O Psdb no divã

por Ilimar Franco - O Globo

Marina Silva (PSB) está arrebatando os votos da juventude e dos setores médios, que antes estavam com Aécio Neves. O desempenho do governo Dilma melhora a cada pesquisa. Para enfrentar essas dores de cabeça, o PSDB convocou reunião de emergência para ontem à noite em São Paulo. O temor é com o risco de Aécio deixar de ser o veículo do voto de oposição nas cidades grandes e médias.

Foram convocados para a reunião reservada o ex-presidente Fernando Henrique, o governador Geraldo Alckmin, o prefeito ACM Neto, o vice Aloysio Nunes Ferreira, o ex-governador José Serra e o presidente do DEM, José Agripino. Os tucanos tentam manter a tranquilidade, mas admitem que vivem momentos difíceis.

Torcem para que a largada de Marina e a melhora de Dilma não sejam consistentes. E já temem o efeito da diferença “brutal” do tempo na TV em favor da presidente. Há um risco de Aécio desidratar nos grandes centros. Em 2010, Marina venceu em Belo Horizonte e Brasília. E chegou em segundo no Rio de Janeiro, em Salvador, Recife e Fortaleza.


A salada, por Luis Fernando Verissimo

Vivemos na era da comunicação total. Basta ter um computador — ou melhor (ou pior), um telefone esperto — para ter à mão toda a informação de que se precisa. Já existe a tecnologia para transmitir imagens holográficas de pessoas e coisas, que se materializam, em três dimensões, em qualquer lugar, a qualquer distância, como se estivessem lá.
Nas campanhas eleitorais, já é teoricamente possível o candidato ter contato com o eleitorado sem sair de casa. O chamado “corpo a corpo” não tem mais sentido. Ou tem, mas sem os corpos presentes. O candidato pode estar no palanque de um comício em Maceió e num comício em Porto Alegre ao mesmo tempo, dizendo as mesmas coisas. É ele e não é ele, é sua imagem transmitida e multiplicada.
O próprio comício torna-se uma coisa obsoleta. E diminuem as viagens dos candidatos em aviões que às vezes caem, um risco proporcionalmente maior num país deste tamanho. Tudo isto é fazível, mas ainda é ficção científica e vai demorar para ser realidade. Provavelmente nunca será.
A política irá sempre exigir a presença física do candidato, o aperto de mão, a pele contra pele e o beijo no bebê. Entre o que poderia ser e o que continuará a ser há um abismo, e foi nesse abismo que desapareceu o Eduardo Campos, como já tinham desaparecido outros antes dele e (bate na madeira) desaparecerão outros depois.
A morte de Campos e o alvoroço que causou no seu partido e nos partidos coligados, indecisos quanto à confirmação ou não da Marina Silva como candidata da aliança, mostram mais uma vez a salada ideológica e programática que é a política brasileira. Parte da aliança faz restrições a Marina, o que deve levar seus apoiadores a estranhar que as restrições não tenham aparecido quando ela foi escolhida como segunda da chapa.
Qual é a posição da maioria da aliança quanto às posições da Marina, como sua crítica ao mega-agronegócio, por exemplo? Não se duvida do socialismo sincero da sigla PSB, mas que espécie de socialismo une o resto da aliança? A salada não exclui ninguém, nem o PT, com suas chamadas “alianças espúrias", epitomadas naquela visita à casa do Maluf, uma cena da qual o Lula poderia ter nos poupado.
Nenhum eleitor brasileiro sabe exatamente no que está votando, nessa mistura do pragmatismo dos grandes partidos com o oportunismo dos partidos caroneiros, que não representam nada a não ser sua própria gula por um naco de poder. Uma salada decididamente indigesta.

 


Luis Fernando Veríssimo é escritor 

O que Bonner perguntará a Blablá?

E antes dela responder - como fez com a presidente Dilma, a interromperá 19 vezes? -...

Paulo Henrique Amorim

Com o mesmo indicador direito – vote na enquete – e a mesma fúria vã, William Bonner vai esperar a melhor hora para entrevistar a Bláblárina.

Provavelmente, antes de uma nova pesquisa ensandecida, como diz o professor Wanderley Guilherme dos Santos.

