A vaidade tem um preço

E muitas vezes paga-se caro por ela
por A. Capibaribe Neto
Na verdade, a vaidade, em si, não custa tanto assim, mas o que vem junto no mesmo pacote e o que ela vai causando em seu desfile aparentemente exuberante. Assim como alugo, vez por outra, ouvidos amigos, provo, igualmente, da necessidade de praticar a paciência para escutar confissões que aparentemente diminuem o peso daquele que carrega uma dor, seja ela qual for. Estava a mais de onze mil metros de altitude, sobre o deserto da Arábia, em um voo de Istambul para Kathmandu, no Nepal, nessas coincidências que juntam duas pessoas aleatoriamente por conta da vizinhança determinada pelo número dos assentos. Em momentos assim, sou de pouco falar, de puxar conversa para ver se o tempo passa mais depressa por conta desses voos longos demais.
E estava ali, ainda me acomodando na poltrona do corredor, vendo o que havia para leitura de bordo, essas coisas, quando um cidadão me ofereceu um jornal. Não era bem isso que eu tinha em mente, mas aceitei, e nesse aceitar, quando vi, estávamos conversando sem ao menos nos apresentarmos. Descobrimos algumas coincidências entre nós que foram abrindo portas, abrindo as janelas da vida de cada um. Tinha filhos que já quase não via, tinha netos, tinha histórias e essas histórias davam conta de casamentos, separações, alegrias, decepções. Descobrimo-nos sentimentais e quase tínhamos o mesmo cuidado com as estrelas, as mesmas que podíamos ver, bem acima das nuvens, pela janela do avião. Minha visão dessas estrelas era romântica e com elas eu fazia as minhas confidências e conseguia acalmar as mágoas.
A visão dele era através de um potente telescópio com o qual se divertia quando se refugiava em sua casa de campo, não lembro mais onde. Lembrei-me de um ditado espanhol que diz: "duas pessoas olham através da mesma janela; uma vê o campo, a outra, as estrelas...". No nosso caso, víamos as mesma estrelas com olhares e sentimentos diferentes. Com o telescópio ele conseguia trazê-las para mais perto; eu costumava deixa-las onde estavam e passear, sem pressa, através de suas distâncias incomensuráveis, mas tudo no mesmo universo cheio de histórias, de mistérios e confissões. Ele falou da ex-mulher, da que veio depois dela e que morreu. Falou da tristeza de sua morte anunciada, do luto, do tempo que levou para cicatrizar o vazio aberto em seu peito e de outra que veio poucos anos depois. Até ensaiou mostrar a fotografia dela, mas desistiu de pegar a mochila no compartimento acima da minha cabeça. Melhor assim. Falou do filho irresponsável e da filha mais ainda, da qual não tinha notícias havia mais de dois anos. "É assim mesmo - tentei ajudar - filhos quando criam asas vão para longe, tentar descobrir seus espaços e horizontes...", coisa com a qual ele não concordou porque fora criado de forma diferente, apegado ao pai, protegido pela mãe. Enfim, um filho com família e com valores do que uma família representa. Aqui e ali, eu conseguia falar também. Passei a sentir uma necessidade de abrir-me, falar das minhas histórias, das malas que carregava. Consegui dizer pouco, quase nada, pois quando menos esperamos, chegou a comissária de bordo para perguntar se queríamos frango ou carne e sobre as nossas preferências pelo que beber. Enquanto ele havia falado até aquele momento eu pensava nas coincidências com as quais ele não podia imaginar. Acabou o jantar, a comissária simpática recolheu as bandejas e os copos e ele emendou. Emendar aqui é força de expressão, porque ele recomeçou o papo por outro capítulo... O que falava dos lugares por onde tinha andado, das fotografias que tinha feito. Nesse momento, eu consegui dizer que também gostava de fotografia, mais nada. Queria comentar que acabara de deixar o Afeganistão para trás, mas não houve jeito. Não houve espaço para a minha vaidade. Nem lembro mais de quantas coisas ele falou até dizer que ia cochilar um pouco. Logo depois que uma turbulência acordou a maioria, menos ele, que dormia como um anjo, a voz do chefe de cabine informava que logo aterrissaríamos no aeroporto de Kathmandu, antes do terremoto, bem entendido. Ah, queria dizer que eu tinha uma filha, mas não deu tempo, nossa viagem chegara ao fim.
no Diário do Nordeste