Nossas elites, com exceção de poucas personalidades lúcidas e honradas, valem pouca coisa, se é que valem alguma. O povo carrega o país para a frente

Em um dos seus discursos, na pregação democrática que conduziu à transição, Tancredo Neves disse que a construção da nacionalidade se deve mais ao povo do que às elites. Os ricos têm seus bens, algumas vezes até mesmo fora do país. Os pobres só têm o patrimônio comum da nação, com seus heróis e seus símbolos. É em razão disso que os trabalhadores, de modo geral, quando ascendem ao poder, mediante as poucas oportunidades que surgem, contribuem para o crescimento do país. Nada mais expressivo, nessa constatação, do que o exemplo de Lula. Ele pode encerrar a sua vida política hoje, se quiser: o que fez, no exercício do poder, já o consagra na História.
Mas o Brasil tem seus competidores e inimigos externos – além dos inimigos internos. Não se sabe exatamente quais são os piores. A leitura dos grandes jornais brasileiros e o acompanhamento dos principais programas de televisão levam as pessoas desatentas a imaginar que nos encontramos no pior dos mundos. É certo que não podemos levantar um muro sanitário ao longo de nossas fronteiras, de forma a impedir a repercussão interna das crises econômicas, temos ocupado na economia mundial uma posição sólida, com presença crescente em todas as regiões do planeta.
Uma de nossas grandes vantagens é a amplitude do mercado interno. As políticas compensatórias nos permitiram o aumento do consumo, primeiro, de alimentos e, em seguida, de bens duráveis, o que repercutiu no crescimento do emprego, da massa salarial e da poupança, com o dinamismo geral da economia. Tivemos o cuidado de não expor demasiadamente a economia ao comércio internacional, de forma a manter, no teto confortável de 12% do PIB, o valor de nossas exportações. Não somos, como outras nações, assim tão dependentes do mercado externo.
Os esforços nacionais, na formação de saldos no balanço de pagamentos, nos transformaram no terceiro maior país credor dos Estados Unidos – depois da China e do Japão – e o maior credor no mundo ocidental. Em março deste ano, segundo informações oficiais do Tesouro norte-americano, eles nos deviam US$ 258,6 bilhões, US$ 5 bilhões a mais do que no fim do ano passado.
Nos últimos meses, os Estados Unidos têm empurrado o México a tentar confronto inútil com o Brasil, na disputa de influência na América Latina. Há uma enorme diferença entre o Brasil e o México, na divisão internacional do trabalho. O México é a etapa final de maquiagem de produtos das multinacionais norte-americanas e de terceiros países, destinados aos Estados Unidos e aos outros países do Nafta, o tratado de livre-comércio firmado em 1991 entre as três nações da América do Norte, para onde se dirigem 90% das exportações. O Brasil, é certo, exporta menos que o México, mas exporta para todos os continentes, e bens realmente produzidos em nosso território – e não simplesmente aqui maquiados.
Todos esses êxitos, somados, refletem-se em nossa posição política no mundo, e estimulam o patriotismo, mas é preciso ter cautelas. Não podemos fazer disso instrumento de orgulho, sobretudo em nossas relações com os vizinhos. Se quisermos influir no continente, devemos não apregoar a superioridade territorial nem os resultados econômicos. A América do Sul só será poderosa se for a soma entre iguais, não obstante as suas dimensões geográficas e políticas – e esse, que poderia ser o caminho natural, é trecho difícil de ser percorrido. A diplomacia brasileira, que vem obtendo êxitos, como a eleição do embaixador Roberto Azevêdo para o posto de diretor-geral da Organização Mundial do Comércio, terá de redobrar a sua prudência.

Tia Fifa

por Luis Fernando Veríssimo
Uma visita da tia Fifa causa alvoroço nas famílias. Ela anuncia a visita com antecedência para a família se preparar. Porque a tia Fifa é exigente. Quer que, quando chegar, tudo esteja perfeito. E não aceita explicações.

