Carmen, minha colega de ginásio. Carmen de saia plissada cinza-chumbo e camisa branca, meias ¾ brancas e sapatinhos baixos pretos. Igual a todas as outras meninas. Mas Carmen era mais igual do que a maioria. Tão igual que não se fazia notar. Carmen não era feia – não há meninas feias – Carmen era comum. E por certo não frequentava nossos sonhos eróticos de meninos adolescentes ou quase. Que tenha nutrido algum sonho romântico em algum de nós, também desconheço.
Carmen tinha boas notas – não era a queridinha das professoras – mas tinha notas boas o suficiente para que a quiséssemos nos nossos trabalhos em grupo. Essa era a minha Carmen de então.
Digo minha Carmen, porque, por certo, havia outra Carmen – a Carmen que vivia dentro da pele da Carmen. E essa só Carmen conhecia quem era.
Não mais vi Carmen. Ao fim do ginasial, separamo-nos todos; cada um foi cuidar da sua parte. Alguns foram para o “científico” outros foram para o “normal” e eu fui trabalhar.
Vez por outra, algum amigo em comum me trazia, no meio de alguma conversa, uma ou outra informação sobre Carmen. Ela, especificamente, não lembro me ter algum dia sido assunto. Nem na época do ginásio era.
Sei que Carmen não se casou. Não encontrou ninguém interessante? Não se fez interessante? Não percebeu que alguém se interessava? Vai se saber. Carmen investiu sua juventude e madureza na carreira, após terminar os estudos. Fez carreira. Sim, fez carreira. Não que tenha se destacado particularmente a ponto se tornar a referência de sucesso do nosso grupo. Mas deu-se bem na profissão. Muito bem, diria eu. Mas sem destaque e sem brilho. Como sempre foi de Carmen.
Alguns amigos dizem que eu não conheço a verdadeira Carmen. Os que convivem mais de perto com ela dizem algo parecido com o que o que citei atrás. Há uma outra Carmen dentro da nossa Carmen. E tais amigos dizem que essa Carmen não é do bem. Gosta de tratar com desdém e arrogância aos amigos que julga estarem em situação de inferioridade. Faz comentários depreciativos. É tirada a chistes e ditos espirituosos. Quer ser irônica e muitas vezes é apenas deselegante. Dizem.
Uma Carmen vingativa dentro daquela Carmen tão igual as outras. Vingança que se come fria. E no caso de Carmen – fria e sozinha.
Carmen tem se tornado também voluntariosa. E vaidosa, a seu modo. Gosta de ser elogiada. Perece que deu para gostar de se ver cercada de aduladores e puxa-sacos. Interessante que a esses nutra o sentimento contrário do que tem para com as pessoas que de alguma forma a ajudaram no passado. A essas Carmen nutre um verdadeiro incômodo. Não há ilhas humanas. Não há que não deva um favor a alguém. Mas isso parece ser especialmente desagradável a Carmen. Dizem já ter ela prejudicado – ou simplesmente deixado de ajudar, quando poderia- a pessoas que no passado desinteressadamente a favoreceram de alguma forma. Não se trata do ditado de que o dia do favor seja a véspera da ingratidão. Carmen não é ingrata. É apenas que Carmen odeia mais o seu credor do que odeia a sua dívida. E odeia particularmente o credor que nada lhe cobra. Aquele que lhe faz um favor lhe ofende. Pois que se sente menor e obrigada. Carmen trabalha mal com essa pressão imaginada.
Imagino que Carmen nutra ilusões de poder. Compensaria assim seu ser tão comum. Pobre Carmen. Há quem seja tão mais poderoso quanto mais igual lhe enxerguem. Mas não parece ser o caso de Carmen. Pesa-lhe tantos anos de ser comum. Não deseja ser igual.
E não sei se foi a solidão ou que traço ou desvio de personalidade, mas Carmen – aquela Carmen tão certinha – parece ter desenvolvido uma queda especial por cafajestes. Tiro isso pelos homens a quem hoje, em idade madura, deu de para frequentar.
“Era Maria vai com as outras. Maria de coser, Maria de casar. Porém o que ninguém sabia. É que tinha um particular. Além de coser, além de rezar. Também era Maria de pecar”. Já nos alertava o poeta.
Foi melhor ter visto Carmen de longe, notado que ela não me percebeu e a deixado ir sem um aceno. Melhor a distância.
Carmen, a minha Carmen – uma menina comum - se tornou uma mulher pequena.
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