Glauber o subversivo, por Zuenir Ventura - O Globo
A Comissão da Verdade do Rio promove hoje à tarde, no Parque Lage, uma homenagem a Glauber Rocha, quando entregará a seus filhos uma série de documentos encontrados no Arquivo Nacional, entre os quais uma entrevista à revista britânica “Time Out”, de 1971, onde revelava que estava sendo perseguido pela ditadura militar e que considerava o Brasil de Médici “um estado totalitário”, comparável ao “nazifascismo alemão”.
Essas denúncias levaram o governo a considerá-lo como “o que mais age na Europa na campanha contra o Brasil”.
Sete anos antes, Glauber apresentava em Cannes “Deus e o diabo na terra do sol”, cujo cinquentenário também será lembrado hoje com a exibição do filme e o depoimento de colegas e amigos.
Essa obra foi a sensação no festival de 1964, causando a admiração de mestres como o alemão Fritz Lang — “É uma das mais fortes manifestações da arte cinematográfica que já vi” — e o espanhol Luis Buñuel (“É a coisa mais bela que vi nos últimos dez anos”).
Apesar disso, o diretor temia tanto a reação dos críticos que, logo após a exibição, teve um súbito desarranjo intestinal. “Não estou aguentando mais”, disse para mim ao seu lado no fundo da sala. “Pede ao Nelson para me substituir” — e voltou correndo para o hotel.
Nelson Pereira dos Santos participava com “Vidas secas”, enquanto Cacá Diegues apresentava “Ganga Zumba” na Semana da Crítica, completando a excepcional presença brasileira no XVIII Festival de Cinema.
Ele teve duas tarefas: uma, ter que provar que Baleia, apesar da denúncia de um repórter parisiense, não tinha morrido em “Vidas secas”. Era encenação. O desmentido só funcionou quando a cadela chegou na primeira classe da Air France e foi recebida em Cannes como celebridade.
A outra missão de Nelson foi também complicada: satisfazer a curiosidade dos jornalistas na entrevista coletiva sobre o filme do amigo. Haviam gostado, mas sem entender bem.
Riam, por exemplo, quando era pronunciado o nome de Dadá, mulher de Corisco, associando-o ao dadaísmo, um movimento artístico de negação a tudo.
“Um diabo louro e um deus negro, o que quer dizer isso?”, perguntava um americano.
“O que ele pretendeu com ‘o sertão vai virar mar e o mar virar sertão?’”, queria saber o francês.
“Antonio das Mortes (o matador) é a ditadura militar?” E assim por diante. Acho que nunca Nelson teve tanto trabalho de explicar um filme.
Esperava-se que “Deus e o diabo” ganhasse o grande prêmio, e quase ganhou. Quem desequilibrou a disputa em favor de “Os guarda-chuvas do amor”, de Jacques Demy, foi o jurado soviético, alegando que o filme de Glauber era “subversivo demais”. Quer dizer: aqui ele era considerado subversivo pela ditadura, e, lá, por um comunista.
Não seria a primeira vez que ele iria desorientar a direita e a esquerda com sua obra e suas opiniões políticas.