Bonner vai procurar ser implacável com a queridinha da hora, já que o Aecioporto revela-se irrecuperável.

Aécio e sua turma de São Paulo, agora que a PF colou o trensalão nas costas do Cerra.

Com o intuito republicano de colaborar, o Conversa Afiada sugere algumas implacáveis perguntas à Bláblárina:

- Por que a senhora sorria debruçada ao caixão do Eduardo ? (Interrompe com o indicador direito.)

- E fazia selfie com o morto ao fundo ? (Interrompe com o indicador direito.)

- E, no caminhão do corpo de bombeiros, acenava para povo, de costas para o caixão ? (Interrompe com o indicador direito.)

- A senhora tem certeza de que foi a Divina Providência que a impediu de tomar o jatinho, ou foi para não ver o Alckmin nem pintado de verde ? (Interrompe com o indicador direito.)

- Então foi a mesma Providência quem matou Eduardo ? (Interrompe com o indicador direito.)

- A senhora sabe quem emprestava o jatinho ao Eduardo ? (Interrompe com o indicador direito.)

- A senhora aceitaria que a viúva do Eduardo fosse a sua vice ? (Interrompe com o indicador direito.)

- Por que será que os acreanos não elegem a senhora nem vereadora de Rio Branco ? (Interrompe com o indicador direito.)

- Seu marido é da “nova” ou da “velha” política ? (Interrompe com o indicador direito.)

- Quem vai lhe emprestar o jatinho ? Na última campanha foi a Natura …(Interrompe com o indicador direito.)

- O Itaúúú já lhe pediu juros altos – um dos componentes do “tripé” que a senhora defende ?

(Dificilmente o Bonner faria essa pergunta, porque o Itaúúú é um dos maiores anunciantes da casa.)

- A senhora sabia que seu vice é o Rei da Soja (transgênica) ? (Interrompe com o indicador direito.)

- A senhora acha que o Cerra ajudou a formar o cartel do trensalão ? (Interrompe com o indicador direito.)

- Se eleita, a senhora vai mandar fechar as usinas de Belo Monte, Santo Antonio e Jirau e transformar em lago de bagre (Interrompe com o indicador direito.)

- Foi o Chico Mendes quem disse que a senhora era o herdeiro dela ? (Interrompe com o indicador direito.)

- Por que a senhora não conseguiu fundar o partido (sic) Rede, se até o Pauzinho do Dantas conseguiu ? (Interrompe com o indicador direito.)

- Por que a senhora apunhalou o Lula pelas costas (segundo o Bessinha) ? O que ele fez contra a senhora ? (Interrompe com o indicador direito.)

- A senhora vai privatizar a Petrobras ? (Interrompe com o indicador direito.)

- E o Banco do Brasil ? (Interrompe com o indicador direito.)

- E a Caixa ? (Interrompe com o indicador direito.)

- E o IBAMA ? A senhora venderia o IBAMA ao James Cameron, ao Greenpeace ? (Interrompe com o indicador direito.)

- É verdade que a senhora vai nomear o Adriano Pires presidente da Petrobras ? (Interrompe com o indicador direito.)

- E a Urubóloga Presidente do IBAMA ? (Interrompe com o indicador direito.)

- A senhora sabia que um dos filhos do Roberto Marinho – eles não têm nome próprio – tem a mania de Meio Ambiente, adora um aquário ? (Interrompe com o indicador direito.)

- Por que a senhora não usa mais xale ? (Interrompe com o indicador direito.)

- A senhora não acha que certos blogueiros são sujos ? (Interrompe com o indicador direito.)

- De que a senhora vive ? (Aqui, ele não interrompe com o indicador direito. Deixa ela falar à vontade.)


Afinal, quem desistiu do Brasil?

