Tentei descrever para ela o que entendo por “tocar o chão”; e agora abro o papo aqui. Escrevo de coração para registrar e ouvir de vocês sobre esse processo que para mim infelizmente ainda é muito raro. Vou focar no contexto de uma relação de casal, mas é bom manter em mente que isso se aplica a todas as outras relações, entre amigos ou em uma empresa, por exemplo.
Na real, precisaríamos discutir coisas bem mais básicas. Se você pegar as conversas em cima da mesa da cozinha, da mesa de uma organização ou de uma prefeitura, todos nós estamos discutindo coisas muito avançadas, como se já estivéssemos tocando o mesmo chão. Mas não estamos. Não temos clareza alguma sobre nossa humanidade comum, sobre qual vida vale a pena, sobre nossos sonhos, visões, prioridades coletivas, sobre quais os melhores jeitos de nos ajudarmos… Nada disso nasce quando operamos nos extremos do “rebanho” ou do “cada um por si”.
Primeiro, volto ao problema que já conhecemos, mas incrivelmente ainda não atacamos diretamente (talvez por que sempre achamos que os problemas são externos). Depois falo sobre o chão.
Acima do chão
Onde estamos quando brigamos e nos agredimos? Acima de nossas cabeças, suspensos, flutuando, como que em um daydreaming em frente ao outro. Um dos sinais de que uma pessoa está perturbada é a intensificação do autocentramento, pode notar: a pessoa só fala sobre si mesma e se torna incapaz de entender o mundo do outro. Ou seja, ela quase para de enxergar, como diria Humberto Maturana. Ela perde contato com a realidade.
Se nossa base mais profunda de contato são sentimentos e conversas reativas, isso parece lindo quando vamos rapidamente de “Que tesão” para “Eu te amo”, mas não demora para causar muita dor assim que surge alguma situação fora da bolha romântica de casal, assim que a vida bate na porta do quarto e diz “Oi, vi que vocês estão se divertindo, mas to aqui.”
Sem a brisa da realidade e sem a lembrança corporal de alguma conexão genuína com os olhos do outro, facilmente nos distraímos pelo conteúdo das histórias, nos sentimos encurralados pela enxurrada de argumentos, pela lista de problemas e exigências de mudança. Tentar pacificar a situação dentro dessa operação discursiva é inútil: contra-argumentamos até cansar (no melhor dos casos) ou até alguém explodir em violência.
Uma conversa reativa só piora a situação. Não dá para andar sem tocar o chão. Mas como é que se começa um outro tipo de conversa?
No chão
As crises que já vivi foram os melhores momentos para descobrir a importância de tocar o chão, de novo e de novo — não me refiro a uma série de “conversas sérias”, mas a uma atitude que transforma o modo de nos posicionarmos e nos relacionarmos.
Vejo dois grandes momentos quando calha de duas pessoas começarem a realmente se tocar. Primeiro, um momento de desistência, de ver que não vai dar certo seguir daquele jeito. E depois enfim o momento do chão.
Apesar de não refletir bem a realidade, pode ser útil descrever o processo de modo didático para localizar as várias ações envolvidas.
1) Aterrisamos depois de tanto esvoaçar por argumentos, histórias, lembranças, projeções, fatos. Da mente exteriorizada, da narrativa que supervaloriza cada cena (“Você disse isso, eu respondi assim, você estava olhando para a esquerda, uma semana antes ela agiu assim, o email dizia que, me explique o que isso significa…” ), reentramos no corpo. Em vez de olhar para fora, nos inserimos de volta como construtores daquela experiência: “Tá doendo aqui, tô tenso, com respiração travada, olhando as coisas de tal posição, agitado…”
Ser sincero não é vomitar todos os pensamentos e emoções nas quais grudamos, como se fossem certezas da alma. Ser sincero é admitir que estamos confusos, desequilibrados, sem clareza alguma do nosso mundo interno.
2) Desistimos da urgência em chegar a alguma resolução, a algum acordo ou teoria sobre como as coisas deveriam ser. E isso não significa cair em relativismo vale-tudo ou em libertarianismo (“sou livre, vivo sem regras”), nem nada do tipo. Significa apenas desafrouxar certezas e fixações, caso contrário são elas que nos tiram do chão. Ou melhor, significa se dispor a isso — só essa disposição já nos une. O sinal de que a magia começou a operar não costuma ser algo dito, mas um silêncio, um grande não saber.
