por Paulo Moreira Leite
Após a vitória democrática no STF, quando nove empresários e executivos deixaram a cadeia onde permaneciam sem culpa formada há cinco meses e meio, os aliados do juiz Sergio Moro reaparecem com a conversa sobre a “sensação de impunidade” que essa medida pode causar.
Estamos falando de sensação, ou seja “impressão captada pelos órgãos dos sentidos visual, olfativo, gustativo,” nas palavras do Houaiss. Não estamos falando dos fatos. Nem de uma discussão racional sobre a decisão de Teori Zavaski, que na minha opinião se baseou numa visão puramente técnica das leis em vigor no país — e até poderia ter sido tomada há mais tempo. O argumento procura fugir do debate que importa. Fala de “sensações” que podem ser produzidas, construídas, manipuladas, e dificilmente serão contestadas. Alguma coisa mais próxima da música, do cheiro, do paladar.
As sensações são uma grande arma da política, sabemos todos, e garantem honorários milionários a marqueteiros e seus ajudantes.
Na década de 1980, o governador Franco Montoro, então no MDB, implantou uma política de direitos humanos em São Paulo. O objetivo, digno de todo apoio, era impedir a violência policial, que prendia, torturava e executava suspeitos apanhados pela polícia. Verificou-se, então, uma situação curiosa. Os herdeiros da ditadura militar eram partidários até da tortura como método de investigação mas ficavam constrangidos de assumir essa visão em público. Não pegava bem. Eles preferiam esconder-se atrás da “sensação” de que que os criminosos podiam agir impunemente, que a polícia estava de mãos amarradas pelos “direitos dos bandidos” e assim por diante. Não era preciso debater a importância de um país respeitar os direitos de pobres e ricos, brancos e negros, homens e mulheres. Nem debater possíveis erros, desvios, imperfeições. Aliás, nem era preciso falar a favor — ou contra — a volta da tortura. Bastava colocar-se numa fingida posição de observador, sem partido, sem ponto de vista.
Foi assim, através de um condomínio de delegados, ex-policiais e jornalistas articulados para combater uma proposta política determinada se construiu uma “sensação” em São Paulo. Com o passar dos anos, essa visão ganhou corpo e expressão, servindo de bases para ataques ao governo e a uma nova direita civil, captada pelo antropólogo Antonio Flavio Pierucci num trabalho de pesquisa junto a eleitores nos bairros de classe média da cidade. Num depoimentos captados por Pierucci a sensação gerava seu efeito máximo, que é transformar-se em fantasia: uma cidadã de classe média jurava que os direitos humanos haviam gerado tanta mordomia aos criminosos que eles até tomavam champagne na prisão.
Num país onde a criminalização da atividade política recomenda que a justiça se faça com penas duras, julgamentos espetaculosos e um desprezo assumido pela presunção da inocência, toda vez que uma porta de cadeia se abre muita gente é levada a imaginar que se encontra em situação de risco. A questão não é julgar — é punir, de qualquer maneira.
Isso é ainda mais verdade na república de Sérgio Moro, adepta, nas palavras do ministro Marco Aurélio Mello, da prática de “prender para depois apurar.” Mas não é de surpreendente num universo cultural e político que se move por olfato, audição, paladar. Este mundo dispensa todo esforço para examinar os fatos em sua complexidade. Considera perda de tempo conhecer os argumentos de todas as partes e faz o possível para calar as vozes discordantes, insuportáveis. A política de “sensação” estimula movimentos autoritários, que sempre dão a “sensação” de que alguma coisa está sendo feita.
Mas é hora de denunciar golpes tão baixos e mostrar seu caráter ridículo. Falar em “sensação de impunidade” num país onde as as operações policiais se multiplicaram por mais de 100 vezes é um bom argumento para quem quer fingir-se de louco.
Tenho certeza de que, com a chegada dos tempos modernos, quando as fogueiras da Inquisição foram apagadas, eliminando a prática de tortura e a morte de hereges, muitos fiéis foram levados a cultivar a “sensação” de que as forças das Treva ganhavam terreno, o fim dos tempos se aproximava e assim por diante. Engano. Era só a humanidade que havia conseguido avançar um pouquinho.
Foi isso o que ocorreu no STF - Supremo Tribunal Federal -.