Paulo Moreira Leite: moralismo ajuda a esconder a lei


Os ataques a José Genoíno chegaram a um ponto escandaloso e inaceitável.

Vários observadores se colocam no direito de fazer uma distinção curiosa. Dizem que a decisão de Genoíno em assumir o mandato para o qual foi eleito por 92 000 votos pode ser legal mas é imoral.

Me desculpem. Mas é uma postura  de ditadorzinho, que leva a situações perigosas e inspira atos violentos. Também permite decisões arbitrárias e seletivas. Pelo argumento moral, procura-se questionar direitos que a lei oferece a toda pessoa. Isso é imoral.

Não surpreende que essa visão tenha produzido  grandes tragédias, na história e na vida cotidiana.

Isso porque os valores morais podem variar de uma pessoa para outra mas a lei precisa valer para todos.

Você pode achar que aquele livro sobre não sei quantos tons de cinza é uma obra imoral mas não pode querer que seja proibido por causa disso. Por que? Porque a Lei garante a liberdade de expressão como um valor absoluto.

Para ficar num exemplo que todos lembram. Os estudantes de uma faculdade paulista que agrediram e humilharam uma aluna que foi às  aulas de mini saia muito mini também se achavam no direito de condenar o que era legal mas lhes parecia imoral.  Vergonhoso. Isso sempre acontece quando se pretende dizer que o moral precisa ser o legal.

Para começar, quem acha muita imoralidade da parte de Genoíno deveria olhar para o lado em vez de exagerar na indignação.

Em seis Estados brasileiros o Superior Tribunal de Justiça, a segunda mais alta corte do país, tenta licença para processar governadores e não consegue avançar na investigação. Não consegue nem apurar as acusações que o STJ considera sérias.

Por que? Porque as Assembleias Legislativas não autorizam. Curiosidade: não há  ”petistas aparelhados”  envolvidos. Entre os 6 governadores, cinco são tucanos e um é do PMDB. Quantos são imorais nesse time? E os ilegais?  Vai saber.


O que está em jogo, nos Estados? O princípio do artigo 55 da Constituição, aquele que reserva ao Congresso o direito de decidir pela cassação (ou não) de deputados e senadores. São os representantes eleitos que podem cassar os representantes do povo – e apenas eles.

Mas é curioso que ninguém fala em imoralidade neste caso.

Pergunto: cadê o abaixo assinado, uma denúncia contra “esse políticos” ? Cadê as marchadeiras de botox e cabelo tingido? Onde ficaram nossos moralistas de punho cerrado? Onde estão os cronistas do constrangimento, os marqueteiros da “imagem” dos políticos?

Será que voltamos (ou nunca saímos?) à lógica dos dois mensalões, o do PT e o do PSDB-MG?

A Constituição reconhece os três poderes e não reconhece, de forma alguma, qualquer hierarquia entre eles.

E aí cabe a pergunta: se as Assembleias Legislativas podem impedir a abertura de uma investigação sobre governadores, por que o Congresso não tem o direito de decidir, como manda a Constituição, o destino de quatro deputados?  Há uma diferença de princípio, uma visão de mundo?
Ou é a velha paróquia política do país ?

No caso dos governadores e deputados, a preferência é tão descarada que nem se abre uma investigação. Não vamos julgar e depois absolver. Não. Nem se começa o jogo. Não custa recordar de novo. A Lei diz que o mandato de um deputado só pode ser cassado por decisão do Congresso. Não é interpretação. Não é princípio genérico.

É texto da lei. É tão claro como dizer que o  Brasil não pode fabricar bomba atômica. Ou que o racismo é crime e é inafiançável. Ou que a licença-maternidade deve durar quatro meses.

O jurista Pedro Serrano, especialista em Direito Constitucional, disse aqui mesmo neste blogue que essa prerrogativa é um dos elementos básicos da separação entre os poderes, definição que separa a República da Monarquia.

Embora diversos ministros do Supremo tenham feito elogios demorados à Constituição do Império – entre outros traços típicos, ela tratava os escravos como coisas – desde 1899 o país vive sob um regime republicano. O retorno à monarquia foi derrotado em plebiscito, junto com o parlamentarismo, lembra?
Teve gente que levou os descendentes de Pedro II e da Princesa Isabel para percorrer o país, na esperança de que algum fantasma do passado contribuísse para melhorar o  marketing eleitoral da monarquia.

