Hildegard Angel: É meu dever dizer aos jovens o que é um Golpe de Estado

- A ditadura é um Estado que quase todos temem - 

Dizer a vocês, jovens de 20, 30, 40 anos de meu Brasil, o que é de fato uma ditadura.
Se a Ditadura Militar tivesse sido contada na escola, como são a Inconfidência Mineira e outros episódios pontuais de usurpação da liberdade em nosso país, eu não estaria me vendo hoje obrigada a passar sal em minhas tão raladas feridas, que jamais pararam de sangrar.
Fazer as feridas sangrarem é obrigação de cada um dos que sofreram naquele período e ainda têm voz para falar.
Alguns já se calaram para sempre. Outros, agora se calam por vontade própria. Terceiros, por cansaço. Muitos, por desânimo. O coração tem razões…
Eu falo e eu choro e eu me sinto um bagaço. Talvez porque a minha consciência do sofrimento tenha pegado meio no tranco, como se eu vivesse durante um certo tempo assim catatônica, sem prestar atenção, caminhando como cabra cega num cenário de terror e desolação, apalpando o ar, me guiando pela brisa. E quando, finalmente, caiu-me a venda, só vi o vazio de minha própria cegueira.
Meu irmão, meu irmão, onde estás? Sequer o corpo jamais tivemos.
Outro dia, jantei com um casal de leais companheiros dele. Bronzeados, risonhos, felizes. Quando falei do sofrimento que passávamos em casa, na expectativa de saber se Tuti estaria morto ou vivo, se havia corpo ou não, ouvi: “Ah, mas se soubessem como éramos felizes… Dormíamos de mãos dadas e com o revólver ao lado, e éramos completamente felizes”. E se olharam, um ao outro, completamente felizes.

Ah, meu deus, e como nós, as famílias dos que morreram, éramos e somos completamente infelizes!

A ditadura militar aboletou-se no Brasil, assentada sobre um colchão de mentiras ardilosamente costuradas para iludir a boa fé de uma classe média desinformada, aterrorizada por perversa lavagem cerebral da mídia, que antevia uma “invasão vermelha”, quando o que, de fato, hoje se sabe, navegava célere em nossa direção, era uma frota americana.
Deu-se o golpe! Os jovens universitários liberais e de esquerda não precisavam de motivação mais convincente para reagir. Como armas, tinham sua ideologia, os argumentos, os livros. Foram afugentados do mundo acadêmico, proibidos de estudar, de frequentar as escolas, o saber entrou para o índex nacional engendrado pela prepotência.
As pessoas tinham as casas invadidas, gavetas reviradas, papéis e livros confiscados. Pessoas eram levadas na calada da noite ou sob o sol brilhante, aos olhos da vizinhança, sem explicações nem motivo, bastava uma denúncia, sabe-se lá por que razão ou partindo de quem, muitas para nunca mais serem vistas ou sabidas. Ou mesmo eram mortas à luz do dia. Ra-ta-ta-ta-tá e pronto.
E todos se calavam. A grande escuridão do Brasil. Assim são as ditaduras. Hoje ouvimos falar dos horrores praticados na Coreia do Norte. Aqui não foi muito diferente. O medo era igual. O obscurantismo igual. As torturas iguais. A hipocrisia idêntica. A aceitação da sobrevivência. Ame-me ou deixe-me. O dedurismo. Tudo igual. Em número menor de indivíduos massacrados, mas a mesma consistência de terror, a mesma impotência.
Falam na corrupção dos dias de hoje. Esquecem-se de falar nas de ontem. Quando cochichavam sobre “as malas do Golbery” ou “as comissões das turbinas”, “as compras de armamento”. Falavam, falavam, mas nada se apurava, nada se publicava, nada se confirmava, pois não havia CPI, não havia um Congresso de verdade, uma imprensa de verdade, uma Justiça de verdade, um país de verdade.
E qualquer empresa, grande, média ou mínima, para conseguir se manter, precisava obrigatoriamente ter na diretoria um militar. De qualquer patente. Para impor respeito, abrir portas, estar imune a perseguições. Se isso não é um tipo de aparelhamento, o que é, então? Um Brasil de mentirinha, ao som da trilha sonora ufanista de Miguel Gustavo.
Minha família se dilacerou. Meu irmão torturado, morto, corpo não sabido. Minha mãe assassinada, numa pantomima de acidente, só desmascarada 22 anos depois, pelo empenho do ministro José Gregory, com a instalação da Comissão dos Mortos e Desaparecidos Políticos no governo Fernando Henrique Cardoso.
Meu pai, quatro infartos e a decepção de saber que ele, estrangeiro, que dedicou vida, esforço e economias a manter um orfanato em Minas, criando 50 meninos brasileiros e lhes dando ofício, via o Brasil roubar-lhe o primogênito, Stuart Edgar, somando no nome homenagens aos seus pai e irmão, ambos pastores protestantes americanos – o irmão, assassinado por membro louco da Ku Klux Klan. Tragédia que se repetia.
Minha irmã, enviada repentinamente para estudar nos Estados Unidos, quando minha mãe teve a informação de que sua sala de aula, no curso de Ciências Sociais, na PUC, seria invadida pelos militares, e foi, e os alunos seriam presos, e foram. Até hoje, ela vive no exterior.
Barata tonta, fiquei por aí, vagando feito mariposa, em volta da fosforescência da luz magnífica de minha profissão de colunista social, que só me somou aplausos e muitos queridos amigos, mas também uma insolente incompreensão de quem se arbitrou o insano direito de me julgar por ter sobrevivido.
Outra morte dolorida foi a da atriz, minha verdadeira e apaixonada vocação, que, logo após o assassinato de minha mãe, precisei abdicar de ser, apesar de me ter preparado desde a infância para tal e já ter então alcançado o espaço próprio. Intuitivamente, sabia que prosseguir significaria uma contagem regressiva para meu próprio fim.
Hoje, vivo catando os retalhos daquele passado, como acumuladora, sem espaço para tantos papéis, vestidos, rabiscos, memórias, tentando me entender, encontrar, reencontrar e viver apesar de tudo, e promover nessa plantação tosca de sofrimentos uma bela colheita: lembrar os meus mártires e tudo de bom e de belo que fizeram pelo meu país, quer na moda, na arte, na política, nos exemplos deixados, na História, através do maior número de ações produtivas, efetivas e criativas que eu consiga multiplicar.
E ainda há quem me pergunte em quê a Ditadura Militar modificou minha vida!