“Se realmente quisermos nos comunicar, devemos desistir de saber o que fazer.”
—Pema Chödrön
3) Ao parar de impor nosso jogo, nos recostamos e reconhecemos a coerência da fala do outro,validamos por inteira sua experiência de realidade, ainda que ela possa estar baseada em um grande engano ou percepção delusória. Se queremos ajudar o outro, a primeira coisa é entrar na loucura do outro sem chamá-lo de louco, reconhecer o orgulho sem identificá-lo como orgulhoso, e assim com qualquer perturbação.
4) Assim que aterrisamos, ainda é grande o impulso de voltar aos fatos e histórias, mas de novo e de novo começamos a puxar um outro tipo de conexão, cuja base é mais simples, descomplicada, quase infantil. É uma fala emocional, como se os olhos e a respiração pudessem dizer:
“Você quer ser feliz. Eu quero ser feliz. Eu não ganho nada quando você sofre, você não ganha nada quando eu sofro. Ninguém está contra ninguém. Estamos no mesmo barco. Eu também quero que essa aflição acabe.Meu sonho é tal… Qual é seu sonho? Faz bem seguir juntos nessa proximidade atual? Se faz sentido, como podemos seguir? Eu também não sei bem como fazer. Tais e tais casais estão com problemas parecidos. Quer avançar nisso também?”
É tão ridiculamente óbvio que a gente quase sempre pula essa parte. E sem partir daí eu acho impossível atravessar um conflito.
5) A gente não precisa perguntar, mas nesse ponto qualquer pessoa diz “Sim”. Se ainda estamos dizendo “Não” com o corpo, um contra o outro, ainda não chegamos à terra. No ponto mais comum, universal, fundamental, no coração da vida, não dá para dizer “Não”. Mesmo quando vamos nos separar, primeiro dizemos “Sim, queremos a mesma coisa, estamos no mesmo barco” e depois “Não quero seguir assim”.
Não é uma cadeia argumentativa que nos leva do “Não” ao “Sim”. Não é tampouco um novo hábito ou macete. É mais um jeito de respirar, de se posicionar, de colocar a vida inteira nesse treinamento de abertura. Quando isso acontece, está lá, transparente, o outro vê: não é mais uma questão de concordar ou discordar.
Caso contrário, pode lembrar: ao fim de uma conversa cheia de frases de impacto, saímos sem levar palavra alguma. Apenas a (des)conexão emocional segue sob a forma de um corpo equilibrado ou contraído. Uma palavra só chega a nós de verdade, só é ouvida e lembrada, quando há algum “Sim” de base.
6) O processo crucial acontece quando descobrimos um olhar sereno, em nós e nos outros, para que o próprio corpo se lembre assim que algum olho começar a se revirar durante um conflito. Ganhamos um ponto de referência, um lugar sutil de partida e de retorno, para onde vamos sempre que desejamos falar de coração.
Eis o chão! Alegria! Deveríamos fazer uma festa para marcar essa passagem, algo muito mais importante do que o casamento.
Não tomamos refúgio no outro, porém. Tomamos refúgio no chão do outro, que é o mesmo chão de qualquer pessoa, essa base pacífica e generosa, incapaz de produzir jogos negativos. E dá para fazer isso sozinho, quieto num canto, pacificando a mente antes da esposa voltar do trabalho.
Tocando o solo, enfim somos tocados. É como se saíssemos da bolha autista e começássemos asincronizar nossos movimentos com cada momento, em vez daquela ansiedade de tentar pisar antes do chão chegar ao pé.
O chão é um lugar de extrema vulnerabilidade e ao mesmo tempo o lugar de maior potência. Uma fala a partir daí move qualquer pessoa. Não é pouca coisa: estamos com os pés cravados na realidade.