Quando chega, a tia Fifa passa o dedo nos móveis com luva branca, atrás de poeira. Examina as unhas de todo o mundo. Procura sujeirinha atrás de todas as orelhas e cheira todas as meias. Inspeciona as novas instalações que mandou construir antes de chegar, de acordo com especificações rigorosas. E ai de quem reclamar.
— Tia Fifa, nós somos pobres...
— Não interessa. Pobreza não é desculpa para desleixo. A África do Sul também era pobre e minha visita lá foi um sucesso. As instalações que mandei construir ficaram lindas. Impressionantes, imponentes...
— E imprestáveis. Dizem que eles não sabem o que fazer com as instalações que a senhora deixou lá, depois da sua visita...
— Bobagem. São belíssimas.
É importante saber que a tia Fifa não é como é por insensibilidade ou elitismo desvairado. Suas exigências, que parecem irrealistas, obedecem a um desejo de ordem social e estética. A tia Fifa sonha com um mundo limpo, em que as desigualdades entre ricos e pobres desaparecem desde que todos sigam as mesmas regras e tenham o mesmo gosto, e por isso a convidam.


— Mas tia Fifa, o dinheiro que nós vamos gastar para que a casa fique como a senhora quer não seria mais bem aproveitado na educação das crianças, ou na...
— Isso já não me diz respeito. Me convidaram e eu irei. Acabem as instalações que eu pedi no prazo e ponham a casa em ordem. E mais uma coisa:
— O que, tia Fifa?
— Você está com mau hálito. Providencie.

Nassiff: O Cândido

A chance de se implantar a democracia digital

Autor: 
Esgotada a fase das passeatas e manifestações públicas, com algumas recaídas aqui e ali, o país entrará na fase do pós-manifestações.
Então, haverá desafio para estadista nenhum botar defeito. Quem entender os novos tempos, se consagrará; quem não entender, estará fora do jogo.
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Qualquer estratégia política não pode ignorar as características dos novos tempos:
  1. O campo político, doravante, é o online, as redes sociais. São as novas ágoras, as praças púbicas das democracias gregas. Não dá para fugir da arena.
  2. As decisões políticas de gabinete estão definitivamente superadas. O país já avançou com a Lei de Transparência, que expõe alguns dados a posteriori. Terá que começar a trabalhar com formas de democracia direta.
  3. O cidadão entrou, finalmente, no centro das políticas públicas. Na segunda-feira, por exemplo, no embalo das manifestações, a OAB (Ordem dos Advogados do Brasil) anunciará uma comissão de juristas para trabalhar a Lei de Proteção aos Direitos do Usuário de Serviços Públicos. É típica reação civilizatória contra um dos pontos centrais de abuso, a ausência de Estado na regulação dos serviços públicos.
  4. O atual arcabouço político-partidário envelheceu irreversivelmente. Não haverá como fugir ao tema central da reforma política, definindo formas que eliminem, de vez, os financiamentos privados de campanha.
  5. É hora de se repensar a questão da militarização da Polícia Militar.
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A presidente da República Dilma Rousseff tem a faca e o queijo na mão. Se tiver discernimento, as manifestações poderão se constituir no empurrão definitivo para lançar o país em uma nova etapa da democracia.
Há um roteiro à vista, a ser protagonizado por Dilma.
O primeiro passo é radicalizar uma iniciativa sua, a Lei da Transparência – que obriga todos os órgãos públicos a disponibilizarem dados na Internet. Já existem experiências no Brasil e no mundo, sobre o uso inteligente das redes sociais para fiscalização de obras e serviços públicos.
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Tome-se o caso dos transportes urbanos em São Paulo. Embora atropelado pelos fatos, o prefeito Fernando Haddad é um dos políticos com cabeça mais aberta para participação popular.
Ora, aproveite o impulso dado pelo Movimento Passe Livre e exponha todos os dados das empresas de transporte à fiscalização das redes sociais. Coloque os GPs dos ônibus, as rotas seguidas, o número de passageiros de cada trajeto, os dados do trajeto, as planilhas de custos e peça a parceria da rapaziada, ensinando como analisar os dados e como disciplinar as empresas.
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Já existem ferramentas tecnológicas para monitoramento de obras públicas, para análises de contratos, para montar fóruns de discussão, para captar os sentimentos nas redes sociais. Através de um sistema de redes, o governo não ficará prisioneiro de indicadores que, muitas vezes, servem de biombo para esconder funcionários relapsos.
Sem rompantes, Dilma abriu os dados públicos com a Lei de Transparência. É hora de avançar e expor os sistemas de decisão aos olhos das redes sociais.
A crise, se bem interpretada, poderá permitir ao Brasil montar o primeiro movimento sério de cidadania digital.

