Capaz de enfrentar a ditadura de armas na mão deputado concluiu que não teria direito a ampla defesa de seu mandato no Congresso
Minha hipocrisia não chega a ponto de me dizer contente com a renúncia de José Genoíno a seu mandato de deputado federal.
Não tenho biografia para julgar um personagem com sua história. Mas é uma decisão preocupante em vários sentidos. Não por ele. Mas por nós.
Um cidadão que já pegou em armas para enfrentar a ditadura militar em seu pior momento – anos Médici – na guerrilha do Araguaia concluiu que não teria meios para defender sua dignidade no Congresso. A lei assegura a Genoíno o direito a ampla defesa mas ele concluiu que não teria esta garantia.
Com mais de 300 000 votos, Genoíno foi o deputado mais votado de São Paulo em 1998. Também chegou a uma posição de destaque em 1994 e foi o único candidato do PT, até hoje, que chegou a um segundo turno na eleição para o governo paulista. Em 2010, já na ressaca da AP 470, deve 92 000 votos. Tornou-se suplente e assumiu o mandato que exerceu até a semana passada.
Como militante, Genoíno trouxe quadros novos e importantes para a política brasileira, entre eles um líder chamado Chico Mendes e sua discípula magrinha, Marina Silva. Formou pessoas e formou-se, também. Uma democracia não se constrói com proclamações de fim-de-semana nem a partir de frases de efeito. Precisa de lideranças legítimas, verdadeiros representantes do povo, a altura de sua tarefa e de suas responsabilidades. Apontado, pelos próprios colegas, como um dos parlamentares mais influentes do Congresso brasileiro, um articulador incansável e um negociador leal, Genoíno tornou-se um personagem indispensável da democracia construída no país a partir de 1985, que produziu o mais prolongado regime de liberdade de nossa história.
Eleito pela primeira vez em 1982, Genoíno conversa à direita, ao centro, e é claro, à esquerda. Semanas antes de enfrentar o problema do coração e fazer o implante de um tubo de 15 cm na aorta, ele debatia com os colegas um projeto de lei sobre consumo de drogas. Fiz uma entrevista com ele naquela época. Alerta para as novidades que o tempo coloca, Genoíno estava preocupado com a criação de uma legislação rígida demais, capaz de obrigar jovens estudantes que fumam um baseado nos fins de semana a cumprir penas de muitos anos como se fossem traficantes.
Vamos pensar de novo. A Constituição garante, em seu artigo 55, que cabe ao Congresso definir a cassação de mandato de parlamentares.
Embora o STF tenha tentado transformar este artigo em simples enfeite, o Congresso reagiu para manter sua prerrogativa, agora numa versão perversa e injusta: pretendia fazer tudo, de qualquer maneira, para cassar o mandato de Genoíno e agradar aquela fatia de eleitores convencidos de que a degola espetacular de parlamentares pode ser útil para nosso sistema político.
Nossos parlamentares – os piores, meus amigos -- estão de olho na reeleição e, sem verdadeiras realizações para apresentar, sem um projeto consistente para oferecer, se submetem as leis dos marketing político mais rasteiro. Eles é que iriam cassar Genoíno, posar para as fotos com cenho franzido e discursinho moralista que a TV adora.
Considerando a estatura política de Genoíno, um gigante em comparação com 99,9% entre eles, seriam obrigados, pela própria hipocrisia, a cumprir um ritual que já vimos no próprio Supremo. Dizer que lamentavam cassar como corrupto um parlamentar cujo maior patrimônio é uma casa modesta no Butantã, em São Paulo.
Seria na verdade um crime obviamente tão horrendo que era preciso acalmar a consciência fingir arrependimento no mesmo instante.
A renúncia de Genoíno tem este significado doloroso: é a comprovação de que o esforço de criminalizar os políticos brasileiros e a própria atividade democrática, que esteve no centro do discurso ideológico sobre a " compra de votos " que jamais seria demonstrada com fatos concretos, rendeu frutos, convenceu muitas pessoas e gerou vários resultados daninhos.
