60 bi em 2013.



O conjunto  tem sustentado o equilíbrio das contas externas,  apesar dos ascendentes  rombos no saldo comercial e de serviços: em 2013 ele atingiu US$ 81,3 bi (3,6% do PIB); em 2012 foi de US$ 54,249 bilhões (2,41% do PIB).



Um ajuste cambial bem sucedido, que estabilize a paridade em R$ 2,45 –como quer o governo--  ajudará a desmontar  essas armadilhas  e  a desbastar a nova matriz de expansão que a sociedade cobra: crescimento com serviços de qualidade e justiça social.



A volatilidade cambial em curso na América Latina, porém, dificilmente poupará fronteiras caso se agrave.



A Argentina, por exemplo, é o principal cliente de vários setores industriais do país.



Mecanismos de mercado – desvalorizações sucessivas--  destinados a corrigir o câmbio cobrarão um preço alto do bolso dos assalariados  argentinos.



Em última instância é o salário real que se deteriora para devolver competitividade externa à economia - reações políticas são previsíveis em uma espiral  de desvalorizações selvagens.



O poder financeiro internacional não pode ser responsabilizado pela omissão política de seus alvos.



É desconcertante que, após uma década de fastígio das commodities, a América Latina tenha perdido a oportunidade  de construir um fundo comum de reservas, capaz de estender uma rede de apoio regional em momentos tensos como esse.



Felizmente, uma semente dessa cepa foi plantada na reunião dos BRICS de setembro do ano passado, em São Petersburgo.



O grupo formado por Brasil, Rússia, Índia, China e África do Sul criou um fundo comum de reservas de divisas.



Um instrumento de coordenação e autodefesa cambial para fazer frente à turbulência inerente aos sinais já emitidos então pelo Fed , de que reduziria as injeções de liquidez destinadas a reaquecer a economia americana.



Trata-se de um caixa para prover liquidez em casos de retração das linhas de crédito internacionais. Ou queda dramática de investimentos, bem como mitigar o efeito de ataques especulativos.



As reservas somadas dos Brics superam os U$ 4,3 trilhões – uma base mais do que suficiente para respaldar qualquer iniciativa de autodefesa.



Ademais das cifras, importa reter o simbolismo político dessa iniciativa.



Trata-se de introduzir um novo personagem no monólogo através do qual os mercados financeiros tem ditado as ordens no mundo.



Para que as economias em desenvolvimento deixem de ser o quintal pró-cíclico dos impulsos predadores, é necessário dispor  de uma  retaguarda capaz de amortecer a reação adversa dos mercados e o pânico financeiro propagado pelo 'jornalismo especializado' (em servir aos mercados).



É sobre essa retaguarda que a reunião de setembro do ano passado começou a falar.



Mais que nunca, é hora de a América Latina ouvir.

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