O destino de Luiz Inácio Lula da Silva, a ser resolvido pelo Supremo Tribunal Federal, num pedido de habeas corpus entregue a ministra Rosa Weber, será um bom termômetro para se medir o alcance do ataque às liberdades democráticas e direitos individuais em curso no país em fins de março de 2016.
Em 1981, quando Lula foi preso pelo regime militar durante as greves no ABC, o ato serviu para definir os limites da democratização, que avança sob a ditadura militar. Em 2016, assistimos a um movimento no mesmo estágio, mas que avança na direção inversa.
A dúvida é saber até onde o bloco jurídico-midiático que combate o governo irá avançar na redução de direitos e liberdades, dado que pode se tornar o ponto-chave do próximo período.
Os fatos estão claros. Convidado a ocupar a Casa Civil, na condição de cidadão que não é réu nem enfrenta condenações que permitiriam que fosse enquadrado na lei Ficha Limpa, Lula está impedido de assumir o cargo por decisão liminar do ministro Gilmar Mendes. O motivo? A suspeita de que a indicação para o ministério não passa de uma fraude para permitir que as acusações contra ele sejam investigadas pelo Supremo Tribunal Federal, em vez de conduzidas pelo juiz Sérgio Moro, em Curitiba. Sem receio de antecipar eventuais passos da Lava Jato, Gilmar afirmou:
"O objetivo da falsidade é claro: impedir o cumprimento de ordem de prisão de juiz de primeira instância. Uma espécie de salvo conduto emitida pela Presidente da República", afirmou Gilmar na decisão. Tratando do mesmo assunto, em 2002, na hora em que o debate era de seu interesse, Fernando Henrique Cardoso defendeu a instituição permanente do foro privilegiado como uma medida "adequada" para casos de "perseguição política" de ex-presidentes e outras autoridades, como você poderá ler alguns parágrafos adiante.
A alegação de que Lula estaria usando o ministério como um atalho para escapar de investigações da Lava Jato, em função do foro privilegiado, carece de um ponto fundamental. Pode parecer uma verdade cristalina aos olhos de seus adversários mas não se sustenta em fatos, que devem ser a matéria prima da Justiça.
Apesar de todo estardalhaço produzido a partir de um diálogo gravado entre Dilma e Lula sobre um "termo de posse", até agora não se demonstrou com dados inquestionáveis que o convite para integrar o governo não passava de uma grosseira manobra para impedir que a Justiça continue investigando o ex-presidente.
Vamos combinar: do ponto de vista político, seria ridículo alegar que Lula, ainda hoje o melhor presidente da história aos olhos da maioria dos brasileiros, é um personagem incapacitado para assumir o principal ministério da República, certo? Considerando as dificuldades profundas enfrentadas pelo governo de sua sucessora, é bastante razoável supor que ele tenha sido mobilizado para ajudar no esforço para quebrar o isolamento do governo.
Do ponto de vista jurídico, aceitar a visão de que ele e Dilma se acertaram para abrir um atalho para a impunidade equivale aceitar a premissa de que o Supremo Tribunal Federal não passa de uma instituição complascente e tendenciosa. É uma afirmação grave e inaceitável sobre o órgão de cúpula do Judiciário, que tem a prerrogativa de interferir a qualquer tempo sobre o andamento de todos os processos em curso no país -- inclusive na Operação Lava Jato.
"A prerrogativa de foro não impede a investigação nem a paralisa," afirma Claudio Lagroiva Pereira, professor de Direito Penal da Pontifícia Universidade Católica, de São Paulo. "As acusações continuarão a ser sendo apuradas e investigadas. "Em 2012, no julgamento da AP 470, o STF mandou o chefe da Casa Civil, o presidente do Partido dos Trabalhadores e o presidente da Câmara de Deputados para a prisão. Dez anos antes, como recordam advogados de Lula no pedido de habeas-corpus, ocorreu um caso exemplar e didático.
Em 2002, no julgamento da RCL 2138 e RCL 2186, o mesmo Gilmar Mendes que pré-julgou Lula concedeu prerrogativa de foro para três ministros de Fernando Henrique Cardoso, cujo mandato chegava ao final: Pedro Malan, Pedro Parente e José Serra. O curioso é que a prerrogativa de foro não se extinguiu em janeiro de 2003, quando o governo FHC terminou. Foi estendida pelos anos seguintes, quando Malan, Parente e Serra já não ocupavam postos no ministério. No total, prolongou-se por 14 anos, estabelecendo uma jurisprudência que, se fosse aplicada a Lula, lhe daria foro privilegiado até 2024.
Nos últimos dias de seu governo, Fernando Henrique fez mais. Apoiou e sancionou a lei 10.628, aprovada pelo Congresso, que garantia foro privilegiado a ex-presidentes e ex-ministros acusados de crimes ocorridos no exercício de seus mandatos. Numa entrevista a Folha de S. Paulo, cinco dias antes da transmissão da faixa para o sucessor Lula, FHC disse:
"Eu sanciono. Sou favorável. Não é privilegiado, é adequado. Não tem sentido nenhum que um ex-ministro, um ex-presidente ou o que seja, tenha que responder por perseguição política, processo que não tem nenhum fundamento mas que, em qualquer lugar, alguém pode fazer", concluiu o ainda presidente, ouvido pelos repórteres em Buritis, localidade da fazenda que comprou em sociedade com o empresário Sérgio Motta, tesoureiro das principais campanhas tucanas do período. (A lei foi declarada inconstitucional pelo Supremo, em 2005.
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