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Fernando Horta - entre violas e cartolas, o Brasil que se repete

Parafraseando Luís Fernando Veríssimo: Brasil, esse estranho país de judiciário e ministério público corrupto sem juízes nem procuradores na prisão 
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E não se pense que tudo isto aí é novo.
Enquanto hoje discutimos se brancos podem compor e cantar samba (que Noel Rosa não nos ouça), na década de 20, 30 e 40 o Brasil era sim dividido. Claramente, claramente dividido.
Quem usava cartola era cartola, quem tocava viola que usasse panamá.
O "malandro" (que era diferente do “mané”) era quem precisava da picardia para dobrar a lei e viver no seu limite. Fazendo isto, equiparava-se um pouco com quem tinha a lei sempre ao seu lado. O mané era aquele que nem tinha a lei por si (por sobrenome, cor ou posses), nem tinha a esperteza para viver com garbo à margem dela.
Uma sociedade dividida em cartolas, malandros e manés. Naquela época, a estética, a retórica e a geografia eram sinceras. Os três grupos tinham seus nichos próprios. Os encontros eram fortuitos, raros. O malandro e o mané se encontravam no lusco-fusco do final do dia quando um retornava da "labuta" e o outro ia para a "cantoria". Nos bondes, nas estações ou nos bares que se encontravam os brasis. O mané e o cartola também se viam pouco. Os cartolas nunca gostaram de se dar a conhecer. A geografia ajudava, colocando os brasis em distância urbana regulamentar.
O malandro e o cartola, estes viviam às turras. Existia o encontro moral mediado pelo samba e o físico mediado pela polícia. Enquanto o primeiro machucava os cartolas, o segundo os malandros. Ambos os encontros passaram para a posteridade, mas acho que o samba atingiu o mundo num grau de contemplação maior do que a violência da polícia atinge os brasis não cartolares, até hoje.
Sempre, portanto, se soube que a polícia era dos cartolas. Nunca foi segredo que os juízes também. Apenas que, naquele tempo, os sambas eram mais verdadeiros e as decisões judiciais menos cínicas. Até hoje, se estudam os sambas para conhecer a sociedade e os registros policiais e decisões jurídicas para se evidenciar as diferenciações sociais. A História não se engana e costuma não exigir algo de quem não pode dar.
O terrível dos tempos atuais é que o samba foi deslocado pelos chamados "ritmos comerciais". Perdeu-se o intérprete-mor da sociedade, cujos versos eram quase fotografias dos tempos. O patrulhamento dos cartolas é tão grande que quando surgem pensadores nestes novos ritmos, a denunciar a sociedade, são imediatamente perseguidos aos gritos de "manipulação ideológica". Como se algo no mundo não fosse ou pudesse não ser. Os cartolas acusam, a bem da verdade, a força do samba. Sabem que um gênio com uma viola faz sentir a realidade. Mesmo para aqueles que padecem de muita realidade, tanta que lhes amortece os sentidos.
Talvez aqui esteja o motivo do atual ataque à cultura, ao carnaval, à história. Todas formas epidérmicas de contar o mundo e os tempos. Todas com meios quase invisíveis de tocar as almas. Os cartolas nunca gostaram de violas ou livros. E isto diz muita coisa. Desde o poema musicado ou o pensamento prensado, todos falam de um mundo que é até um mundo que poderia ser. E nada mais perigoso para a realidade do que o sonho. Nada mais perigoso para uma cartola do que a descrição nua e crua do que ela é.
Também as estéticas se confundem. Ninguém mais usa cartola. Mas os cartolas se certificaram que muitos usassem gravatas. E hoje é difícil discernir as italianas feitas à mão das compradas na banca da praça. As cartolas guardavam uma sinceridade que os cartolas não. As gravatas são mais discretas, fugidias. O uso da gravata é como a invenção das S.A. (sociedades anônimas), não se sabe mais de onde vem o tapa da tal "mão invisível". Alguns manés (até por serem manés) ostentam orgulhosos as gravatas. Até lutam para usá-las. Queriam estar usando, na verdade, as cartolas. Mas isto jamais conseguirão. As violas se aprendem a tocar, as cartolas não. E sempre tem a caixinha de fósforo como remédio ao excesso de realidade e alguma falta de talento.
Bom que hoje temos juízes menos capazes do que outrora. Diminuiu a vontade de se parecer legal. A empolação das citações latinas ou o formalismo do "the rule of law" jogavam um papel importante. Do hermetismo. Inaudita altera partis, os juízes falavam para si. Havia, contudo, que colocar uma frase afirmativa que contivesse o que os cartolas queriam ouvir. "Pelo exposto, (que ninguém mais precisa entender) torno sem efeito decisão anterior contra o nobre senador". É tudo o que realmente se importa dizer. Se o é por um garantismo oportunista ou por um estrabismo político, pouco interessa.

