A felicidade é uma prisão

kandinsky
Quando a felicidade é presumida e compulsória, ela se torna uma prisão.
Em muitos países, o cumprimento inicial é uma pergunta neutra: “how are you?“, “¿que tal?“, “¿que pasa?“, “ça va“, etc.
No Brasil, a pergunta é bem mais agressiva:
“Tudo bem?”
Não existe espaço para não estar bem. A pergunta já presume que você não apenas está bem, mas completamente bem, e busca apenas uma confirmação. Afinal, o normal é tudo estar sempre bem. Se não está tudo bem com você, hmm, então você está fora da regra, desviante do esperado, incorreta & inadequada.
E, pior, vai ter que já começar sua resposta desmentindo sua interlocutora:
“Não… É que…”
Lá atrás, em 2002, aos vinte e oito anos de idade, quando comecei a escrever As Prisões, meu principal objetivo era “ser feliz”. Cada linha de cada texto, cada reflexão e cada raciocínio, tinham sempre, como objetivo último, garantir minha própria felicidade.
Exemplo de um trecho bastante representativo e que hoje muito me envergonha, da Prisão Verdade:
“A verdade só é importante enquanto meio de atingir a felicidade. Senão, de nada serve. E se a verdade leva à angústia e depressão, ela torna-se pior que inútil, é nociva. Também lutamos pela liberdade por ela ser um meio de nos conduzir à felicidade. Como fim, entretanto, a liberdade também é inútil. Pra que serve a liberdade se você é infeliz? Só a felicidade realmente importa. Deixar a verdade estragar isso é um crime.”
Mas quando nossa sociedade e nossa cultura, nossas escolas e nossas igrejas, nossas mães e nossas colegas de trabalho, nossas revistas de empreendedorismo e nossos outdoors de beira de estrada, fazem de tudo para nos vender a felicidade como objetivo último, talvez seja a hora de parar para pensar.
Afinal, essa é a mesma sociedade que quer nos convencer da obrigatoriedade de depilar as pernas e de rir de piadas machistas, de ser monogâmicas e de trocar de carro todo ano.
Não é à toa que estou há doze anos escrevendo esse livro. Quando chego no final, já tenho que voltar pro começo e reescrever tudo.
kandinsky
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Um dia, comecei a me perguntar: afinal, por que quero tanto ser feliz?
E daí essa minha felicidade? Quem está ligando pra ela? Por que isso seria importante?
Se aparecesse um gênio da lâmpada, eu pediria para ser feliz?
Por que não pedir pra ser bom? Honesto? Justo? Leal?
Ou até mesmo bonito? Pauzudo? Peituda?
Por que pedir logo, entre tantas coisas possíveis, para ser feliz?
Quem foi que me convenceu que minha própria felicidade é tão importante assim?
Quando foi que minha própria felicidade individual assumiu o centro da minha vida?
“Feliz” é mesmo a coisa mais importante que eu deveria querer ser?
Felicidade deveria mesmo ser meu objetivo mais buscado, mais desejado?
É certo eu querer tanto assim ser feliz?
Por que tantos livros sobre felicidade em nossas estantes?
“O zen da felicidade”, “Aprendendo a ser feliz”, “Sua felicidade não tem limites”, “O Dalai Lama quer que você seja feliz”?
Onde estão nossos livros sobre ser uma pessoa melhor? Sobre saber ouvir? Sobre aprender a se doar? Sobre cuidar de quem amamos?
O que estou deixando de ver enquanto meu olhar está tão fixo lá na frente, minha felicidade futura me chamando como uma sereia perversa, me estimulando a pisar em quantos pescoços for necessário para alcançá-la?
O que estou deixando de fazer enquanto corro atrás de ser feliz?
O que não estou lendo enquanto leio sobre a busca da felicidade?
Vale a pena o custo-oportunidade desse meu fetiche?
A artesã que é feliz em seu trabalho de artesanato… busca a felicidade?
O pai que experimenta a felicidade ao lado dos filhos… está correndo atrás de ser feliz?
Que tipo de pessoa quer ser feliz?
Que tipo de pessoa busca a felicidade?
Que tipo de pessoa… eu sou?
Se a felicidade não é um lugar mas uma sensação, se não é um estado mas um feixe de momentos, se nunca é permanente mas sempre efêmera, se por definição é inalcançável e inatingível, por que correr atrás dela?
Aliás, qual é a grande vantagem de ser feliz?
Ser feliz vai me fazer uma pessoa mais digna, mais honrada, mais aberta?