Izaias Almeida: "Estava eu nessa altura do artigo quando fui surpreendido com a trágica notícia da morte do governador Eduardo Campos. A matilha conservadora, nem bem o país se refazia do choque com a notícia do desastre aéreo, já saia a campo até com pesquisa sobre como e por quem substituir o candidato desaparecido, numa demonstração inequívoca de sua truculência e de sua falta de ética e educação cívica, para usarmos uma linguagem minimamente civilizada. Pesquisa eleitoral genialmente definida pelo cartunista Bessinha como a primeira pesquisa de boca de túmulo..." Continua>>>


Matheus Pichonelli: Não penso, logo relincho

"Em alguns casos também podemos dizer: Penso que penso, logo posso relinchar ainda mais", Joel Neto

Um glossário com a lista dos principais clichês repetidos pelas redes sociais para justificar, no discurso, um mundo de violência e exclusão.

Dizem que uma mentira repetida à exaustão se transforma em verdade. Pura mentira. Uma mentira repetida à exaustão é só uma mentira, que descamba para o clichê, que descamba para o discurso. E o discurso, quando mal calibrado, é o terreno para legitimar ofensas, preconceitos, perseguições e exclusões ao longo da História. Nem sempre é resultado da má-fé. Por estranho que pareça, é na maioria das vezes fruto da indigência mental – uma indigência mental que assola as escolas, a imprensa, as tribunas, as mesas de bares, as redes sociais. Com os anos, a liberdade dos leitores para se manifestar sobre qualquer assunto e o exercício de moderação de comentários nos levam a reconhecer um clichê pelo cheiro. Listamos alguns deles abaixo com um apelo humanitário: ao replicar, você não está sendo original; está apenas repetindo uma fórmula pronta sem precisar pensar sobre tema algum. E um clichê repetido à exaustão, vale lembrar, não é debate. É apenas relincho*.

“Negros têm preconceitos contra eles mesmos”
Tentativa clássica de terceirizar o próprio racismo, é a frase mais falada das redes sociais durante o Dia da Consciência Negra. É propagada justamente por quem mais precisa colocar a mão na consciência em datas como esta: pessoas que nunca tomaram enquadro na rua nem foram preteridas em entrevistas de emprego sem motivos aparentes. O discurso é recorrente na boca de quem jamais se questionou por que a maioria da população brasileira não circula em ambientes frequentados pela elite financeira e intelectual do País, como universidades, centros culturais, restaurantes, shows e centros de compra. Tem a sua variação homofóbica aplicada durante a Parada Gay. O sujeito tende a imaginar que Dia Branco e Dia Hétero são equivalentes porque ignora os processos históricos de dominação e exclusão de seu próprio país.

“Não precisamos de consciência preta, parda ou branca. Precisamos de consciência humana”
Eis uma verdade fatiada que deixa algumas perguntas no contrapé: o manifestante a exigir direitos iguais não é gente? O que mais se busca, nessas datas, se não a consciência humana? Ou ela seria necessária, com ou sem feriado, caso a cor da pele (ou o gênero ou a sexualidade) não fosse, ainda hoje, fatores de exclusão e agressão?

“Héteros morrem mais do que homossexuais. Portanto, somos mais vulneráveis”
É o mesmo que medir o volume de um açude com uma régua escolar. Crimes como homicídio, latrocínio, roubo ou furto têm causas diversas: rouba-se ou mata-se por uma carteira, por ciúmes, por fome, por motivo fútil, por futebol, mas não necessariamente por causa da orientação sexual da vítima. O argumento é utilizado por quem nunca se perguntou por que ninguém acorda em um belo dia e decide estourar uma barra de ferro na cabeça de alguém só porque este alguém gosta e anda de mãos dadas com alguém do sexo oposto. O crime motivado por ódio contra heterossexuais é tão plausível quanto ser engolido por uma jaguatirica em plena Avenida Paulista.

“Estamos criando uma ditadura gay (ou racial) no Brasil. O que essas pessoas querem é privilégio”
Frase utilizada por quem jamais imaginou a seguinte cena: o sujeito acorda, vê na tevê sempre os mesmos apresentadores, sempre as mesmas pautas, sempre as mesmas gracinhas. No caminho do trabalho, ouve ofensas de pedestres, motoristas e para constantemente em uma mesma blitz que em tese serviria para todos. Mostra documento, RG. Ouve risada às suas costas. Precisa o tempo todo provar que trabalha e paga imposto (além, é claro, de trabalhar e pagar imposto). Chega ao trabalho e é recebido com deferência: “oi boneca”; “oi negão”; “veio sem camisa hoje?”. Quando joga futebol, vê a torcida imitando um macaco, jogando bananas ao campo, ou imitando gazelas. E engasga toda vez que vira as costas e se descobre alvo de algum comentário. Um dia diz: “apenas parem”. E ouve como resposta que ele tem preconceito contra a própria condição ou está em busca de privilégio. Resultado: precisamos de um novo glossário sobre privilégios.