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Fernando Horta - um lugar chamado Brasil

Eu tenho um amigo que afirma, faz tempo, que o Brasil não é um país. O Brasil é um lugar. Um lugar aprazível, é verdade. Com praias, temperaturas amenas, lindas serras, muita natureza, diversidade geográfica, ecológica, étnica ... Um lugar até encantador, precisamos reconhecer. Mas a verdade é que não somos um país. Quando falam em “nosso país” existe uma diferença sutil no termo “nosso”. O “nosso” quando dito por quem tem um sentido coletivo é um nosso abstrato. Um nosso que quer dizer que não é de ninguém. E mesmo sem ser de ninguém é de todos. É um nosso que não aceita divisão. Um nosso que acredita que sempre cabe mais gente, gente diferente, gente igual, ... gente.

Quando o termo “nosso” é usado por aqueles que acreditam no individualismo, o nosso é um coletivo de “eu’s”. Cada eu lutando por obter mais espaço dentro do nosso, por reconfigurar o nosso. Cada espaço ocupado por eu é violentamente defendido e, mesmo, alargado às custas de outros eu. Olhando de fora parece um calmo e colaborativo nosso, mas internamente são um conjunto finito de “eu’s”, que lutam por afastar qualquer um que não seja eu. Usam-se todas as técnicas possíveis de segmentação. Se não tem a cor certa não pode ser eu e tampouco participar do nosso. Se não tem a postura certa, se não tem a atitude certa, a conta bancária certa ou a forma de usar o português. Tudo é motivo para afastar eu do conjunto de eu’s que eu chamo de nosso.

O sentido de “país” é, portanto, diferente do sentido de “lugar”. Os dois usam o termo “nosso”. Mas o nosso país é um lugar cujos eu’s são submetidos às mesmas regras, tem as mesmas oportunidades, participam da ideia do “nosso” submetendo as liberdades do “eu” aos interesses do nosso. É claro que o “nosso país” precisa ser construído diariamente pois nunca, em condições naturais, não planejadas ou pensadas, eu vou estar submetido às mesmas oportunidades e regras de todos os outros eu’s. Para que isto aconteça, é necessário dispêndio de energia. Constrangendo as diferenciações econômicas, restringindo o individualismo social, consertando os espaços cinzentos por onde alguns eu’s tentam fugir das regras comuns.

O sentido de “lugar” leva consigo uma ideia de “resultado natural do curso das coisas”. Os lugares são, indiferente àqueles que os delimitam. É uma perspectiva de contemplação e adaptação apenas. De processos individualistas de adaptação. E adaptação significa sempre luta. Uma luta contra outro eu que disputa os mesmos espaços. Espaços que são finitos porque o eu não sabe compartilhar nem dividir. No lugar não existe almoço grátis. Mas o eu que se convence disto compra uma ideia sorrateira de que todos trabalham por seu almoço. E quem não almoça, não trabalha, portanto. No “lugar” esta lógica invertida, que toma o resultado pela ação, acaba criando condições para que os eu’s que almoçam defendam que a fome é fruto da preguiça, ou que a incapacidade é resultado da falta de esforço.

Um lugar é um espaço geográfico sobre o qual o eu constrói uma identidade que é sempre um reflexo egoísta de si, excluindo tudo o que for diferente do eu. Um país, por outro lado, é um construto sócio-político que se reconhece plural e defende o “nosso” como um espaço de inclusão. A identidade individual se submerge no sentido coletivo, potencializando este. No nosso país está implícita a presença de todo eu, sendo o “todo” com caráter generalizante, mas não completo. Luta-se por expandir, diariamente, a lei de reconhecimento do eu que para que seja parte do “nosso”. O nosso país reconhece que seremos tanto mais fortes quanto mais eu’s reconhecerem-se parte do nosso, sem deixarem, entretanto, de ser eu.

