Explico o título da postagem usando o raciocínio "lógico intuitivo". Defendendo o acordo que fizeram com a Petrobras, os procuradores Deltan Dallagnol, Pozzobom e Carlos Fernando disseram que: “há os que não leram e criticam; há os que leram, não entenderam, e criticam; e há os que leram, entenderam, e, por má-fé, criticam”. Conclusão: como a PGR Raquel Dodge ingressou com ADPF (aqui) no STF para chumbar o acordo da Força Tarefa do MPF com a Petrobrás, só pode ter agido de má-fé, eis que leu o acordo, entendeu-o e o criticou, duramente. Correto o raciocínio, pois não?
Assim, desculpe-me, Dra. Raquel Dodge, pelo título da coluna, mas não poderia deixar de fazer esse raciocínio a partir do dito por Deltan e Carlos Lima. Minha solidariedade à Senhora Procuradora-Geral da República. E a todos, juristas, magistrados, jornalistas e jornaleiros, que, “por má fé” (sic), leram, entenderam e criticaram o ilegal acordo.
Sigo, pois. Estava com a coluna pronta quando li a ADPF que Dodge intentou junto ao STF para repor a legalidade no affair Petrobras-EUA-MPF-Força Tarefa-Lava Jato. A ADPF é autoexplicativa. As críticas aos firmatários do acordo são duras, a exemplo do que já o fizera o jornalista Élio Gaspari, quem disse que os membros do MPF superdimensionaram seus poderes, em artigo na Folha de São Paulo. Também o Ministro Marco Aurélio já havia feito crítica ao tal acordo.
A história: no ano passado, a Petrobras e o governo dos Estados Unidos da América firmaram um acordo pelo qual a empresa brasileira dá fim aos seus litígios com as autoridades americanas. O valor da multa a ser paga beirou aos U$ 3 bilhões. Foi feito um contrato (acordo) pelo qual o equivalente a R$ 2,5 bilhões seria pagos às “autoridades brasileiras” (“Brazilian authorities” – as destinatárias do dinheiro).
No começo de 2019, o Procurador Deltan Dallagnol, chefe da força tarefa do MP na Lava Jato, e outros 11 procuradores assinaram um acordo com a Petrobras pelo qual o dinheiro que deveria ir para as “Brazilian authorities” foi para uma conta aberta numa agência da Caixa Econômica de Curitiba em nome do Ministério Público Federal. Quem maneja essa conta? Raquel Dodge? Que coisa é essa MPF abrindo conta? Quem é o gerente que autorizou? Bom, a Dra. Raquel Dodge diz, na ADPF, que os firmatários não tinham competência ou atribuição para firmarem esse acordo. Firmaram sem ter poder para tal.
Qual é o problema? Simples. O valor de R$ 2,5 bilhões deveria ser depositado na conta do Tesouro Nacional, conforme posição de toda a doutrina, do TCU e do STF.
A Força Tarefa cometeu grave erro. Dalagnoll exorbitou de suas funções, para ser bem eufemista. A juíza de Curitiba, que entrou na onda, também cometeu grave erro ao homologar o acordo. Dodge pediu a nulidade da decisão judicial de homologação do Acordo de Assunção de Compromisso, firmado entre o MPF e a Petrobras, relacionado ao Non Prosecution entre Petrobras e DoJ e à cease-and-desist order da SEC, e do próprio Acordo estabelecido entre a Petrobras e o MPF.
A ABJD – Associação Brasileira de Juristas pela Democracia – protocolou pedido de informações na PGR, pedindo esclarecimentos sobre os acordos firmados pela Petrobras com os EUA e o acordo do MP com a Petrobras. Há muita coisa a ser esclarecida. Uma das questões é: o Ministério das Relações Exteriores foi acionado? O Ministério da Justiça participou do acordo? Qual foi a base legal dos acordos?
Veja-se a gravidade da situação. Veja-se a saia justa que Dellagnol e seus companheiros criaram. Dodge chega a dizer que o acordo coloca em risco a credibilidade da Instituição, motivo pelo qual pediu liminar na ADPF.