Ser feliz vai me fazer ouvir mais, exercitar a empatia, estender a mão?
Ser feliz vai me fazer ter paciência com a mãe, não destratar o garçom, ser fiel à companheira?
O mundo vai ser um lugar melhor se eu for feliz?
Esse desejo de ser feliz já não é intrinsecamente egoísta?
Colocar minha própria felicidade como prioridade já não faz de mim uma pessoa intrinsecamente egocêntrica?
Em vez de querer ser feliz, por que não simplesmente querer ser menos egoísta?
Em vez de correr atrás da minha felicidade, por que não correr atrás… da felicidade dos outros?
Por que não?
Afinal, por que quero tanto ser feliz?
kandinsky
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Ninguém é mais egoísta do que quando está no auge da felicidade.
Já dizia Tchecov: atrás de toda pessoa feliz deveria existir um homem com um martelo – para lhe golpear periodicamente a cabeça.
Só porque a vida mais cedo ou mais tarde mostra suas garras.
Só para lembrar que existem pessoas infelizes no mundo.
Só pra lembrar que elas também amanhã estarão infelizes.
Só porque ninguém é tão egoísta e autocentrado quanto alguém autenticamente feliz.
Um casal em lua-de-mel não está pensando nos moradores de rua por cima de quem tiveram que passar na caminhada até o hotel.
Aliás, nenhum de nós quase nunca está.
kandinsky
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Meu problema não é com a felicidade. Assim como não tenho problema, digamos, com a monogamia. A monogamia é linda e a felicidade também.
Meu problema é quando tudo a nossa volta pretende nos convencer que um determinado estilo de vida é a única opção possível e que tudo fora dele é loucura, é perversidade, é depressão, é morbidez.
Meu problema não é com a felicidade: é com a busca compulsória pela felicidade.
Sim, o casal em lua-de-mel não pensa nos moradores de rua. Sim, na hora do gozo, ninguém pensa na miséria da vida. Felizmente, são momentos que acabam rápido. (A vida seria intolerável se fosse um gozo perpétuo.)
Entretanto, se os momentos de felicidade acabam rápido, a busca pela felicidade não acaba nunca. Depois de um livro de auto-ajuda sobre como ser mais feliz (“Quem mexeu na felicidade do queijo do pai rico?”) tem sempre outro.
Como a felicidade não existe (pelo menos não como esse estado permanente de gozo) a busca nunca tem fim e nos mantém cegos e aprisionados a ela por toda a vida.
Quando enxergamos tudo pelo prisma da nossa busca pela felicidade, as pessoas à nossa volta deixam de ser gente: elas se tornam maquininhas utilitárias fornecedoras de felicidade.
“O que essa pessoa pode me dar? Quanta felicidade ela pode me fornecer? Ela está me fornecendo tanta felicidade quanto antigamente? Quanta felicidade ela ainda pode me fornecer?”
Dormimos ao lado da pessoa que escolheu passar a vida conosco e, na calada da madrugada, pensamos:
“Será que não consigo arrumar uma fornecedora de felicidade melhor? Será que a próxima não vai ser aquela que vai me fazer realmente feliz?”
Enquanto isso, nossa parceira sonha… com a próxima pessoa que seguramente vai fazê-la mais feliz do que um egoísta como você.
E assim vamos trocando de emprego & de casa, de parceira & de cidade, sempre em busca de uma plena felicidade futura, sempre em busca do emprego ideal que realmente vai nos fazer feliz, da parceira perfeita que vai nos fornecer a pura felicidade.
Pois, afinal, é para isso que servem as pessoas, não? É para isso que existe o mundo, não? É isso que mais importa, não?
Ser feliz.
kandinsky
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Morei por sete anos nos Estados Unidos. Dava aulas de português, espanhol e cultura brasileira em uma universidade de Nova Orleans. Meus alunos já eram pré-selecionados como pessoas abertas e multiculturais que, mesmo sendo cidadãs da maior potência do mundo, voluntariamente dedicavam suas vidas e seus esforços e suas carreiras à cultura luso-hispânica. Nas minhas aulas, cercado por essas pessoas, eu me sentia livre para questionar tudo.
Menos uma coisa.
O excepcionalismo norte-americano. Essa ideia de que os Estados Unidos, de verdade, lá no fundo, sério mesmo, são a nação mais incrível que já existiu, o dom de deus para a humanidade. Um conceito inacreditavelmente petrificado e inquestionável mesmo para as pessoas norte-americanas mais subversivas e questionadoras — e olha que conheci e trabalhei ao lado de muitas.
