E então o procurador-geral Roberto Gurgel voltou a falar na chamada teoria do domínio do fato, tão citada pelos integrantes do STF no julgamento do mensalão – e tão desrespeitada.
Vamos, primeiro, a um exemplo prático da aplicação da TDF. O ex-presidente peruano Alberto Fujimori está na cadeia por causa dela. Em julho de 1992, nove estudantes e um professor da Universidad Cantuta foram executados por militares.
Eles eram suspeitos de terrorismo. Descobriu-se, num julgamento iniciado 11 anos depois, em 2003, que o então chefe do Serviço Nacional de Informações, general Julio Salazar Monroe, estava por trás dos assassinatos em Cantuta.
Foi provado também que o general agia sob ordens diretas do presidente Fujimori. Salazar informava-o sobre todas as atividades de extermínio de pessoas suspeitas de serem inimigas do regime.
Nem Salazar e nem Fujimori apertaram o gatilho em Cantuta. Mas o general dera a ordem para a matança, e o presidente a aprovara. Foi invocada a teoria do domínio dos fatos, a TDF, e ambos foram processados e condenados a longas penas.
TDF é uma inovação do jurista alemão Claus Roxin, 81 anos. O objetivo de Roxin era castigar chefes nazistas que, mesmo sem ter matado diretamente, estiveram por trás de chacinas.
O STF usou o conceito de Roxin para punir José Dirceu, como Gurgel acaba de lembrar numa entrevista à Folha.
Mas existe uma diferença fundamental entre o Caso Fujimori e o Caso Dirceu. Havia provas de que Fujimori sabia das execuções comandadas pelo chefe do SNI. E, admitiu Gurgel, não há provas físicas contra Dirceu. O que há são suposições.
Por mais que você possa odiar Dirceu, não vai conseguir transformar suposições em provas.
Essa diferença é grande como uma pirâmide. Mas o STF não viu, e nem Gurgel.
Curiosamente, quem alertou para a diferença foi o próprio Roxin, numa rápida entrevista que ele concedeu à Folha de S. Paulo. Apenas na internet a fala de Roxin repercutiu, o que mostra a forma enviesada como desde o início o julgamento foi coberto pela grande mídia. Nem a própria Folha aprofundou o assunto.
Não vou dizer que fiquei perplexo, porque perplexidade é coisa de tolos, mas fique registrada aqui minha surpresa.
Primeiro: como os integrantes do STF utilizaram de forma tão peculiar a TDF? Depois: como a defesa dos réus foi tão inepta para não trombetear a gambiarra jurídica feita para dar sustentação, aspas, às condenações? Por que ninguém da defesa se aprofundou na TDF para estabelecer com clareza a diferença com que ela fora aplicada na Alemanha, no Peru e no Brasil?
Em sua ingenuidade germânica, Roxin disse que a justiça não deveria se curvar à “opinião pública” quando não existem provas concretas por trás da TDF, mas sim respeitar o “direito”.
Ele provavelmente imaginava que a voz rouca das ruas — ou o Zé do Povo, como dizia Irineu Marinho, fundador do grupo Globo — clamava pelo castigo aos réus do mensalão. As recentes eleições, que simplesmente coincidiram com o julgamento, mostram a real opinião pública. O clamor estava e está não nas ruas, mas nas salas monumentais dos donos das grandes empresas de mídia – que têm agido, e não é de hoje, não como barões mas como coronéis.
Eles retardam o combate ao maior mal do Brasil – a desigualdade social. O Brasil tem que caminhar na direção do capitalismo escandinavo, que produz as pessoas mais felizes do mundo. Mas as corporações jornalísticas fazem o possível para evitar isso, não no interesse público – mas na defesa encarnecida e amoral dos próprios privilégios.
O Diário defende vigorosamente o capitalismo — mas não como este que está aí no Brasil. Invoco Adam Smith, o pai do capitalismo: “O impulso em admirar, e quase venerar, os ricos e os poderosos, e desprezar ou, ao menos, negligenciar pessoas pobres é a maior e mais universal causa da corrupção dos nossos sentimentos morais”.
O capitalismo brasileiro tem que ser defendido de capitalistas como os donos da mídia. E de juristas que usam a seu próprio modo inovações legais como a TDF.
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