Artigo semanal de Cristovam Buarque


Os outros Niemeyers, por Cristovam Buarque

Niemeyer foi iluminado pelo que chamamos de talento. Não fosse seu imenso talento para imaginar o que fazer em um espaço vazio para ali construir moradia do homem, ele não teria tido o reconhecimento que recebeu em vida e que terá ao longo da história.
Mas ele não teria criado obra de gênio reconhecido se não usasse o talento de maneira inovativa, rompendo velhos padrões, sonhando com formas impossíveis de serem construídas e capazes de surpreender os que as viam e usavam ou nelas viviam.
Esse talento inovativo e sonhador não se desenvolveria sem a perseverança que nem todos talentosos têm. Foram necessários anos de trabalho para que os sonhos imaginados pelo talento se transformassem em obras.
O acaso também favoreceu a criação do mito. Não fosse a coincidência de ser contemporâneo do ex-presidente Juscelino Kubitschek e da vontade nacional de construir um novo Brasil, uma nova Capital, usando o que havia de vanguarda na arquitetura, como fazia na indústria da música e do cinema, ele teria sido um grande arquiteto, mas não “O Arquiteto do Século”.
A vida, por fora de sua obra, também foi fundamental na consolidação de seu prestígio. Tivesse ele falecido logo depois da construção de Brasília, teria sido um bom arquiteto, mas não seria o mito hoje consagrado.
Niemeyer viveu longamente e soube enfrentar os dissabores da vida com a força de um caráter firme. Enfrentou ditaduras, perda de amigos, projetos não realizados. Foi solidário, coerente e estas qualidades ajudaram na construção do mito.
Mas, lá na base, nada teria acontecido, se ele não tivesse aprendido a ler, escrever, contar e calcular. Sem escola e sem professores ao longo da vida, o talento de Niemeyer não teria aflorado.
Niemeyer foi contemporâneo de muitos talentos que não receberam a chance de aflorar, gênios que poderiam desenvolver o talento, se a eles tivessem sido dada a chance que só a escola propicia.
Ao longo dos 200 anos de nossa independência, por culpa da escravidão, da exclusão e da ausência de chances iguais a cada brasileiro, abafamos milhões de grandes profissionais e centenas de gênios reprimidos pela falta de escola de qualidade que os incentivasse e ajudasse no desenvolvimento do talento pessoal.
No momento em que todos se curvam ao gênio Niemeyer, quem o conheceu sabe de sua postura política, sabe que ele gostaria que em sua homenagem o Brasil fizesse o que se nega há séculos: dar a todos a chance que ele teve, graças a uma revolução educacional, que assegure a cada criança a chance de ser um Niemeyer.
A melhor reverência a Niemeyer é lembrar os outros Niemeyers que não afloraram.
É doloroso perder a vida de Niemeyer com seu talento, mas este é o destino de todos; mais doloroso é saber que perdemos a chance de fazer outros Niemeyers, porque em vida foram perdidos pela falta de estímulo para aflorar.
Homenageemos um gênio, fazendo o necessário para não impedir outros de aflorar.

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