3 comentários:

  1. Santa Catarina03 novembro, 2014

    Amigos blogueiros,

    precisamos, assim como fizemos na campanha política, divulgar a realidade da época do regime militar para que essa geração que não viveu aqueles momentos negros, saiba o que foi a ditadura brasileira.

    Eles precisam ser alertados do comportamento de nossos ditadores, a manipulação midiática, a corrupção governamental, enfim tudo deverá ser utilizado.

    Felizmente temos a internet ao nosso lado, pois se dependessemos da mídia, já estaríamos vendo os tanques na rua.

    Vou começar a levantar hoje mesmo informações em sites responsáveis e iniciar tal tarefa.

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  2. Só uma canalhice profunda endeusa e deseja uma ditadura militar; não entro mais nessa onda de desinformação da juventude, a internet está ai para isso mesmo, para driblar a mídia e clarear as verdades, uma pessoa de 23 ou 25 anos de idade que defende os ditadores nos dias de hoje não é tão desinformada assim, defende uma intervenção militar por saber exatamente o que vai acontecer depois, já tem no DNA o ímpetos dos calhordas.

    Irresponsabilidade mesmo e imensa está nos líderes dessa nossa desbaratinada e cretina oposição, que ficam em silêncio vendo uma parte do circo pegar fogo... e FHC e Aécio são os pontas de lanças desse enredo, principalmente esses dois, no fundo defendem um golpe militar puro e simples, para eles essa é única maneira de tirar o PT, Lula e Dilma do Planalto.

    O erro do PT, desde Lula, foi ter caído nessa conversa fiada de “conciliação” e “republicanismo” com a direita brasileira, foi ter acreditado que ao manter em postos chaves do governo federal os remanescente do tucanato iriam ter paz, foi ter acreditado que um simples controle remoto seria capaz de neutralizar o poder infame de manipulação e fabricação de ódio contra o partido e seus simpatizantes e membros... Dilma, ao emplacar na SECOM a Helena Chagas talvez tenha dado um dos maiores tiros no pé na sua vida política, colocou numa área chave do governo uma egressa do serpentário da Rede Globo... o fim desses ânimo golpistas também passa por isso: uma autocrítica do PT, da Dilma e do Lula com relação a esse embate com essa imprensa, pra lá de confessadamente golpista, e uma guinada de 180º no tocante ao relacionamento com a população (informações... informações... informações... Dilma, informações direto da sua boca e sem os intermediários dessa mídia porca) e com os movimentos sociais.

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  3. O que nos resta é continuar a luta pela democracia, sempre,

    mesmo com mochilas nas costas carregadas de feridas

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