por Ruy Fabiano
No Brasil, pátria do jeitinho e do pistolão, as relações entre lei e poder nem sempre, digamos assim, observam parâmetros ortodoxos. Há sempre um recurso para tirar um amigo ou aliado (em política, coisas diferentes) de eventuais enrascadas.
A Getúlio Vargas, atribui-se o axioma segundo o qual “aos amigos tudo; aos inimigos, a lei”. E quando a lei era obstáculo a algum projeto ou mesmo desejo pessoal seu, ironizava: “A lei, ora, a lei...” E a ignorava solenemente.
Se se trata de folclore ou não, o certo é que a prática de então chancelava aqueles princípios. De então, vírgula: a prática, a rigor, jamais saiu de cena. É bem verdade que, em alguns momentos, foi mais recorrente – como agora, por exemplo.
Há dias, o ministro-chefe da Secretaria Geral da Presidência da República, Gilberto Carvalho, disse a lideranças indígenas que a presidente Dilma orientara o ministro da Justiça para que não fosse cumprida ordem judicial de reintegração de posse na Fazenda Buritis, em Mato Grosso do Sul, ocupada pelos terenas.
Como a frase vazou, foi preciso desmenti-la. Nem sempre, porém, a frase vaza – e a lei, por conseguinte, pode ser driblada, sem problemas. Questão de maior ou menor discrição, maior ou menor cautela, o que não envolve evidentemente dilemas éticos.
O preâmbulo vem a propósito do Mensalão, que, ao condenar cabeças coroadas do partido que há uma década governa a República, pôs em cena todo um arsenal de garrinchas da lei.
O primeiro aliado dos condenados é o próprio processo judiciário, lento, burocrático e de uma generosidade comovente para rever-se a si mesmo, sensível a todos os recursos, por mais artificiosos. Havendo um bom advogado, não há o que temer.
O processo do Mensalão, que levou sete anos para ser julgado e mais de cinquenta sessões para produzir sentenças, tem que aguardar não apenas a publicação do acórdão, quatro meses depois, como o julgamento dos embargos – os de declaração e os infringentes, sem compromissos com prazos.
Havendo como complicar – e no Brasil é prática imemorial, jurisprudência entre os operadores do direito -, não há por que facilitar. É o caso presente: discute-se agora se cabem ou não os embargos infringentes no âmbito do Supremo Tribunal Federal. Uma parte diz que sim, outra que não.
Para os advogados, é uma delícia, que antevê uma orgia de hermenêutica. O Regimento do Supremo (artigo 333, inciso I, parágrafo único) diz que sim; a lei 8.038, de 1990, que disciplinou as normas procedimentais para julgamentos pelo STF e pelo Superior Tribunal de Justiça, diz que não.
Parte dos ministros diz que o regimento tem força de lei; parte diz que não pode se sobrepor a uma lei que lhe é posterior. O presidente do STF – e relator da ação penal 407 -, Joaquim Barbosa, é categórico na recusa aos infringentes:
“Admiti-los seria o mesmo que aceitar a ideia de que o Supremo Tribunal Federal, num gesto gracioso, inventivo, ad hoc, magnânimo, mas absolutamente ilegal, pudesse criar ou ressuscitar vias recursais não previstas no ordenamento jurídico brasileiro”.
Está aberta, pois, uma janela para o infinito. Os advogados dos réus, excitadíssimos, preparam-se para nova batalha retórica, que pode (e previsivelmente irá) consumir prazo imensurável.
Na eventualidade de a maioria acolher aqueles embargos, recomeça tudo do zero: novo relator, novo revisor e o STF volta a julgar o que já julgou – só que agora com nova composição: os dois ministros recém-nomeados, Teori Zavascki e Luís Roberto Barroso.
Do primeiro, pouco se sabe, além de seus atributos acadêmicos; do segundo, sabe-se mais: considera que o STF foi “duro demais” no julgamento do Mensalão, que classificou como “um ponto fora da curva”. Desconhece-se o que fará para recolocar o ponto na curva, na hipótese de serem acolhidos os embargos infringentes (que, ao que parece, terão seu apoio).
Sabe-se que todo o empenho revisionista, que mobiliza a cúpula do governo e do PT. decorre da condenação dos três caciques do partido – José Dirceu, José Genoíno e João Paulo Cunha. Se dependesse dos demais, ninguém estaria preocupado e a ação penal certamente já estaria concluída.
José Dirceu já declarou que tem certeza de que não será preso. José Genoíno fez mais: tratou de blindar-se com um mandato de deputado federal, num arranjo que lhe tirou da condição de suplente para titular, com assento imediato na mais influente comissão da Câmara, a de Constituição e Justiça.
Lá já estava seu companheiro de partido e de sentença, João Paulo Cunha. Ambos, mesmo condenados, votaram a admissibilidade de uma PEC absurda, que pretendia retirar do STF a condição de Corte Constitucional, transferindo-a para a Câmara.
O simples fato de não terem sido despojados do mandato tão logo condenados já soou como absurdo. A partir daí, tudo é possível. O tempo, que tudo dilui, e os recursos inesgotáveis do processo judiciário, repõem a frase de Ruy Barbosa: “Justiça tardia nada mais é que injustiça institucionalizada”. A lei? Ora, ora...
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