“A mulher deve se dar o valor”
Repetida tanto por homens como por mulheres, é a confissão do recalque, em um caso, e da incompetência, no outro: o homem recorre ao mantra para terceirizar a culpa de não controlar seus próprios instintos; a mulher, por pura assimilação dos mandamentos do pai, do marido e dos irmãos. Nos dois casos o interlocutor acredita que, ao não se dar o valor, a menina assume por sua conta e risco toda e qualquer violência contra sua pretensão. Para se vestir como quer, andar como quer, dizer e fazer o que quer com quem bem quiser, ouvirá, na melhor das hipóteses, que não é a moça certa para casar; na pior, que foi ela quem provocou a agressão.

“Os homens também precisam ser protegidos da violência feminina”
Na Lua, é possível que a violência entre gêneros seja equivalente. Na Terra, ainda está para aparecer o homem que apanhou em casa porque foi chamado de gostoso na rua, levou mão na bunda, ouviu assobios ou ruídos com a língua sem pedir a opinião da mulher. Também não há relevância estatística para os homens que tiveram os corpos rasgados e invadidos por grupos de mulheres que dominam as delegacias do País e minimizam os crimes ao perguntar: “Quem mandou tirar a camisa?”.

“Se ela se deixou ser filmada, é porque quis se exibir”.
Verdade. Mas não leva em conta um detalhe: existe alguém do outro lado da tela, ou da câmera. Este alguém tem um colchão de conforto a seu favor. Se um dia o vídeo vazar, será carregado nos braços como comedor. Ela, enquanto isso, vai ser sempre a exibida. A puta. A idiota que deixou ser flagrada. A vergonha da família. A piada na escola. Parece uma relação bastante equilibrada, não?

“O humor politicamente correto é sacal”
É a mais pura verdade em um mundo no qual o politicamente incorreto serve para manter as posições originais: ricos rindo de pobres, paulistas ridicularizando nordestinos, brancos ricos fazendo troça de mulatos pobres, machões buscando graça na vulnerabilidade de gays e mulheres. As provocações são brincadeiras saudáveis à medida que a plateia não se identifica com elas: a graça de uma piada sobre português é proporcional à distância do primeiro português daquele salão. Via de regra, a frase é usada por quem jura se ofender quando chamado de girafa branca tanto quanto um negro ao ser chamado de macaco. Só não vale perguntar se o interlocutor já foi chamado de “elemento suspeito”, com tapas e humilhações, pelo simples fato de ser alto como o artiodátilo.

“Bolsa Família incentiva a vagabundagem. Pegar na enxada e trabalhar ninguém quer”
Há duas origens para a sentença. Uma advém da bronca – manifestada, ironicamente, por quem jamais pegou em enxada – por não se encontrar hoje em dia uma boa empregada doméstica pelo mesmo preço e a mesma facilidade. A outra origem é da turma do “pegar o jornal e ler além do horóscopo ninguém quer”; se quisesse, o autor da frase saberia que o Bolsa Empreiteiro (que também dispensa a enxada) consome muito mais o orçamento público do que programa de transferência de renda. Ou que a maioria dos beneficiários de Bolsa Família não só trabalha como é obrigada a vacinar os filhos, manter a regularidade na escola e atravessar as portas de saída do programa. Mas a ojeriza sobre números e fatos é a mesma que consagrou a enxada como símbolo do nojo ao trabalho.

“Na ditadura as coisas funcionavam”
Frase geralmente acolhida por pacientes com síndrome de Estocolmo. Entre 1964 e 1985, a economia nacional crescia para poucos, às custas de endividamento externo e da subserviência a Washington; universalização do ensino e da saúde era piada pronta, ninguém podia escolher os seus representantes, a imprensa não podia criticar os generais e a sensação de segurança e honestidade era construída à base da omissão porque ninguém investigava ninguém. Em todo caso, qualquer desvio identificado era prontamente ofuscado com receitas de bolo na primeira página (os bolos eram de fato melhores).