Jânio de Freitas: Entre baderna e política

O tipo é bem conhecido. É aquele que anda em bandos para criar brigas ferozes, não raro mortais, a caminho dos estádios e depois nas arquibancadas. E arma brigas, não raro mortais, nas casas noturnas da pesada. E agride gays, e sempre em bando destrói partes de ônibus e de metrô, arrebenta nas ruas o que puder. A indumentária de todos é igual, o aspecto de suor e sujeira é igual em todos, a linguagem comum a todos é um dialeto da pobreza mental. São os exemplares mais completos da falta de civilidade.
Esses são aos autores dos ataques, a prédios oficiais e outros alvos, que se diz decorrerem da “insatisfação generalizada” da população. E exprimirem o repúdio geral aos políticos, aos partidos e aos governos.
Uma semana antes da sociedade aproveitar a rejeição das novas passagens para mostrar sua “insatisfação generalizada”, o Datafolha mostrava Dilma Rousseff capaz de vencer no primeiro turno qualquer combinação de adversários, apesar da perda de oito pontos em sua aprovação. Na véspera daquela manifestação, o Ibope constatava o mesmo, com igual perda, mas com maior aprovação.
Que uma das pesquisas errasse, seria admissível. Não as duas, com indicações tão equivalentes e diferenças cabíveis nas margens de erro. Nelas não aparece a “insatisfação generalizada”, mas cabem ainda os efeitos do Bolsa Família, dos ganhos do salário mínimo, do desemprego em um dos níveis mais baixos do mundo (os Estados Unidos comemoram seus 7,6%, aqui é de 5,8% e estabilizado), ganho real na massa de salários, e outros fatores que fazem uma reviravolta de melhorias em dezenas de milhões de famílias.
A ideia de “insatisfação generalizada” facilitou aos que, perplexos com a grandiosidade das manifestações, ainda assim precisávamos dar pretensas explicações dos fatos. “Análises”, dizem. Mas quais são as indicações convincentes de tamanha e tão disseminada insatisfação, isso não foi sequer sugerido.

O mais urgente:: conversar sobre o Brasil

A democracia deve ser exercida ali onde está o poder. Não há nada mais precioso na vida de uma Nação do que o momento em que o poder se define nas ruas. Assegurar que ele seja um poder democrático é a tarefa mais urgente no Brasil nesse momento.As forças progressistas, preocupadas com os rumos das legítimas manifestações de massa em todo o país, tem uma tarefa simples, prática, urgente e incontornável. Reunir-se em todos os fóruns possíveis para exercer a democracia dando-lhe um conteúdo propositivo. Conversar sobre o Brasil. Entender o momento vivido pelo Brasil. Formular e reforçar  linhas de passagem  entre o país que já temos e aquele que queremos. Como bem disse a Presidenta Dilma em seu discurso, 6ª feira: ‘Precisamos oxigenar o nosso sistema político. É a cidadania , e não o  poder econômico, quem deve ser ouvido em primeiro lugar'. É preciso dar organicidade a esse princípio. Os valores que vão ordenar a travessia para o novo ciclo do desenvolvimento brasileiro estão sendo sedimentados nos dias que correm. As forças progressistas devem participar ativamente da carpintaria que definirá essa moldura histórica. Como? Organizando-se para ir às ruas. Reunindo-se previamente para conversar  sobre o Brasil. Em núcleos de base dos partidos, nos diretórios, sindicatos, nas ONGs,  nos locais de trabalho, nos círculos de vizinhança, nas escolas, nos condomínios, com a  turma do futebol e a do facebook. Na 6ªfeira, por exemplo, cerca de  800 pessoas, representando 80 entidades, reuniram-se no Sindicato dos Químicos, em São Paulo, à convite do MST. Em pauta: mobilizar um milhão de pessoas na capital, em defesa de um Brasil onde a democracia participativa  paute o destino da sociedade e o futuro do  desenvolvimento. Neste sábado, na Casa da Cidade, mais de 200 intelectuais, sindicalistas e integrantes do PSOL, PSTU, PT reuniram-se com igual espírito.  (LEIA MAIS  AQUI)

Carlos Chagas: Chega! Basta!