Mas o Supremo considerou por 5 votos a 4 que tem o direito de cassar os mandatos dos deputados condenados pelo mensalão. Muitos juristas – os mesmos que os donos da moral de hoje costumam ouvir quando lhes interessa  — consideram que foi uma decisão que atravessou essa divisão entre poderes.

Num plenário que em situações normais inclui onze votos, cinco ministros acharam-se no direito de questionar um artigo explícito da Lei Maior. Quatro ficaram contra essa decisão.

Em qualquer caso, não custa lembrar que, como está estabelecido, a Constituição só pode ser modificada por  uma emenda constitucional, com o voto de dois terços – e não maioria simples – dos parlamentares, que são os representantes eleitos do povo. Não é debate moral. É determinação legal.

Por que ela diz isso? Porque esse artigo 55 é coerente com o artigo 1, aquele que diz que “todo poder emana do povo, que o exerce através de seus representantes eleitos.”

Uma decisão do Supremo deve ser cumprida e tem força de lei, diz  o Ministro da Justiça.

Mas o que se faz quando, por 5 votos a 4, se estabelece uma diferença clamorosa, uma contradição com a própria Constituição?

Não é possível ser simplório nem empregar argumentos de autoridade. A menos, claro, que se pretenda criar um novo tipo de autoritarismo.Durante o Estado Novo, o Supremo autorizou que a militante comunista Olga Benário fosse enviada para a morte num campo de concentração nazista.

Seria imoral e ilegal tentar impedir a entrega de Olga Benário por todos os meios e recursos que poderiam preservar sua vida, sua dignidade e mesmo a filha que levava em seu ventre, vamos combinar.
Em 1964, o Supremo aceitou a tese de que a presidência da República ficara vaga depois que Jango deixou o país e deu posse à ditadura militar. Legal? Moral? Ou ilegal e imoral?

Em 2010, o Supremo decidiu por 7 votos a 2, que só o Congresso poderia modificar a Lei  de Anistia. Com isso,  as investigações sobre torturas e execuções perderam uma base legal importante.

Pergunto: vamos proibir os jovens que denunciam torturadores nas operações esculacho, e não se rendem a uma decisão que – sem entrar no debate se correta ou não – envolve uma opção pela impunidade?

Vamos chamar a PM para dar porrada? (Quando ela não estiver perseguindo estudantes que portam maconha, o que lei diz que é legal em certa quantidade mas que muita gente considera imoral e por isso aprova todo tipo de repressão, até sem base legal).

Mais ainda. Vamos silenciar procuradores que, teimosamente, ainda procuram brechas para colocar os responsáveis por crimes contra a humanidade na cadeia, lembrando que a Constituição diz que a tortura não é passível de anistia ou graça?

Os 7 a 2 do Supremo  deveriam garantir que esses garotos exemplares fossem silenciados para sempre?

Queremos a Submissão à autoridade, título de um livro antológico sobre técnicas de tortura?

Colocar a questão moral à frente da legal só ajuda a despolitizar um debate, a encobrir questões sérias e a impedir uma avaliação consciente do que está em jogo. No saldo, quem perde é a democracia.

Quando Genoíno se diz com a “consciência limpa dos inocentes” deveríamos dedicar alguns minutos de reflexão ao assunto.

Você pode, com base naquilo que viu e ouviu nas 53 sessões do julgamento, achar que ele é mesmo culpado e deveria renunciar ao mandato que recebeu.
Mas você poderia pensar o contrário.

A grande acusação é que ele assinou “empréstimos fraudulentos” que alimentaram o esquema, certo? Podemos ouvir isso todo dia, nos comentários de sabichões que frequentam o rádio e a TV.

Mas:  veja só. A própria Polícia Federal, que investigou o caso e as contas do mensalão, concluiu que os empréstimos não eram uma fraude. Em seu relatório, a PF diz que os empréstimos foram verdadeiros, implicaram na remessa de dinheiro do Banco Real para o PT.  A Justiça, mais tarde, supervisionou um acordo para o pagamento do empréstimo. Era ilegal? Era imoral? Ou o que?

