Quando minha carreira profissional deslanchou, por Tom T Cardoso

Minha filha de 12 anos já sabe falar alemão, inglês e espanhol.
Outro dia, entrou em casa chutando a mochila. Tinha tirado 8,1 em Biologia.
Abri o armário. Fui fuçar o meu histórico escolar. Estavam ali, os boletins dos tempos de Virgília, a escola estadual onde passei boa parte da minha juventude até conseguir completar o colegial. Perto de mim, o Bolsonaro é um acadêmico brilhante.
Eu era tão preguiçoso e cara de pau, que uma vez, precisando entregar um trabalho enorme de ciências, colei o capítulo inteiro de um livro do Mario Schenberg, ele mesmo, o lendário físico, amigo de meu pai e de Albert Einstein. Contava com a ignorância do professor de física para não ser desmascarado.
Acho que até ganharia um dez, com louvor, se não tivesse, distraído, incluído no texto a seguinte frase: "veja a figura ao lado".
Em 1990, já reprovado quatro vezes, consegui tirar 6,5 em OSPB (Organização Social e Política Brasileira) e ainda ganhei um elogio do professor por ser o único a explicar razoavelmente quem era Golbery do Couto e Silva. Um isolado momento de glória de minha vida escolar.
Eu era um caso curioso. Semi-analfabeto - não sei até hoje conjugar nenhum tipo de verbo e não faço a menor ideia do que seja adjunto adverbial -, lia, desde os onze anos, todos os colunistas dos quatro jornais trazidos pelo meu pai (também jornalista): JB, O Globo, Estadão e Folha.
Com 12 anos li "Minha Razão de Viver", do Samuel Wainer, e "A Regra do Jogo", do Claudio Abramo. Decidi ser jornalista.

Minha mãe dizia que eu precisava, pelo menos, aprender em inglês, e me colocou na Cultura Inglesa, em Pinheiros, que ficava em frente à lendária loja de discos do Edgar, que virou até tema de filme.
Descia do ônibus direto pra loja. Nunca entrei na Cultura. Foi lá que ouvi Toy Dolls pela primeira vez. Não entendi porra nenhuma da letra, mas nem era esse mesmo o propósito dos caras.
O tempo passou. Com 19 anos, ainda no colegial, consegui uma vaga no Jornal da Tarde, na editoria de Esportes. Meu trabalho se resumia a comprar cigarro para os editores e buscar informações no arquivo para os repórteres.
- Tom, vai lá e compra um Hollywood e duas peras.
- Tom, vai lá e vê pra mim quantos jogos o Biro-Biro fez pelo Corinthians.
- Tom, paga essa conta lá no banco? Não esquece o comprovante.

Enfim, um boy disfarçado de estagiário de jornalismo, algo muito comum naquela época. Um bando de chefe filho da puta. As únicas exceções: Cosme Rímoli, Carlos Ferreira Lima e Denise Mirás, que nunca me mandaram fazer feira e ainda me ensinaram que não se deve, por exemplo, colocar crase antes de uma palavra masculina.
Com saco cheio de fazer tabela do campeonato paulista (confesso aqui que sempre roubei uns gols a mais para o Corinthians), parei no corredor o então editor do Caderno 2 do Estadão, Evaldo Mocarzel, e pedi uma vaga de estagiário na editoria de cultura
O Evaldo era o carioca mais carioca da redação.
- Do que você entende, brother? 
- Meu negócio é música.
- Sabe inglês?
- Praticamente minha primeira língua.

Eu sabia que a maioria dos repórteres daquela época não sabia inglês. Dos quatro responsáveis por cobrir música no Caderno 2, só o Jotabê Medeiros segurava uma entrevista inteira. E, além do mais, ninguém pediria para um estagiário fazer uma entrevista com o Quincy Jones. Eu não corria esse perigo.
Até que, uma semana depois, alguém gritou:
- Alguém viu o Jotabê?
O Jotabê tinha sumido, como sempre. Quem trabalhou nos anos 90 por lá sabe do que estou falando.
- Acharam o Jotabê? Ligação internacional pra ele.
Parece mentira, mas é verdade. Nos anos 90, até existia a figura do assessor de imprensa, mas muitos artistas dispensavam esse tipo de intermediário e ligavam diretamente para as redações, para dar a entrevista. A gravadora mandava o número e o cara ligava, de casa.
Logo se soube que o cara na linha, querendo falar com o Jotabê, era o Sting.
- Mauro, você fala com Sting?
- Mas nem a pau.

Mauro Dias, decano do jornalismo cultural, o cara que sabia tudo sobre música brasileira, mas nada sobre verbo to be.
- Haag, fala aqui com o Sting?
- Quem é esse cara mesmo? Me tira dessa?

- Toninho?
- Não dá, tô fechando uma matéria.

- Gente, o homem já está há dez minutos na linha.
- Pode deixar que eu falo com o cara.
Eu comecei a falar um inglês inventado, pior que o do Raoni. O Sting começou a gritar e desligou. Fiz a matéria, que foi publicada no dia 4 de abril de 1996. É só olhar no acervo do Estadão. Minha carreira deslanchou.
Peço aqui minhas desculpas à família Mesquita, mas não queria voltar a comprar mamão.

Nenhum comentário:

Postar um comentário