“Você defende direito de presos porque ele não agrediu ninguém da sua família”.
É o sofisma usado geralmente contra quem defende o uso das leis para que a lei seja garantida. Para o sujeito, aplicação de penas e encarceramentos são privilégios bancados às custas dele, o contribuinte. Em sua lógica, o Estado só seria efetivo se garantisse a sua segurança e instituísse a vingança como base constitucional. Assim, a eventual agressão contra um integrante de uma família seria compensada com a agressão a um integrante da família do acusado. O acúmulo de experiência, aperfeiçoamento de leis e instituições, para ele, são papo de intelectual: bons eram os tempos dos linchamentos, dos apedrejamentos públicos, da Lei de Talião. Falta perguntar se o defensor do fuzilamento está disposto a dar a cara a tapa, ou a tiro, quando o filho dirigir bêbado, atropelar, agredir e violentar a família de quem, como ele, defende penas mais duras para crimes inafiançáveis.




“A criminalidade só vai diminuir quando tiver pena de morte no Brasil”
Frase repetida por quem admira o modelo prisional e o corredor da morte dos EUA, o país mais rico do mundo e ao mesmo tempo o mais violento entre as nações desenvolvidas. Lá o crime pode não compensar (em algum lugar compensa?), mas está longe de ser varrido junto com seus meliantes.

“Político deveria ser tratado por médico cubano”
Tradução: “não gosto de política nem de cubano”. Pelo raciocínio, todo paciente tratado por cubanos VAI morrer e todo político que precisa de tratamento médico DEVE morrer. Para o autor da frase, bons eram os tempos em que, na falta de médico brasileiro, deixava-se o paciente morrer – ou quando as leis eram criadas não pelo Legislativo, mas pelo humor de quem governa na canetada.

“Deveriam fazer testes de medicamento em presidiários, não em animais”
Também conhecida como “não aprendemos nada com a parábola do filho Pródigo que tantas vezes rezamos na catequese”. É citada por quem não aceita tratamento desumano contra os bichos, mas não liga para o tratamento desumano contra humanos. É repetida também por quem se imagina livre de todo pecado e das grandes ironias da vida, como um certo fiscal da prefeitura de São Paulo que um certo dia criticou o direito ao indulto de presidiários e, no outro, estava preso acusado de participação na máfia do ISS. É como dizem: teste de laboratório na cela dos outros é refresco.

“Por que você não vai para Cuba?”
Também conhecida como “acabou meu estoque de argumentos. Estou andando na banguela”.

