Ahmadinejad no Brasil: O que de fato está em jogo


VALTER POMAR
CESAR OGATA/divulgação
VALTER POMAR
Secretário de Relações Internacionais do PT

Vivemos uma situação mundial de crise & transição: 


a) crise do ideário neoliberal, num momento em que o pensamento crítico ainda se recupera de duas décadas de defensiva político-ideológica; 


b) crise da hegemonia estadunidense, sem que haja um hegemon substituto, o que estimula a formação de blocos regionais e alianças transversais; 


c) crise do atual padrão de acumulação capitalista, sem que esteja visível qual será a alternativa sistêmica; 


d) crise do modelo de desenvolvimento conservador & neoliberal na América Latina e no Brasil, estando em curso a transição para um pós-neoliberalismo cujos traços serão definidos ao longo da própria caminhada.


Uma situação em que os modelos antes hegemônicos estão em crise, sem que tenham emergido modelos substitutos. O que sugere um período mais ou menos prolongado de instabilidade internacional.


É nesses marcos que se desenvolve a política externa do governo Lula, respeitando em primeiro lugar a Constituição aprovada em 1988, cujo artigo 4º afirma que a “República Federativa do Brasil rege-se nas suas relações internacionais pelos seguintes princípios”: “independência nacional; prevalência dos direitos humanos; autodeterminação dos povos; não-intervenção; igualdade entre os Estados; defesa da paz; solução pacífica dos conflitos; repúdio ao terrorismo e ao racismo; cooperação entre os povos para o progresso da humanidade; concessão de asilo político”.


Com base nesses parâmetros, o governo Lula fez de sua política externa um instrumento para atingir, entre outros, os seguintes objetivos: a) desenvolvimento nacional, integração regional e redução das vulnerabilidades externas; b) fortalecimento do papel do Estado, inclusive em termos de defesa das fronteiras marítimas e terrestres; c) ampliação do papel internacional do país, consolidando relações com outros grandes Estados periféricos, evitando acordos subalternos e investindo fortemente na integração regional.


O governo Lula enfatiza a integração regional; o diálogo com outros grandes Estados periféricos; a ampliação da presença e das relações do Brasil no mundo; a reforma das instituições multilaterais; a reivindicação de uma cadeira permanente para o Brasil no Conselho de Segurança da Organização das Nações Unidas (ONU); a proteção dos interesses nacionais, nas instituições e negociações multilaterais.




O Brasil desenvolve intensa política de cooperação entre os grandes Estados periféricos, através de uma diplomacia dita de “geometria variável”, especialmente com ChinaRússiaÍndia e África do Sul, na busca de criar laços econômicos, sociais, políticos, militares e ideológicos que permitam a convivência, sem subordinação ou dependência, com a (no médio prazo) decadente hegemonia dos Estados Unidos e União Europeia.


O governo Lula vem ampliando os contatos políticos, comerciais e de investimentos, na região latino-americana, mas também na Ásia, no Oriente Médio e na África. Esse esforço multilateral tem colaborado na ampliação e diversificação do comércio internacional do Brasil, sem descuidar das orientações tradicionais da diplomacia brasileira – como o multilateralismo e a paz – cada vez mais temperadas pela explícita disposição de preservar e ampliar a margem de manobra do Brasil.


Destaque-se a oposição do Brasil à guerra dos Estados Unidos contra o Iraque; as posições defendidas pelo Brasil na Comissão e agora Conselho de Direitos Humanos da ONU; a defesa do direito de desenvolvimento de tecnologia para o uso pacífico da energia nucelar; a postura frente aos ataques de Israel contra território palestino; a contribuição para uma solução pacífica das controvérsias envolvendo o Irã e a Coreia do Norte.


É nesses marcos que ocorre o debate sobre a visita do presidente do Irã ao Brasil. Alguns setores defendem que receber Mahmoud Ahmadinejad é endossar sua política interna. Ora, recebemos Bush e Shimon Peres, sem que isso significasse apoio de nenhum tipo para suas políticas internas ou externas, inclusive no terreno do fundamentalismo, do terrorismo e das armas nuclares, nos quais os dois líderes citados não são pombas de paz. Sem falar da fraude eleitoral que deu vitória a Bush.


Alguns críticos defendem também que, em vez de receber, deveríamos rejeitar Ahmadinejad. Ora, isso implicaria considerar verdadeiras todas as críticas que os EUA fazem ao Irã, como se fosse possível esquecer as mentiras sobre as armas de destruição em massa no Iraque. Significaria também radicalizar o confronto. Por fim, implicaria em deixar aos Estados Unidos o papel de interlocutor único.


No fundo, é isso que está em jogo: os que apostam no crescente papel do Brasil como interlocutor internacional versus a cega hipocrisia dos que acreditam que o governo dos EUA defende os interesses da democracia e da paz.

Nenhum comentário:

Postar um comentário