Parte integrante dessa crença é a certeza absoluta e religiosa de que toda pessoa humana, em sua essência, é uma norte-americana em potencial. Que todas as pessoas humanas, se tivessem a oportunidade, seriam norte-americanas, teriam valores norte-americanos, iriam querer tudo o que as norte-americanas querem.
kandinsky
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O universo ficcional de Jornada das Estrelas é como a realização dos sonhos de Francis Fukuyama: a História acabou porque o American Way of Life ganhou, todos os seus possíveis adversários cederam, aderiram ou sumiram, não sobrou mais ninguém para ser do contra, não há conflito, diversidade, choque. A História, se existe, é feita lá fora, entre alienígenas, entre aqueles seres que ainda não aderiram ao pensamento único da Federação. Entre o século 22, palco da série Enterprise, e o século 24, das séries Nova Geração, Deep Space Nine e Voyager, a impressão que temos é que a nossa doméstica História terrestre realmente parou.
Acompanhamos as aventuras das bravas pessoas da Frota Estelar no espaço porque, convenhamos, se ficássemos na Terra, não haveria nada pra acompanhar. Sintomaticamente, as viajantes espaciais passam pela Terra dezenas de vezes ao longo de três séculos e nada nunca muda. Nunca ouvimos falar de guerras, rebeliões ou dissidências. Nunca há uma nova moda, um novo movimento literário, um novo sistema econômico. Realmente, com a vitória de um way of lifesobre todos os outros, com a total uniformização da cultura humana, não haveria como surgirem novos movimentos literários, políticos ou econômicos. Ao consenso, segue-se à estagnação. Não é à toa que a Frota Estelar parece atrair os melhores talentos do planeta: para qualquer pessoa com iniciativa, criatividade e liderança, morar nesse planeta estagnado deve ser um inferno.
Os valores da humanidade e, por extensão, os valores da Federação Unida de Planetas, capitaneada pela Terra e com capital em Paris (!), são os valores ocidentais anglo-saxões. E eu fico me perguntando: o que será que foi feito da cultura asiática, com valores completamente opostos? Terão as bilhões de pessoas chinesas, japonesas e afins sido eliminadas em massa ou simplesmente sofrido lavagem cerebral? O que terá acontecido com a cultura latino-americana, também completamente alheia aos valores de Picard & Janeway? Meu deus, eu me pergunto, com uma última fagulha de esperança, será que as parienses, pelo menos elas!, torcem o nariz pra Federação e fazem passeatas e piquetes na porta da sua sede? Seria, no mínimo, um consolo.
Mas nem isso.
kandinsky
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Minha irmã trabalhava em uma empresa de seguros em São Francisco. Um belo dia, um engenheiro indiano pediu demissão e disse que estava voltando para casa, na Índia, para casar.
“Que legal”, perguntaram as colegas, “e como é sua futura esposa?”
“Não sei,” respondeu, “vou conhecer quando chegar lá.”
Pronto. O escritório veio abaixo.
Em um primeiro momento, quiseram ajudá-lo:
“Você está bem? Estão te forçando a isso? Você quer ser cidadão norte-americano? Será que não consegue status de refugiado, meu deus? Essas pessoas marrons e seus costumes bárbaros!”
Mas era pior, muito pior.
O engenheiro indiano estava voltando porque queria. Porque era sua casa, sua cultura e seus costumes. Porque sentia que possuía uma obrigação para com seus pais e sua família.
As pessoas do escritório simplesmente não conseguiam entender. Era como se ele estivesse falando hindi:
“Mas como assim? Aqui você não é livre? Aqui você não é feliz? Aqui você não se sustenta? Será que não aprendeu nada nos anos que passou entre nós?”
E ele tentava fazê-los entender que sim, aprendera muita coisa, vivia nos Estados Unidos há muitos anos e adorava o país, fizera graduação e doutorado na Califórnia, mas que nem tudo na vida se resumia à sua própria felicidade pessoal. Que havia outros valores.
Ninguém entendeu. Não conseguiriam entender. Entender o engenheiro indiano significaria desmontar a mentira fundamental que os Estados Unidos contam sobre si mesmos. Nem as minhas alunas, benditas sejam, que teriam entendido quase tudo, conseguiriam dar esse último passo.
(Não estou elogiando a cultura indiana, da qual não sei quase nada e o pouco que sei é negativo, mas somente mostrando que, bem ou mal, um outro caminho é possível.)
Em uma mesa de bar de São Francisco, quando as colegas de trabalho da minha irmã me contavam essa história, havia surpresa, raiva, afronta em suas vozes.