http://www.cartacapital.com.br/sociedade/nao-penso-logo-relincho-4941.html


Tempos fugit, por Rubem Alves

Eu tinha medo de dormir na casa do meu avô. Era um sobradão colonial enorme, longos corredo¬res, escadarias, portas grossas e pesadas que ran¬giam, vidros coloridos nos caixilhos das janelas, pátios calçados com pedras antigas... De dia, tudo era luminoso. Mas quando vinha a noite e as luzes se apagavam, tudo mergulhava no sono: pessoas, paredes, espaços. Menos o relógio... De dia, ele estava lá também. Só que era diferente. Manso, tocando o carrilhão a cada quarto de hora, ignorado pelas pessoas, absorvidas por suas rotinas. Acho que era porque durante o dia ele dormia. Seu pêndulo regular era seu coração que batia, seu ressonar, e suas músicas eram seus sonhos, iguais aos de todos os outros relógios. De noite, ao contrário, quando todos dormiam, ele acordava, e começava a contar estórias. Só muito mais tarde vim a entender o que ele dizia: "Tempus fugit". E eu ficava na cama, incapaz de dormir, ouvindo sua marcação sem pressa, esperando a música do pró¬ximo quarto de hora. Eu tinha medo. Hoje, acho que sei por quê: ele batia a Morte. Seu ritmo sem pressa não era coisa daquele tempo da minha insônia de menino. Vinha de muito longe. Tempo de musgos crescidos em paredes húmidas, de tábuas largas de assoalho que envelheciam, de ferrugem que aparecia nas chaves enormes e negras, da senzala abandonada, dos escravos que ensinaram para as crianças estórias de além-mar "dingue¬le-dingue que eu vou para Angola, dingue-le¬dingue que eu vou para Angola" de grandes festas e grandes tristezas, nascimentos, casamen¬tos, sepultamentos, de riqueza e decadência.., O relógio batera aquelas horas — e se sofrera, não se podia dizer, porque ninguémjamais notara mudan¬ça alguma em sua indiferença pendular. Exceto quando a corda chegava ao fim e o seu carrilhão excessivamente lento se tomava num pedido de socorro: "Não quero morrer..." Aí, aquele que tinha a missão de lhe dar corda — (pois este não era privilégio de qualquer um. Só podia tocar no coração do relógio aquele que já, por muito tempo, conhecesse os seus segredos) — subia numa cadei¬ra e, de forma segura e contada, dava voltas na chave mágica. O tempo continuaria a fugir... To¬das aquelas horas vividas e morridas estavam guardadas. De noite, quando todos dormiam, elas saíam, O passado só sai quando o silêncio é grande, memória do sobrado. E o meu medo era por isto: por sentir que o relógio, com seu pêndulo e carri¬lhão, me chamava para si e me incorporava naque¬la estória que eu não conhecia, mas só imaginava. Já havia visto alguns dos seus sinais imobilizados, fosse na própria magia do espaço da casa, fosse nos velhos álbuns de fotografia, homens solenes de colarinho engomado e bigode, famílias paradig¬máticas, maridos assentados de pernas cruzadas, e fiéis esposas de pé, ao seu lado, mão docemente pousada no ombro do companheiro. Mas nada mais eram que fantasmas, desaparecidos no passa¬do, deles, não se sabendo nem mesmo o nome. "Tempus fugit". O relógio toca de novo. Mais um quarto de hora. Mais uma hora no quarto, sem dormir... Sentia que o relógio me chamava para o seu tempo, que era o tempo de todos aqueles fantasmas, o tempo da vida que passou. Depois o sobradão pegou fogo. Ficaram os gigantescos bar¬rotes de pau-bálsamo fumegando por mais de uma semana, enchendo o ar com seu perfume de tristeza. Salvaram-se algumas coisas. Entre elas, o relógio. Dali saiu para uma casa pequena. Pelas noites adentro ele continuou a fazer a mesma coisa. E uma vizinha que não suportou a melodia do "Tempus fugit" pediu que ele fosse reduzido ao silêncio. E a alma do relógio teve de ser desligada.




Tenho saudades dele. Por sua tranqüila honestidade, repetindo sempre, incansável, "Tempus fugit". Ainda comprarei um outro que diga a mes¬ma coisa. Relógio que não se pareça com este meu, no meu pulso, que marca a hora sem dizer nada, que não tem estórias para contar. Meu relógio só me diz uma coisa: o quanto eu devo correr, para não me atrasar. Com ele, sinto-me tolo como o Coelho da estória da Alice, que olhava para seu relógio, corria esbaforido, e dizia: "Estou atrasado, estou atrasado...

Não é curioso que o grande evento que marca a passagem do ano seja uma corrida, corrida de 5. Silvestre?
Correr para chegar, aonde?
Passagem de ano é o velho relógio que toca o seu carrilhão.
O sol e as estrelas entoam a melodia eterna:
"Tempus fugit".
E porque temos medo da verdade que só aparece no silêncio solitário da noite, reunimo-nos para espantar o tenor, e abafamos o ruído tranqüilo do pêndulo com enormes gritarias. Contra a músi¬ca suave da nossa verdade, o barulho dos rojões...
Pela manhã, seremos, de novo, o tolo Coelho da Alice:
"Estou atrasado, estou atrasado...
Mas o relógio não desiste. Continuará a nos chamar à sabedoria:
Quem sabe que o tempo está fugindo desco¬bre, subitamente, a beleza única do momento que nunca mais será...

Mensagem da madrugada