A presunção de inocência representa talvez a mais importante das salvaguardas
As constituições modernas surgiram na esteira das revoluções liberais do século 18 como expressão da vontade do povo soberano, veiculada por seus representantes nos parlamentos.
Desde então, revestiram-se da forma escrita para conferir rigidez aos seus comandos eis que foram concebidas como instrumentos para conter o poder absoluto dos governantes, inclusive dos magistrados.
Apesar de sua rigidez, logo se percebeu que as constituições não poderiam permanecer estáticas, pois tinham de adaptar-se à dinâmica das sociedades que pretendiam ordenar, sujeitas a permanente transformação. Se assim não fosse, seus dispositivos perderiam a eficácia, no todo ou em parte, ainda que vigorassem no papel.
Por esse motivo, passou-se a cogitar do fenômeno da mutação constitucional, que corresponde aos modos pelos quais as constituições podem sofrer alterações.
Resumem-se basicamente a dois: um formal, em que determinado preceito é modificado pelo legislador ou mediante interpretação judicial, e outro informal, no qual ele cai em desuso por não corresponder mais à realidade dos fatos.
Seja qual for a maneira como se dá a mutação do texto constitucional, este jamais poderá vulnerar os valores fundamentais que lhe dão sustentação.
A Constituição Federal de 1988 definiu tais barreiras, em seu art. 60, 4º, denominadas de cláusulas pétreas, a saber: a forma federativa de Estado; o voto direto, secreto, universal e periódico; a separação dos Poderes; e os direitos e garantias individuais.
A presunção de inocência integra a última dessas cláusulas, representando talvez a mais importante das salvaguardas do cidadão, considerado o congestionadíssimo e disfuncional sistema judiciário brasileiro, no bojo do qual tramitam atualmente cerca de 100 milhões de processos a cargo de pouco mais de 16 mil juízes, obrigados a cumprir metas de produtividade pelo Conselho Nacional de Justiça.
Salta aos olhos que em tal sistema o qual, de resto, convive com a intolerável existência de aproximadamente 700 mil presos, encarcerados em condições sub-humanas, dos quais 40% são provisórios multiplica-se exponencialmente a possibilidade do cometimento de erros judiciais por magistrados de primeira e segunda instâncias.
Daí a relevância da presunção de inocência, concebida pelos constituintes originários no art. 5º, LVII, da Constituição em vigor, com a seguinte dicção: ninguém será considerado culpado até o trânsito em julgado de sentença criminal condenatória, o que subentende decisão final dos tribunais superiores.
Afigura-se até compreensível que alguns magistrados queiram flexibilizar essa tradicional garantia para combater a corrupção endêmica que assola o país.
Nem sempre emprestam, todavia, a mesma ênfase a outros problemas igualmente graves, como o inadmissível crescimento da exclusão social, o lamentável avanço do desemprego, o inaceitável sucateamento da saúde pública e o deplorável esfacelamento da educação estatal, para citar apenas alguns exemplos.
Mesmo aos deputados e senadores é vedado, ainda que no exercício do poder constituinte derivado do qual são investidos, extinguir ou minimizar a presunção de inocência.
Com maior razão não é dado aos juízes fazê-lo por meio da estreita via da interpretação, pois esbarrariam nos intransponíveis obstáculos das cláusulas pétreas, verdadeiros pilares de nossas instituições democráticas.
Enrique Ricardo - Lewandowski - Bacharel em ciências políticas e sociais pela Escola de Sociologia e Política de São Paulo e em ciências jurídicas e sociais pela Faculdade de Direito de São Bernardo do Campo, mestre e doutor pela Faculdade de Direito de São Paulo, além de mestre (1981) em relações internacionais pela The Fletcher School of Law and Diplomacy, da Tufts University, nos Estados Unidos. e ministro do Supremo Tribunal Federal.
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