Em todo caso, se era ilegal, pergunta-se: o que aconteceu com a turma do Banco Central que deveria fiscalizar essas coisas?

O que houve com quem referendou o acordo?  Alguém foi punido por ser ilegal? Ou não se julgou moralmente conveniente?

Muitos ministros condenaram Genoíno porque “não era plausível” que ele “não soubesse” do que eles dizem sobre o que seria o  “maior escândalo da história.” Uniram o papel político óbvio de Genoíno no governo Lula com um esquema financeiro, sem conseguir provar seu envolvimento direto na “compra de votos” no Congresso. Não conseguiram apontar, sequer, qual projeto foi aprovado em troca de dinheiro.

Enquanto não se provar que Genoíno cometeu uma ilegalidade, estamos,  mais uma vez, numa visão moral de uma pessoa, num julgamento que envolve a atribuição de atitudes e valores, mas não consegue reunir provas robustas – indispensáveis no direito penal — para sustentar o que diz.
O que é imoral, neste caso?

Embora o Supremo tenha condenado Genoíno, a lei  dá ao deputado o direito de aguardar pelo exame de todos os recursos antes de considerar que o caso está encerrado. Junto com a  liberdade, é a história de uma vida que está em jogo.

Ao contrário do que se poderia julgar do ponto de vista moral, ele tem o dever de resistir. A lei não lhe dá essa possibilidade por acaso. O necessário, para o esclarecimento de qualquer dúvida, de qualquer ponto de vista, é que que ele entre com seus recursos, que eles sejam ouvidos, examinados e conhecidos por todos. E a melhor forma de fazer isso é preservando seu mandato.

Vou adorar ouvir seus argumentos, na tribuna da Câmara. E vou adorar ouvir os argumentos contrários.

Será uma grande novidade. Em sete anos de investigações, o mensalão transformou-se no discurso de um lado só, uma única voz, uma única verdade. Cada advogado de defesa teve direito a um discurso de duas horas num julgamento que durou cinco meses. Isso impediu que dúvidas importantes, sobre Genoíno e sobre o mensalão, fossem discutidas e resolvidas. Nenhuma auditoria provou que os recursos usados pelo esquema do PT foram extraídos do Banco do Brasil. Não há sinal de desvio na Visanet, empresa que fazia os pagamentos para as agências de Marcos Valério. Ou seja: verdades que pareciam evidentes em 2005 teriam de ser examinadas, revistas e explicadas em 2012. Ou corrigidas, ou retiradas.

É por isso que o  Congresso  tem razão em debater  suas prerrogativas e nossos moralistas de plantão erram quando tratam Marco Maia e seu provável sucessor, Henrique Alves,como criadores de caso, encrenqueiros que jogam para a platéia.  Se o artigo 55 não foi abolido – o que só os parlamentares tem o direito de fazer – é mais do que razoável que sua aplicação seja discutida. Um pouquinho de história, para quem tem a memória selecionada. A cronologia diz tudo neste caso. Ao longo de 7 anos de mensalão Congresso não moveu um dedo mínimo para atrapalhar a investigação. Tampouco cometeu qualquer gesto em direção ao STF que pudesse ser interpretado como ação indevida. Ficou silencioso em seu canto, respeitoso das atribuições de cada um. E é natural que queira ser respeitado, agora.

O ministro que decidiu a votação por 5 a 4 teve um voto oposto, em situação muito parecida.

Juízes não são obrigados a votar de modo idêntico a vida inteira.

Mas a democracia é um regime coerente.

Por isso a Constituição diz que o povo exerce o poder através de seus representantes eleitos. Esta frase não é enfeite, certo? O voto da maioria da população é o começo e o fim de tudo.

11 comentários:

  1. Como comentei antes, o representante do povo não pode ter nenhuma sombra de dúvida com relação a sua integridade ética e moral, não pode se esconder atrás de artifícios legais para ficar no poder mamando nas tetas da nação.

    Este é o caso de Genuíno, Eduardo Azeredo, Paulo Maluf e tantos outros.

    Assim que houver qualquer denuncia contra o representante do povo este deveria imediatamente se afastar do cargo e só depois de comprovada sua inocência voltar a ocupar o cargo.