O problema é que quando o eu acredita que pode agir pela simples vontade discricionária, ele destrói o nosso. Seja um eu juiz, um presidente ou um senador na comissão de ética. O eu que acredita que não precisa se submeter ao nós é um eu agressivo, que se acredita superior por condição ontológica e de forma perene. O eu que se acha superior, e, portanto, não submisso ao nós, é um eu que exerce uma violência institucional que não se coaduna com o nosso país. No lugar, as resultantes dos diversos vetores de violência implementados pelos “eu’s” é uma força de exclusão que parte do centro em direção às periferias. Nos círculos centrais esta força é pequena e costuma ser dobrada pela discricionariedade de qualquer eu que ali possa exercer sua vontade. A vontade de um eu é suficiente para inverter o sentido da resultante.

Na periferia, de forma diferente, a força resultante é tamanha que não importa a vontade expressa de qualquer eu por se aproximar do nosso, ele será jogado cada vez mais para longe. Cada vez mais distante e com menos legitimidade para ser parte do nosso. A função do “nosso país” é, exatamente, mitigar estes efeitos. Garantir que qualquer eu, em qualquer lugar, tenha condições de existência, crescimento e estabilização equivalentes.

O Brasil de hoje, com procuradores enriquecendo às custas do Estado, com juízes reescrevendo códigos de forma discricionária, com empresários comprando leis e com políticos acreditando que não existe nada além de suas consciências como balizadores do exercício de seus poderes, é um lugar. Um amontoado de “eu’s” que não partilham de qualquer sentido, mesmo remotamente, semelhante ao “nosso país”. Quando das discussões de formação de alguns países, estas questões vieram à tona. Como lutar contra diversos “eu’s” venais que tivessem poder de Estado, econômico ou das armas? As únicas soluções encontradas foram a violência dos poderes que se chocam e se tolhem ou a revolução. A revolução significa a extinção dos poderes constituídos e criação de novos. O custo, entretanto, é alto.

No século XX, buscou-se uma outra solução: a participação. Pelo alargamento dramático do número de eu’s que detém poder, reduz-se o poder de qualquer eu em separado e aumenta-se o poder do “nosso”. A participação é, pois, junto com a revolução as únicas saídas para transformar o lugar em um país. Resta a escolha. Se queremos a transformação pela violência ou pela inclusão. A manutenção do transe social estático que estamos experimentando no Brasil, não contribui para diminuir o potencial de energia que vem se acumulando, cada vez mais descontente. Até o impeachment de Dilma, apenas uma parte do país estava descontente. Com o impeachment, uma outra parte passou ao lado descontente. Hoje, quem exerce (mal) os poderes executivo, legislativo e judiciário no Brasil está conseguindo que se ombreiem contra eles 93% dos brasileiros.

O Brasil é um lugar. Prestes a explodir.

Estamos vendo o efeito nefasto de colocarmos ignóbeis, venais ou apenas inertes em função de exercício de poder. Estamos experimentando o que sociólogos, historiadores e cientistas políticos diziam que seria o “esgarçamento do tecido social”. Quando os eu’s não se reconhecem mais em “nosso país”. Partem a fazer uso discricionário dos seus poderes gerando apenas e tão somente violência. Um lugar apenas, não mais um país.

Fernando Horta: que tempos são estes?


É errado supor que o passado não pode ser modificado. Entre 1945 e 1950, foram feitas pesquisas na França, perguntando a quem os franceses atribuíam a vitória na segunda guerra. A resposta de mais de 70% da população francesa era de que os responsáveis pela vitória sobre os nazistas haviam sido os comunistas, soviéticos e franceses. Após 1960, as mesmas pesquisas revelavam que mais de 68% dos franceses acreditavam que a segunda guerra havia sido ganha pelos norte-americanos.
Este é um caso de reconfiguração do passado. Milhões de dólares despejados num processo de propaganda ideológica reorganizava as memórias de todo um continente, virtualmente apagando o esforço de guerra feito pelos soviéticos em sua luta contra os fascistas. Este processo é tão violento que hoje há ainda quem acredite que a URSS é ameaça para o mundo ocidental. A quem acredite que o comunismo ameaça o Brasil.
Isto nos serve para perceber que as elites sabem muito bem como jogar com a propaganda. Sabem como reconstruir memórias, criar e atacar símbolos. Além dos imensos recursos materiais que os detentores da riqueza mundial têm ao seu dispor, eles entendem este processo de dominação ideológica de forma muito mais apurada do que a esquerda. LEIA MAIS »