STF: aplica a lei de acordo com cliente

STF terá de decidir porque Lula é diferente de Daniel Dantas e Paulo Preto, por Fábio Oliveira
Há algum tempo publiquei no GGN a notícia de que o STF estava submetendo a julgamento o Agravo Regimental interposto no HC promovido em favor de Lula que havia sido rejeitado por Carmem Lúcia https://jornalggn.com.br/blog/fabio-de-oliveira-ribeiro/stf-julga-recurso-no-habeas-corpus-em-favor-de-lula-por-fabio-de-oliveira-ribeiro.
Em razão de um problema no Acórdão, resolvi interpor Embargos de Declaração, cujo conteúdo é transcrito abaixo na íntegra. 
Ao julgar o Agravo Regimental o STF proferiu ementa com o seguinte conteúdo:
“1. A competência do Supremo Tribunal Federal para julgar habeas corpus é determinada constitucionalmente em razão do paciente ou da autoridade indigitada coatora (al. i do inc. I do art. 102 da Constituição da República). No rol constitucionalmente definido não se inclui a atribuição deste Supremo Tribunal para processar e julgar originariamente habeas corpus no qual figure como autoridade coatora juiz federal.”
O HC impetrado pelo embargante foi rejeitado porque, segundo consta da ementa, é impossível o ajuizamento do remédio heroico diretamente no STF contra ato do juiz de primeira instância. Ainda segundo a decisão embargada, a matéria não comportaria discussão porque a competência atribuída ao STF é restritiva.
Ora Exa., ao interpor o Agravo Regimental o agravante requereu expressamente a aplicação da jurisprudência que ocorreu num caso semelhante. Refiro-me, obviamente ao caso notório do banqueiro Daniel Dantas. Naquela oportunidade, o STF concedeu HC contra ato do juiz de primeira instância para livrar o paciente da prisão sem se preocupar com a impossibilidade de interpretar extensivamente a constituição federal. A supressão de instância, rejeitada neste caso, não foi um obstáculo à concessão do remédio heroico pelo STF no caso paradigma.
Essa questão jurídica não foi apreciada pelo Acórdão. O art. 93, IX, da CF/88, obriga o Tribunal a fundamentar suas decisões. O conhecimento dos motivos que levam o STF a rejeitar aplicar no caso em tela o precedente do caso Daniel Dantas não foram explicitados na ementa.

A expressão “fundamentadas todas as decisões” que consta do art. 93, IX, da CF/88 não pode ser interpretada de uma maneira distorcida. O Tribunal tem que adentrar ao mérito da questão jurídica levada ao seu conhecimento. Não por acaso o art. 489, §1º, inciso IV, do novo CPC considera nula a decisão “que não enfrentar todos os argumentos deduzidos no processo capazes de, em tese, infirmar a conclusão adotada pelo julgador”.
Ora Exa., tal como proferida (sem adentrar ao mérito da questão levada ao conhecimento do Tribunal) a decisão embargada é omissa, pois a tese mesma em que se fundamenta a interposição do HC que poderia levar à procedência do pedido (a necessidade de tratar de maneira igual Lula e Daniel Dantas/Paulo Preto, concedendo-se o HC com supressão de instância) não foi objeto de decisão fundamentada. Vem daí a possibilidade de interposição do presente recurso.
A decisão invocada como precedente paradigma neste caso, proferida em benefício do banqueiro ligado ao PSDB, foi amplamente debatida pela imprensa especializada (matérias jornalísticas nos autos). Portanto, o STF não poderia rejeitar a procedência do presente Habeas Corpus como se aquele precedente não existisse ou como se o STF não tivesse admitido uma interpretação extensiva da constituição federal naquele caso.
Note-se, ademais, que a imprensa noticiou que há alguns dias o STF voltou a conceder HC com supressão de instância (doc. incluso). Isso ocorreu no caso do cidadão publicamente conhecido como Paulo Preto (um operador financeiro do PSDB paulista). A procuradora Adriana Scordamaglia, que se insurgiu publicamente contra a decisão, disse o seguinte à imprensa:
Questionada se a decisão de Gilmar contribui para a impunidade e para a sensação de que São Paulo não tem Justiça, a procuradora admitiu que sim:
— Infelizmente (contribui para impunidade), sim. Já que se nós pedimos a prisão estamos convictos de que havia fundamentos, no nosso sentir, como pessoas que trabalham com seriedade, que não ficamos pedindo a prisão de qualquer um — respondeu.
— Foi uma audiência sui generes, a qual foi atropelada ao seu final com uma liberdade concedida pela última instância, havendo também supressão das instâncias, já que nós temos um tribunal (TRF-3) e o STF é a última instância que os réus devem recorrer.
No caso sub judice, sem se dar ao trabalho de fundamentar o motivo que o fez não aplicar o precedente invocado, o STF preferiu não tratar Lula como a mesma benevolência que ocorreu no caso de Daniel Dantas. Porém, pouco tempo depois o STF utilizou aquele precedente do banqueiro do PSDB para conceder HC com supressão de instância ao operador financeiro do PSDB. No caso de Paulo Preto, o rigor técnico jurídico aplicado no caso em exame foi estranhamente ignorado. O STF concederia um HC com supressão de instância a Lula se ele trocasse o PT pelo PSDB?