Se a moda pega, como diz o advogado e professor paraibano Carlos Octaviano Mangueira, poderemos ter coisas como: “Senhor, recuperamos sua carteira furtada, mas poderia deixar uma parte do dinheiro na delegacia para melhorarmos a segurança?”. Aliás, a ironia do Dr. Carlos faz com que nos perguntemos, a sério, sobre o generoso acordo Petrobras feito nos EUA e coisas como “por qual razão a vítima paga multa”? Não é ela que foi lesada, e muito? Vítima de corrupção, em vez de ser ressarcida, ressarce? Sim, sei que multa não vai direto para a conta da vítima, mas, qual foi mesmo a composição do montante? Como é mesmo a real história que envolve esse imbróglio? A ver.
A (esquecida) equidistância e isenção que deve ter o MP
Por fim, antes que Dallagnol e os signatários do acordo pensem que há uma conspiração contra a lava jato ou contra o MPF, peço serenidade. Sou, digamos assim, da base aliada. Sou aquele que sempre defendeu o poder investigatório com unhas e dentes (basta ver o livro que Luciano Feldens e eu escrevemos sobre o tema, afora os artigos aqui na ConJur), passo a passo, trincheira por trincheira.
Sou aquele membro do MP, e agora ex-membro, quem sempre defendeu o papel de magistratura para o MP, só que com um ônus, que nenhum dos membros da força tarefa quer assumir: o de o MP investigar também em favor da verdade se esta favorecer ao réu, como, aliás, diz, claramente, o Estatuto de Roma, que volta e meia é invocado na lava jato. Mas, lamentavelmente parece que o MP enveredou pelo caminho do agir estratégico, de agir como parte, como se fosse um advogado de acusação. Só que não quer o ônus de ser parte. Só o bônus. Sempre há tempo para cumprir a Constituição e ser a Instituição que fiscaliza a lei e honra a memória do “pai do MP”, Alfredo Valadão. E cumpre a CF. E não coloca em risco a credibilidade do MPF.
Numa palavra final, defendo, há décadas, que o MP, por previsão constitucional – porque possui as garantias da magistratura – deve atuar com isenção e imparcialidade, não fazendo agir estratégico.
Aliás, na página 18 da ADPF assinada por Dodge leio, com satisfação, que o MP não pode “perder a essência da sua atuação, que é a independência funcional pela equidistância das partes envolvidas nos litígios”. Equidistância é imparcialidade. E é isenção. Bingo, Senhora Procuradora-Geral da República. Vamos levar isso a sério. Em toda a atuação do MP.
Aliás, bem que poderíamos aproveitar para comunicar essa “questão constitucional” (agir com equidistância) à toda a comunidade ministerial, especialmente depois que “transitou em julgado” a seguinte passagem no ACr 5046512-94.2016.404.7000/TRF,[1] item 9, em que o TRF4 assim decidiu:
Não é razoável exigir-se isenção dos procuradores da República que promovem a ação penal.
À época, Senhora Procuradora-Geral da República, escrevi a respeito, sugerindo que o MP fizesse veementes, duros e incisivos embargos de declaração à decisão. Mas não fui ouvido. Hoje, ao ler a ADPF, fico satisfeito em ver que Vossa Excelência não concorda com essa parte da aludida decisão! Saludo!
[1] Escrevi sobre isso no Livro 30 anos da CF em 30 julgamentos – uma radiografia do STF, editora Gen Forense, pp. 256-257, verbis: “Portanto, está na hora de o MP decidir se quer ser composto por “promotores públicos 2.0″ ou por membros de uma magistratura independente, equidistante, imparcial e isenta”.
Lenio Luiz Streck é jurista, professor de Direito Constitucional e pós-doutor em Direito. Sócio do escritório Streck e Trindade Advogados Associados: www.streckadvogados.com.br.
por Lenio Luiz Streck no Conjur
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