Uma recíproca quase verdadeira, por Armando Coelho Neto
“Se um cachorro morde o homem isso não é notícia. Notícia é quando o homem morde o cachorro”. Entre formas mais elaboradas e outras nem tanto, aprendi na escola de Jornalismo (USP) o que é ou não deve ser visto como notícia. E aqui estou, em princípio, a propósito do silêncio da TV Globo sobre as acusações de Tacla Duran sobre os vícios que rondam a Farsa Jato.
Até então, o lado mais visível da ópera bufa de Curitiba era o discurso moralista, por meio do qual se promoveria a redenção do país. O lado comercial mais visível não passava de adesivos para automóveis e camisetas postas à venda por entidades de classe da Polícia Federal e congêneres. Depois, mais suspeitas no ar, quando parece que a Justiça não foi muito prudente ou rígida com a transmissão de audiência sigilosa, por celular, para um blogueiro da revista Veja. Sem rigor cronológico, surgiram via Nestor Cerveró notícias da “venda de informações para revistas”.
O mercantilismo foi amadurecendo e evoluiu para o comércio de palestras – proferidas por oficiantes da Farsa Jato ou não, até desaguar na realização de eventos voltados para o combate à corrupção, leis sobre lavagem de dinheiro, compliance. Entretanto o lado mais comercial estaria por aparecer e eclodiu com entrada em cena de Marcelo Miller, ex-assessor do trapalhão Rodrigo Janot. Eis que o caso JBS dá origem à Operação Tendão de Aquiles (PF), para apurar transações que teriam garantido à empresa ganhos milionários no mercado financeiro. Tudo isso sem contar que graças Farsa Jato o Brasil está sendo vendido a preço de banana.
Como se não bastasse, estão em pauta as denúncias do advogado Tecla Duran. Segundo ele, o advogado Carlos Zuccolotto Júnior negociava abrandamento de pena e permissão para usufruir de benefícios do crime em troca de “delação direcionada”. Zuccolotto é amigo pessoal e padrinho de casamento de Sérgio Moro. É também sócio do escritório de advocacia de Rosângela Wolff, esposa de Moro. Zuccolotto pedia 1/3 dos honorários por fora. A série de reportagens sobre a indústria da delação premiada, feita em conjunto pelo Jornal GGN e o DCM ilustram com primor a parte necrosada do enredo golpista. São fortes as suspeitas de negociatas envolvendo as delações.
Seria imprudente e contraditório de nossa parte, tornar absoluta a essência das matérias produzidas pelo GGN/DCM. Afinal, a sociedade ainda espera ansiosa que a Farsa Jato apresente as provas concretas contra Lula. Seguindo o mesmo caminho, deve prevalecer o raciocínio inverso de que mais provas possam surgir contra os oficiantes da Farsa Jato. Mas, como macaco não olha pro seu rabo, Sérgio Moro disse que não se pode dar credibilidade a certas pessoas, ainda que ele, quando lhe convém, trace o caminho inverso dessa assertiva. De qualquer forma, as denúncias precisam ser contextualizadas sob outras perspectivas. Senão, vejamos.
Está escrito no Art. 4º da Lei 12.850/2013 que o juiz poderá, a requerimento das partes, conceder o perdão judicial, reduzir em até 2/3 (dois terços) a pena privativa de liberdade ou substituí-la por restritiva de direitos daquele que tenha colaborado efetiva e voluntariamente com a investigação. A mesma lei prioriza a personalidade do acusado e efetivos resultados da colaboração (delação), destacando também que nenhuma sentença condenatória será proferida com fundamento apenas nas declarações de agente colaborador. O que mais chama a atenção na lei é que a colaboração (delação) deve ser voluntária. Noutras palavras, deve ser iniciativa do próprio acusado.
Com propriedade, o jurista Luís Flávio D’ Urso em artigo na revista eletrônica Conjur destaca que “uma das principais regras a ser observada é a da voluntariedade, pois a delação premiada não pode ser compelida ao delator, que jamais poderá ser forçado a delatar. A voluntariedade está intimamente ligada à origem da delação premiada, pois o delator deve agir movido pelo sentimento de arrependimento ou de colaboração com a Justiça, afastando-se da prática criminosa”.
É justamente sob essa perspectiva da voluntariedade, espontaneidade que as delações precisam ser examinadas. Na prática, as prisões têm servido como instrumento de tortura para que haja a colaboração (delação). Se isso por si só tem desmoralizado processos e sentenças conduzidos dessa forma, novos horizontes se abrem com a denominada indústria das delações. Os diálogos, se procedentes, revelam não apenas a inexistência de espontaneidade e, pelo contrário, demonstram uma nova face mercantil da Farsa Jato.
Nesse sentido, três aspectos importantes chamam a atenção. Primeiro, ter sido surpreende que Sérgio Moro, de pronto, tenha saído em defesa de um dos envolvidos. O segundo é a omissão de Raquel Dodge, procuradora-geral da República do Brasil, de quem não se esperaria que fosse investigar aquele magistrado ou seus messiânicos colegas da Farsa Jato. Mas que pelo menos determinasse que fosse apurada a procedência das suspeitas levantadas, sobretudo diante das notícias de fraude processual, extratos fajutos, contas inativas, diálogos suspeitos, além de francos indicadores de mercantilismo nas tratativas. O terceiro é a indiferença diante do cachorro mordido pelo homem, promovida pela TV Globo et caterva. Tecla Duran não é notícia.
Parto do princípio de que Sérgio Moro e sua trupe sejam pessoas honradas. Mas, é inegável que uma série de ilegalidades, muito além das apontadas neste texto, estão presentes na Farsa Jato. Diante das ilegalidades conhecidas, posso supor que os oficiantes do engodo golpista nacional acham que os fins justificam os meios. Desse modo, para salvar o Brasil do pecado, do comunismo e promover a redenção do povo e do PIB, estão aceitando ilegalidades, posturas erráticas para defender bens e valores maiores - ambos dignificantes. Leia-se, cometem crimes.
É fácil perceber que o modelo social, político e econômico defendido por Moros, Marinhos, Maçons e Malafaias tem vícios que corromperiam até o papa Francisco se assumisse a Presidência da República. Talvez isso explique a liderança de Lula nas pesquisas. É como se o povo, além de ter Lula na memória como o melhor presidente do Brasil, também ache, assim como Moro, que os fins justificam os meios. Se algum crime Lula cometeu, o povo já o perdoou. E a isso chamo de uma recíproca quase verdadeira.
Armando Rodrigues Coelho Neto é jornalista e advogado, delegado aposentado da Polícia Federal e ex-representante da Interpol em São Paulo
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