de Marcos Coimbra, sociólogo e presidente do Instituto Vox Populi
Domingo, um de nossos melhores cartunistas publicou uma charge que merece ser discutida. Nem é preciso lembrar a importância que elas têm na política. Uma boa charge vale mil palavras.
Néo Correia divulgou em seu site uma alegoria a respeito do momento político pelo qual passamos. Nela, estão Dilma e Lula imersos em uma água escura – um “mar de lama” (ele com olhar carregado e a barba típica do Lula de antigamente, ela levantando acima da cabeça e tentando proteger um par de sapatos vermelhos de salto alto). Para os dois, o risco de afundar é grande, pois a lama já os alcança na altura do pescoço. Vemos, ainda, duas mãos femininas se debatendo, de alguém cujo rosto não se identifica, pois já foi engolida. Qualquer um imaginaria que são as mãos de Erenice.
Bóiam, na superfície, a logomarca da Receita Federal e uma placa dizendo “Casa Civil”.
Dentre as várias coisas que se podem comentar sobre a charge, a mais relevante é sobre seu terceiro elemento: vinda de cima, aparece uma bolsa escura (uma mala preta?), à qual Lula se agarra para não ser sugado. Nela, está escrito “Bolsa Família”.
O recado é claro: Dilma e Lula estão sendo tragados pelo lodaçal dos escândalos da Receita e da Casa Civil. O que os salva é o Bolsa Família.
Antes de discutir a conclusão do raciocínio implícito na ilustração, vale considerar os elementos empregados para caracterizar os personagens: a barba e o salto alto vermelho. O Lula “barbudinho” e com olhos esbugalhados repete os traços que os cartunistas usavam para representá-lo quando apareceu na vida política brasileira há mais de 30 anos (e não apenas a ele, individualmente, mas a todos seus companheiros, os “barbudos”, com sua referência aos revolucionários cubanos). Utilizá-los hoje equivale a dizer que Lula e seus amigos petistas não mudaram.
Quanto a Dilma, a mensagem subliminar é mais crítica. Seus sapatos vermelhos significam o quê? A “falsidade” de uma líder de esquerda que “finge” ser uma mulher bem vestida? A futilidade da candidata, agora que passou a se preocupar com a imagem, cuidando de seus saltos altos enquanto é devorada pela lama?
Na charge, são esse Lula e essa Dilma que o Bolsa Família socorre para que não soçobrem no lamaçal. Sem ele, parece dizer o desenhista, não sobreviveriam.
Se a avaliação de ambos é uma questão de foro íntimo, a tese a respeito do programa é factual. Ou seja, todos são livres para gostar ou não de Dilma e Lula, mas dizer que são “salvos” pelo Bolsa Família não é matéria de opinião. Ou há elementos para sustentar a hipótese ou não há.
E nada indica que a tese seja verdadeira. Ao contrário, a evidência disponível mostra que as relações entre a candidatura Dilma e o programa são bem diferentes do que imagina muita gente.
Pouco mais que 20% da intenção de voto em Dilma vem de pessoas que residem em domicílios onde alguém recebe o benefício. Isso quer dizer que 80% de seus possíveis eleitores não está nesse grupo. Em outras palavras: se todos os que se beneficiam diretamente do programa fossem proibidos de votar, ela continuaria com (grandes) chances de vencer as eleições no primeiro turno.
Pode soar estranha a ideia de impedir que clientes de programas sociais tenham o direito de voto, mas já foi regra. Na Inglaterra do século XIX, por exemplo, era assim que as coisas funcionavam. Quem recebia alguma ajuda pública, através das Leis dos Pobres, era obrigado a abdicar da cidadania política.
Hoje, ninguém apoiaria, às claras, uma restrição desse tipo. Mas há quem, no fundo, pense de forma parecida. São os que acham que Lula e Dilma existem por que existe o programa.
Resta o quarto elemento da charge. Mergulhado no mar de lama, junto a sua candidata, sendo içado para a salvação pelo Bolsa Família, Lula brada: “Calma! Não existe escândalo. É tudo invenção da imprensa!”. É certo que não é tudo. Tão certo quanto que boa parte é.
Mas o que importa é que é uma boa charge. Ela condensa um modo de pensar o momento que vivemos e nos leva a refletir sobre ele. O que mais se pode querer de uma?
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