Atirado naquele universo da " publicidade opressiva" que marcou o julgamento, sem que o cidadão comum tivesse acesso a uma visão equilibrada dos fatos, ele nunca foi ouvido pelos brasileiros ao longo do julgamento e, para certificar-se de que não será mais ouvido por um longo período, já recebeu uma sentença que proíbe suas entrevistas. Ou seja: não só foi vítima de uma sentença injusta mas perdeu o direito de reclamar.
E é vergonhoso reparar que nenhum de nossos "jornalistas investigativos," nossos editorialistas, colunistas, jurados do Premio Esso e outros campeões domesticados pela profissão levantou-se para denunciar um ataque frontal a liberdade de expressão, que não atinge apenas o condenado, mas o próprio direito de todo repórter ouvir e entrevistar quem quiser, como acontece em todo país onde a imprensa é livre.
Apesar da selvageria de Guantanamo, reservada estrangeiros, a Justiça norte-americana, tão lembrado como exemplo de direito e liberdade, não proíbe entrevistas com condenados a penas graves, inclusive à pena morte.
Nenhum juiz norte-americano tem o direito de achar que está sendo desafiado quando um habitante do corredor da morte resolve defender seus direitos e denunciar que é inocente e foi condenado injustamente. Vários depoimentos dessa natureza renderam best-sellers e até filmes de sucesso.
Determinados gestos também podem ser questionados no Brasil de 2013.
Sabe aquele punho erguido, no dia em que Genoíno foi preso? Não pode. Irrita, provoca, deve ser evitado. Foi uma das marcas dos protestos de junho mas considera-se que não pode ser usado na coreografia dos condenados.
Compreende-se. Num universo onde a palavra foi cassada e até um gesto com a mão é questionado, o objetivo é impor a submissão, o silêncio. Todo ato de altivez, de resistência, será condenado.
Procura-se mobilizar a turba, a ralé, aqueles que não tem uma identidade social clara além do ressentimento, como dizia Hanna Arendt. O argumento é vergonhosamente antigo: é preciso combater o "privilégio", a "mordomia", os "direitos humanos", como prega o conservadorismo brasileiro desde o tempo em que cidadãos como Genoíno, seus familiares e seus parentes, e tantas outras pessoas que honraram a luta pela democracia, denunciavam a tortura nas prisões da ditadura.
Quando resolveram que o Congresso não deveria cumprir o artigo 55 e manter a palavra final sobre a perda de mandato, os ministros do Supremo chegaram a definir qualquer atitude contrária como "insubordinação."
Estamos num ambiente de incerteza e insegurança. Depois de um julgamento politizado, assistimos a uma nova transmutação institucional. A medicina não é mais medicina. Pode ser política.
Roberto Kalil, hoje o cardiologista de maior prestígio do país, já deixou claro que Genoíno enfrenta uma doença grave e crônica. Fabio Jatene, cirurgião do mesmo quilate, também fez uma avaliação no mesmo sentido. Peritos do IML do Distrito Federal e da Câmara de Deputados confirmam essa condição. E mesmo doutores indicados por Joaquim Barbosa para fazer um laudo sem a presença de um perito indicado por Genoíno – direito legal de todo prisioneiro – foram incapazes de escrever coisa muito diferente. Mesmo dizendo que não era "imprescindível" manter o deputado em regime domiciliar, levantaram condicionantes de bem-estar e cuidados médicos que não existem nos presídios brasileiros.
Mas nem assim o direito de Genoíno a prisão domiciliar está assegurado. Pedindo que este regime seja considerado definitivo, em vez de prolongar-se por apenas 90 dias, antes de uma nova revisão, como quer o procurador geral Rodrigo Janot, seus advogados lembram que mesmo traficantes de drogas já obtiveram este direito em nossos tribunais.
Eles também recordam uma resolução da Vara de Execuções Criminais do Distrito Federal, que reconhece a absoluta falta de condições de seus presídios atenderem a casos de enfermidade grave.
Entende-se, então, o sentido da luta de Genoíno. Ele trava, no momento, o combate político pelo direito à vida.
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