O engenheiro indiano ter vivido entre elas por tanto tempo e, ainda assim, ter decidido voltar para um casamento arranjado era uma ofensa que calava fundo, fundo demais: as palavras “ingrato” e “ingratidão” foram ditas não poucas vezes.
E nós, aqui no Brasil, pessoas urbanas & descoladas, applemaníacas & early-adopters, em muitos aspectos mais reais que o rei, também profundamente investidas em nossa idolatria pela deusa felicidade, também não entendemos.
kandinsky
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Quando falo das prisões, a felicidade é sempre a penúltima, logo antes do narcissismo.
Antes de chegar nela, eu já ataquei a verdade e a religião, a monogamia e o respeito, a obediência e o medo, a ambição e o patriotismo. Mas tudo bem: pois se estamos indo contra essas forças opressoras, é para sermos mais felizes, não?
Então, quando digo que a felicidade também é uma prisão, e das piores, mesmo entre minha plateia usual de pessoas deslocadas e de ovelhas negras, de subversivas e de contestadoras, ainda assim muitas me olham horrorizadas. Como se eu estivesse cometendo a maior de todas as transgressões. Como se eu tivesse finalmente ido longe demais.
Não é nem que ficam revoltadas: ficam intrigadas. Confusas. Curiosas.
Nunca consideraram viver suas vidas sem sua própria felicidade como fim último. Não lhes parece teoricamente possível viver sem sua própria felicidade como fim último.
E, pior, se a felicidade não é o fim último, então qual é? Viver pra quê? Viver almejando o quê?
Mas não cabe a mim dizer ao que devem almejar, ou qual deve ser o fim último de suas vidas.
Eu não sei qual deve ser o fim último da vida de ninguém, ou mesmo se nossas vidas devem ter um fim último (a minha, por exemplo, não tem), mas sim mostrar que o fim último da vida de uma pessoa não precisa necessariamente ser sua própria felicidade individual.
O meu objetivo é só desmontar as narrativas compulsórias que nos venderam.
kandinsky
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Perguntaram ao ator Ricardo Darín se ele era feliz. A resposta:
Sou tão feliz quanto pode ser alguém que vive em uma sociedade como a nossa. Sou tão feliz quanto posso ser sem precisar virar o rosto para o outro lado.
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Quando as pessoas mais conformistas, as mais travadas e as mais cooptadas, são as que mais falam em “pensar fora da caixinha”, talvez seja justamente a hora de olhar dentro da caixinha.
Talvez exista algo de importante lá. Algo do qual estamos desesperadamente querendo fugir.
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Encontro “As Prisões”

Há doze anos, escrevo sobre aquilo que chamo de “As Prisões“:
São as bolas de ferro mentais e emocionais que arrastamos pela vida. são as ideias pré-concebidas, as tradições mal-explicadas, os costumes sem-sentido.
Comecei a questioná-las uma a uma: verdade // dinheiro // privilégio // sexismo // racismo // monogamia // religião // patriotismo // escolhas // respeito // certezas // os outros // medo // ambição // felicidade // narcissismo.
Nos últimos meses, tenho viajado o Brasil falando sobre As Prisões. Uma conversa experimental, sempre no fim-de-semana, um espaço livre para todos compartilharem suas histórias, para todas as certezas serem chacoalhadas. As próximas são em São Paulo e no Rio de Janeiro, em março, e em Curitiba, Belo Horizonte, Belém e Vitória, em maio de 2014.
Para mais detalhes, vídeos, depoimentos de quem foi, roteiro completo da palestra, tudo isso, veja aqui.

Aviso sobre linguagem e gênero

O texto acima fez uma valente tentativa de ser unissex e usar uma linguagem de gênero sempre neutra. Todas as explicações e argumentos, sem exceção, se aplicam igualmente a homens e mulheres, pessoas cis e trans*, pessoas hétero, homo e bissexuais. Se alguma frase ou construção pareceu excluir essa ou aquela identidade, sexo, gênero ou orientação, foi descuido meu. Por favor, avisem e vou corrigir. Para mais detalhes sobre como utilizar uma linguagem menos sexista, por favor, confira meu mini-manual pessoal para uso não sexista da língua.
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Todas as ilustrações desse texto são pinturas do artista russo Wassily Kandinsky (1866-1944).
Alex Castro

alex castro é. por enquanto. em breve, nem isso. // todos os meus textos são rigorosamente ficcionais. // se gostou, mande um email, me siga nofacebook, compre meus livros, faça uma doação ou venha às minhaspalestras. e eu te agradeço.

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