Acredite é a mais pura verdade.
Só quem tem de 50 anos para cima é que lembra do que vou contar.
Anos a fio, a avenida Marquês de Sapucaí em setembro-outubro começava a receber as arquibancadas para o Carnaval.
Eram feitas de tubos, se não me engano sempre com uma empresa chamada Mills.
Depois, até abril, seguia-se o desmonte.
Anos a fio, milhões e milhões gastos no monta-desmonta.
Brizola tinha assumido o Governo do Rio de Janeiro em março de 1983.
E, óbvio, a menor de suas preocupações era o carnaval de 1984.
O Estado estava falido, e o governador biônico anterior tinha deixado uma bomba-relógio: a paridade dos aposentados, que até então recebiam muito menos do que os servidores da ativa.
Paridade que começava – já adivinharam quando? – justamente no primeiro mês de governo do primeiro governador eleito pelo voto depois da ditadura…
O baque e tanto na folha de pagamentos, resolvido com a criatividade possível: o pagamento, que era no início do mês passou para o final e os cargos comissionados – perto de 15 mil – a seres preenchidos, ficava retidos na burocracia real e na inventada, porque Brizola passou a só nomear quando o indicado tinha currículo completo, inclusive com foto 3×4, o que adiava, adiava…e economizava um ou dois salários.
Não bastasse isso, o Banco do Estado tinha acabado – dias antes da posse de Brizola – de ser forçado a assumir o aval dos empréstimos – impagáveis – feitos para construir o Metrô do Rio de Janeiro.
E como desgraça pouca é bobagem, ainda nos víamos às voltas com uma onda de saques, feita por provocadores e alastrada com as condições de extrema miséria do nosso povão. Não apenas aqui, mas também em São Paulo, onde botaram abaixo as grades do Palácio dos Bandeirantes.
Agosto e setembro chegaram e os preparativos do carnaval seguinte estavam no seguinte impasse: ou reeditávamos a insana roubalheira de anos ou…ou nada,porque que diabos íamos fazer com um evento daquele porte?
O máximo que sabíamos fazer era comício…
Aí é que entraram a maluquice genial de Darcy Ribeiro, a ousadia insana de Brizola, a genialidade de Oscar Niemeyer e o low-profile de um engenheiro calculista chamado José Carlos Sussekind, que era quem tinha de fazer acontecer os delírios da trinca.
Ele, uma vez, me contou que o “Doutor Oscar”, como ele e todos chamávamos o velho, projetou um hangar de de concreto, com um vão livre aparentemente inviável. “Mas Doutor Oscar, este vão é grande demais…” “Isso é problema seu , Sussekind”…
Brizola, algumas vezes, descreveu aquilo: “Olha, Brito, se quatro anos atrás, no exílio, algum camarada me dissesse que eu iria ser governador do Rio de Janeiro, eu já despachava o índio como sonhador. Mas se me dissessem que eu ia ser governador do Rio de Janeiro e minha primeira grande obra ia ser uma passarela de carnaval, eu chamava alguém de lado e dizia: interna, porque este índio é muito louco…”
Mas o índio não era tão louco, não é?
A Passarela do Samba foi da maquete á realidade em exatos 110 dias.
Sabe Deus como, porque o final do ano foi chuvoso e atrapalhou demais a fase das fundações, já complexa porque o terreno era pouco sólido e, ali em baixo, passava um rio.
Mas como a maioria das estruturas era pré-moldada, fora dali, e apenas os suportes laterais e intermediários era concretados no local, a coisas de fato aconteceram.
No dia a dia – ainda não havia essa preocupação com nepotismo – quem tocava a obra era o arquiteto João Otávio Brizola, turrão e marrento, sob a orientação – e de vez em quando os gentilíssimos trancos – de Sussekind, que apertava as empreiteiras onde lhes doía: nos pagamentos, que não saíam sem a obra andar.
Mas o desafio de engenharia não era nada perto do desafio político.
Brizola passou a ser tratado como um louco pela mídia, a obra não iria sair e era uma inutilidade.
A charge aí em cima, publicada pelo O Globo, era apenas um pequeno retrato da sabotagem.
Brizola era o Odorico Paraguassu e o Sambódromo o cemitério de Sucupira, jamais inaugurado por falta de mortos, como mostra a imagem da primeira página do jornal, guardada pelo querido amigo Ápio Gomes.
A passarela ia cair.
Quando não caiu, disseram que ninguém conseguiria ouvir o samba, por causa do eco.
Que a pista ia afundar, porque havia – e há – um rio passando abaixo.
E, pasmem, a Globo abriu mão dos direitos de transmissão. O Carnaval do Rio não ia passar na TV.
Os ingressos encalharam, acredite se quiser.
Brizola, então,convocou todos os secretários, presidentes de empresas públicas, assessores e maçanetes de todo o calibre para uma reunião, no auditório do Instituto de educação, na Tijuca.
E transformou todos em vendedores de ingressos.
Cada um tinha uma cota para vender, senão, rua.
E a coisa andou. A recém criada TV Manchete assumiu a transmissão, seu maior sucesso de público.
Às vésperas do Carnaval, perguntaram ao senhor Carlos Átila, então porta-voz do General João Figueiredo, o que ele achava da Passarela do Samba.
Átila não respondeu, mas cantarolou uma velha marchinha de Emilinha Borba, dos anos 50: “tomara que chova, três dias sem parar”.
Não choveu, a Passarela lotou e o povo desceu das arquibancadas em delírio, desfilando com a Mangueira o seu inesquecível “Yes, nós temos Braguinha” e o seu “é no balancê-balancê”…
30 anos depois, os Sambódromos se espalharam pelo país, um sucesso.
Onde não tem, pululam as falcatruas feito o banheiro de ouro do Dudu.
Nenhum deles, porém, com a generosidade de, fora do carnaval, abrigarem salas de aula de uma escola para cinco mil crianças.
Generosidade que, tenho a impressão, tiraram do Sambódromo do Brizola, do Darcy e do Niemeyer, porque eles não gostam de escola pública.
Eu gosto, foi ela que me trouxe aqui.
Fui apenas duas vezes ao sambódromo, por dever profissional.
Não gosto de carnaval, mas embora doente do pé não sou ruim da cabeça e sob toda a exploração comercial do carnaval, sei da alegria autêntica daquelas centenas de milhares de pessoas que, nas arquibancadas ou na pista, desfila por ali.
Já escrevi sobre isso hoje: sem alegria e improvisação, não vamos a lugar nenhum.
Não que seriedade e planejamento não sejam importantíssimos, essenciais.
Mas é preciso ter sempre, dentro da gente, um índio louco, muito louco, destes de internar.
Porque não haverá no mundo – perguntem ao Sussekind – engenheiro capaz e transformar sonho em realidade se não houver a massa etérea do sonho como matéria- prima do concreto.
Quando nos tonamos idiotas da objetividade, já matamos os melhor de nós.
Eles tentam sempre fazer isso. Que jamais os ajudemos.
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