Um voto sutil
Já sofri bastante em fim de namoro. Não pelo que ela fazia, mas pela visão dela como monstro, pela sensação de ser atacado a cada movimento dela. Só parava de sofrer nos breves momentos em que ficava óbvio que ela estava tão confusa quanto eu, que precisava de ajuda tanto quanto eu. Nesse contexto, tocar o chão é como fazer um voto sutil de seguirmos como parceiros, seja lá o que isso signifique naquela relação. Não um voto de se manter casado ou sócio ou amigo ou inimigo ou estranho pra sempre, mas um voto de seguir junto como for melhor.
Para isso, precisamos identificar o que nos une, encontrar pelo menos um sonho comum. E não apenas com pessoas próximas… Você reconhece algum sonho partilhado com estranhos que passam ao seu lado no meio da rua?
Melhor ainda se esse sonho vier com uma parte inabalável. Sonhar com um casamento longo é perder contato com a realidade. Sonhar com o florescimento dos outros e com nosso próprio florescimento já é algo possível e inabalável. Se houver uma possibilidade de fazer isso por meio de uma empresa ou de um casamento, ótimo, mas que isso não seja 100% do sonho.
Claro, vamos oscilar bastante, mas podemos fazer um voto como o do lobisomem para a sua amada: “Eu não quero te fazer mal. Se eu começar a te fazer mal, me amarre, estarei fora de mim, me ajude.”
Toda vez que o outro nos maltratar, é hora de ajudá-lo, não de devolver a agressão. Por isso gosto tanto dessa frase quem vem da tradição cristã, atribuída a Jesus: “Pai, perdoai-os porque eles não sabem o que fazem.” Eu a traduziria como: “Relaxe, não culpe: eles não sabem onde estão, quem são e nem como conseguir o que desejam. Estão confusos. Precisam de ajuda.”
Depois tudo fica mais fácil
Para encararmos a louça suja ou o fio enrolado (brigas, olhos revirados, surtos, acontecimentos caóticos), precisamos de alguma familiarização com a louça limpa, o fio solto: olhos serenos, coração aberto, respiração desobstruída, confiança na bondade humana. Se passamos muito tempo sem isso, perdemos qualquer ponto de referência de lucidez no outro e logo o confundimos com as aflições que manifesta. Seus olhos revirados agora parecem ser os mesmos olhos que se abrem ao acordar e se fecham ao dormir, todo dia, ao nosso lado.
Tocando o chão, de novo e de novo, aprendemos a criar e cultivar relações sem perder o contato com a realidade. Quanto mais nos familiarizamos com nosso próprio coração livre e com essa dimensão de sabedoria nos outros, mais conseguimos nos aproximar da sujeira, dos obstáculos, das aflições, dos preconceitos, de todo tipo de negatividade e escuridão.
Tocando o chão, qualquer situação se torna trabalhável, plástica, aberta, não tão sólida e inescapável assim. Brota uma imensa paciência. E energia para seguir.
Não é que os problemas parem de surgir. Provavelmente eles vão surgir com ainda mais força, já que agora não estamos mais fugindo. A diferença é que agora temos uma espécie de pacto: não importa o que surgir, a pior coisa que podemos fazer é deixar que uma aflição tenha o poder de nos jogar uns contra os outros. Sem culpados, aparece mais nítida nossa responsabilidade coletiva.
O solo das aflições é o mesmo solo de todas as qualidades positivas, disponíveis a qualquer um. Não é só a merda que nos iguala. Sempre que tocamos o chão, o céu se abre para todos.
Comentários no chão
Você já teve conversas que tocaram o chão? Poderia descrever como foi?
Vamos continuar nos comentários. Acho que ainda precisamos falar sobre tocar o chão em outros âmbitos além do relacionamento de casal: negócios, política, jornalismo, educação, espiritualidade, arte, internet…
o lugar | transformação coletiva
No lugar, várias das práticas, artigos, conversas e relatos no fórum estão ligados a esse treinamento de tocar o chão. Se você tem vontade de participar deste espaço online (e muitas vezes presencial) com gente de todo canto do Brasil, é só vir por aqui →
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GUSTAVO GITTI
Professor de TaKeTiNa, autor do Não2Não1, colunista da revista Vida Simples, tutor no CEBB São Paulo e coordenador do lugar. Interessado na transformação causada pelos caminhos ancestrais do ritmo e do silêncio. Seu site: www.gustavogitti.com
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