A constituição federal não pode ser interpretada pelo Tribunal de maneira distinta no caso de Lula e nos casos de Daniel Dantas/Paulo Preto. O tratamento técnico mais rigoroso (caso de Lula) não ocorreu quando o réu era um banqueiro e um operador financeiro ligados ao PSDB. Note-se, ademais, que o STF não cumpriu no caso de Lula o disposto no art. 93, IX, da CF/88 interpretado a luz do art. 489, §1º, inciso IV, do novo CPC. Em razão disso, o embargante não sabe exatamente qual o fundamento que o Tribunal utilizou para tratar Lula de maneira diferente daquela que foi empregada no caso de Daniel Dantas/Paulo Preto.
Como foi dito anteriormente, o que distingue as sociedades modernas daquelas que existiam antes da Revolução Francesa é o respeito ao princípio da igualdade. Antes de se impor como Lei, entretanto, a igualdade entre os seres humanos se tornou um fundamento moral basilar das novas sociedades que estavam em construção.
“Una metafísica de las costumbres es, pues, indispensable, necesaria, y lo es, no sólo por razones de orden especulativo para descubrir el origen de los principios prácticos que están a priori en nuestra razón, sino porque las costumbres mismas están expuestas a toda suerte de corrupciones, mientras falte ese hilo conductor y norma suprema de su exacto enjuiciamento. Porque lo que debe ser moralmente bueno no basta que sea conforme a la ley moral, sino que tiene que suceder por la ley moral; de lo contrario, esa conformidad será muy contigente e incierta, porque el fundamento inmoral producirá a veces acciones conformes a la ley, aun cuando más a menudo las produzca contraria.”(Colección Clásicos Inolvidables, Kant II, Librería El Ateneo Editorial, Buenos Aires, 1951 - Fundamentación de la metafísica de las costumbres, Prólogo, p. 477)
A proibição de aprovação de Leis que façam distinção entre as pessoas em razão de cor, raça, credo, situação econômica, partido político ou ideologia e a proibição de Tribunais de exceção (ou seja, de Tribunais que julguem alguns casos e não outros ou que apliquem a alguns casos uma interpretação da Lei e em outros interpretações distintas da mesma Lei) são princípios que se ajustam perfeitamente à metafísica dos costumes de Kant. Essas garantias ecoam na obra de John Rawls, cujo primeiro princípio de justiça foi assim formulado:
“Cada pessoa deve ter um direito igual ao mais abrangente sistema total de liberdades básicas iguais que seja compatível com um sistema de liberdade para todos.” (citado por Miguel Gualano de Godoy in Constitucionalismo e Democracia, editora Saraiva, São Paulo 2012, p. 82)
O paciente deste Habeas Corpus não foi tratado da mesma maneira que o STF tratou o banqueiro Daniel Dantas/Paulo Preto. A ausência de fundamentação para essa desigualdade de tratamento é ultrajante.
Evidente, a não utilização do precedente de Daniel Dantas/Paulo Preto no caso de Lula expõe a natureza doentia, nauseabunda e imperfeita da sociedade construída no Brasil. Nós adotamos formalmente os padrões civilizatórios modernos (o princípio da igualdade é expresso no art. 5º, caput, da CF/88 e reverbera em vários incisos do mesmo), mas nossas instituições preservaram intactas as distinções de tratamento que existiam no Ancien Régime. Esse fenômeno fica ainda mais evidente no caso em tela se levarmos em consideração que o STF nem mesmo considerou necessário apresentar o fundamento para tratar Lula de maneira diferente e mais rigorosa que Daniel Dantas/Paulo Preto. A decisão omissa e nula proferida neste caso pressupõe que diferença entre eles é naturalizada, pré-jurídica e não comporta sequer discussão judicial.  
O resultado do caso em exame pode ser levado ao conhecimento da Comissão de Direitos Humanos da OEA ou ao Corte de Direitos Humanos da ONU. A igualdade de tratamento perante a Lei é um princípio internacional ao qual o Brasil aderiu. Portanto, o STF tem que sanar a omissão do julgado para que o embargante possa discutir a tese adotada pelo Tribunal perante uma das duas Cortes Internacionais.
Face ao exposto, requer o processamento do presente recurso para que, sanando-se a omissão do julgado, explicite o Tribunal qual o fundamento jurídico que o levou a tratar Lula de maneira diferente que Daniel Dantas/Paulo Preto e o motivo que levou à rejeitar a concessão do HC no caso em tela por causa da competência restrita do Tribunal (que o impossibilitaria de conceder o remédio heroico contra ato de juiz de primeira instância) se em dois casos análogos o próprio STF concedeu HC com supressão de instância, tudo como medida de indispensável Justiça!
Os dados foram novamente jogados. Façam suas apostas. 
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