    José Genuíno foi condenado. Deveria ter a hombridade e a vergonha na cara de não voltar mais ao congresso.

    Eduardo Azeredo e Paulo Maluf e tantos outros deveriam estar afastados da política.

    Artigos como este de Paulo Moreira Leite só beneficiam a impunidade e a corrupção no Brasil.

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    1. Nenhuma palavra sobre os 5 governadores do PSDB e 1 do PMDB blindados pelas Assembleias? Kkkkkkkkkkkkkkkkkkkkkkkkkkkkkkkkkkkkkkkkk quanta imparcialidade kkkkkkkkkkkkkkkkkkkkkkkkkkkkkkkkkkkkkkkkkkkkkkkkkkkkkkkkkkkkkkkkkkkkk

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    2. Péssima a qualidade de nossas educação. Blatcher nao consegue entender o que lê. Não sabe interpretar gráficos e fica nervoso quando ão entende, então escreve os KKKK por falta de argumentos inteligentes.

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    3. Blatcher anda fugindo de responder:

      Nestes últimos dez anos qual foi a ação do Ministério da Justça co relação a PRIVATARIA TUCANA?

      Eu gostaria de saber qual parte da pergunta Processo do Ministério da Justiça sobre a PRIVATARIA TUCANA que o Blatcher não entendeu.

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    4. Tuguardia, Luiz Carlos Mendonça de Barros, José Pio Borges, Andréa Calabi, Francisco Gros, e Eleazar de Carvalho Filho, todos ex-presidentes do BNDES, indicados por teu ídolo FHC, respondem a processo por que?...

      Sabe não? Pesquisa. O google serve para desmascarar "desentendidos".

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    5. Agora sim Blatcher, você está aprendendo a pesquisar. Continue assim que você vai aprender muito. Parabéms.

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  2. Excelente abordagem, bastante sensata e coerente. Não que dizer que eu concorde, mas o bom senso está bem transparente nessa coluna. O judiciario claramente exarcebou de suas funções, e quanto a “interpretação” da constituição para criar uma lei própria, isso sim é imoral. È claro que o legislativo faz as leis e o udiciário é o “mero aplicador” da lei. Quando há duvidas, não existe a interpretação, basta perguntar para quem faz as leis o que ele quis dizer (nesse caso o Congresso Nacional). A soberba de querer dizer o que a lei significa (juciario) ao inves de arqguir quem a fez (legislativo) é imóral, isso. sim.

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    1. Fernando

      Não é isto que nossa constituição diz. Basta ler os atributos de cada poder.

      O executivo executa, aplica, as leis

      O legislativo faz as leis

      O judiciário aplica as leis.

      Mas você não tem culpa de não saber estas coisa básicas de nossa constituição. A qualidade de ensino piorou muito. Aprendi isto no antigo primário e tendo a curiosidade de ler a constituição

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    2. Corrigindo O judiciário interpreta as leis

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  3. Não é demais lembrar que os tucanos enterraram a CPI do Cachoeira para que o governador de Goiás não fosse indiciado e a mídia culpou o PT pelo episódio, a parcialidade na mídia chegou a um nivel imoral(já que é o assunto em discussão). A posse de Genoíno é legal, até o trânsito em julgado ele é inocente, queiram ou não é assim a lei, o problema é que para o caso do mensalão petista isso não vale, só para o tucano do qual nem se fala, é mais antigo e não será julgado(porque não foi investigado, houve compra de votos mas foi considerado caixa 2).

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    1. Alguns comentários:

      O representante do povo tem que ter reputação ilibada. O comportamento ético dele deve ser acima da média. Ele não é um cidadão comum, é mais do que isto, por isto mais deve ser exigido dele.

      José Genuíno, Eduardo Azeredo e todos os. Outros sobre os quais pairam suspeitas de comportamento anti ético devem se afastar dos seus cargos até prova inocência, diferentemente do cidadão comum. Afinal, no cargo tem o poder de influenciar nas provas e testemunhos.

      O ladrão de galinha, preso em flagrante fica preso até ser julgado. Por que o deputado deve ter mais privilégios? Como representante do povo deve ter menos privilégios. Ele tem que ser exemplo de comportamento honesto e ético.

      Chega de defesa de criminosos do colarinho branco.

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