“De boas intenções o inferno está cheio”, dizia o refrão popular. Está na hora de refluir  o movimento pelo passe livre e demais reivindicações. É imprescindível que os jovens deixem as ruas. Obtiveram sucesso. Em quase todas as cidades do  país os prefeitos revogaram o aumento das passagens dos transportes coletivos. Provavelmente o governo federal tomará a iniciativa de investir mais em educação e saúde.

Então, chega! Basta! Porque as manifestações ditas pacíficas transformaram-se na  guerrilha urbana mais violenta de nossa História. Por certo que sem desejar a imensa baderna que nos assola, os líderes não tiveram força para impedir a ação do que chamam de minorias empenhadas em depredar, invadir, assaltar e destruir. Minorias? Há dúvidas. São esses animais que  hoje chefiam  o movimento de protesto. Filmados e fotografados, mas não presos, eles instituíram a violência como regra, aproveitando-se da ingenuidade da maioria. Ou da complacência, talvez conivência, também.
                                                               
Está demonstrado que as autoridades públicas tornaram-se incapazes de preservar a ordem. Policiais militares fugindo só não é imagem mais deprimente do que policiais militares atirando sobre a multidão, mesmo quando as balas são de borracha. Prédios públicos atingidos, lojas comerciais saqueadas, avenidas sitiadas e gente ferida – é esse o saldo dos protestos urbanos que já duram dez dias.  Até agora, um cadáver, mas quantos outros,  se a baderna continuar?
                                                               
Vem à lembrança o episódio  do aprendiz de feiticeiro. Passou a hora de ficar apenas elogiando as  monumentais  passeatas, a coragem  dos jovens em  reivindicar  melhores condições de vida e mais eficientes estruturas institucionais. Aplausos para eles, mas chega! Basta! Os efeitos da iniciativa tornaram-se incontroláveis. As criaturas ultrapassaram os criadores. Para interromper o vandalismo generalizado que  conquista cada vez mais adeptos,  a solução deixa de passar pelas polícias. Está provada a insuficiência delas. É preciso interromper essa prática antes dita democrática e agora transformada em portal do caos.
                                                               
Se houver patriotismo e bom senso por parte dos líderes e do conjunto de manifestantes, devem ficar em casa. Deixar que  os animais fiquem sozinhos e  isolados,  se decidirem continuar.

O gosto e a língua


 
– Um mestre zen descansava com seu discípulo. A certa altura, tirou um melão do seu alforje, dividiu-o em dois, e ambos começaram a comê-lo.
 
No meio da refeição, o discípulo comentou:
– Meu sábio mestre, sei que tudo que o senhor faz tem um sentido. Dividir este melão comigo talvez seja um sinal de que tem algo a me ensinar.
O mestre continuou a comer em silêncio. 
– Pelo seu silêncio, entendo a pergunta oculta – insistiu o discípulo.
– E deve ser a seguinte: o gosto que estou experimentando ao comer esta deliciosa fruta está em que lugar: no melão ou na minha língua?
O mestre não disse nada. O discípulo, entusiasmado, prosseguiu: 
– E como tudo na vida tem um sentido, eu penso que estou perto da resposta a esta pergunta: o gosto é um ato de amor e interdependência entre os dois, porque sem o melão não haveria um objeto de prazer, e sem a língua...
– Basta! – disse o mestre. – Os mais tolos são aqueles que se julgam os mais inteligentes, e buscam uma interpretação para tudo! O melão é gostoso, isto é suficiente, e deixe-me comê-lo em paz!