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Casamento político

Quando o casamento parecia a caminho de se tornar obsoleto, substituído pela coabitação sem nenhum significado maior, chegam os gays para acabar com essa pouca-vergonha.

Luis Fernando Veríssimo
e seu humor britânico

Crônica semanal de Luis Fernando Veríssimo

Poetas
Ainda não sabemos tudo sobre Marte, mas sabemos o bastante para dizer que ele nos decepcionou. Marte foi um blefe. Os tais canais vistos pelas lunetas antigas, provas de que haveria alguma forma de vida inteligente no planeta, mesmo que fosse só de engenheiros, não eram canais.

Nenhum vestígio de qualquer tipo de vida apareceu em Marte, muito menos o de uma civilização de homenzinhos verdes, ou de qualquer outra cor, com a capacidade para invadir a Terra. Anos e anos de literatura premonitória e previsões terríveis foram desperdiçados. Nos apavoraram por nada. Como no Iraque, também não havia armas de destruição em massa em Marte.
Mas, se Marte revelou ser um imenso parque de estacionamento, que não ameaça a Terra, isso não quer dizer que não existam civilizações lá fora que cedo ou tarde entrarão em contato conosco, exigindo nossa submissão ou anunciando a invasão.

Luis Fernando Veríssimo: Vivemos sob o signo da hipocrisia


A volta da democracia no Egito, com a queda do Mubarak e a primeira eleição livre em muitos anos, foi saudada por todo o mundo como um desabrochar primaveril. Só uma coisa deu errado: ganhou a eleição quem não deveria.
A Irmandade Muçulmana no poder só deu razão a quem diz que islã e democracia são incompatíveis, ou aos que dizem que a democracia é linda, mas não pode ser suicida.
Veio o golpe dos militares, que nunca deixaram de ser a única força política consequente no Egito, e cujo objetivo declarado não é só substituir os muçulmanos no poder, mas acabar, literalmente, com eles.
Os líderes muçulmanos estão presos e seus seguidores sendo assassinados nas ruas, à vista do mundo inteiro, que faz sons protocolares de reprovação, mas não quer se meter.
Os Estados Unidos, que sustentavam a ditadura Mubarak e há anos sustentam, com dinheiro e material, o exército egípcio, enquanto pregam democracia para todos — sem exageros, claro —, não sabem até onde levar sua “realpolitik”, que é o nome pomposo da hipocrisia.
Mas se, num acesso de autocrítica, os americanos cortarem a ajuda para o massacre, não faltará ajuda das petromonarquias da região, como aquele outro exemplo de democracia relativa apoiada pelos Estados Unidos, a Arábia Saudita. Enfim, as primaveras, como a democracia, são lindas, mas também podem ser vésperas de verões infernais.
Essa meleca — e a meleca maior que é toda a situação no Oriente Médio, incluindo a questão Israel/palestinos — é fruto de muitos anos de hipocrisia, começando com a hipocrisia das potências imperialistas, que pilharam meio mundo disfarçadas de evangelizadoras e civilizadoras, e, no caso do Oriente Médio, chegaram a impor fronteiras e inventar países.
A própria geografia da interminável crise em que vive a região é uma herança da passagem dos ingleses, que deixaram o lixo da sua farra para trás. Mas tanto os países artificiais quanto os históricos, como o Egito, tiveram culpa pela sua desgraça atual.
Nos anos 60 e 70 ensaiou-se a criação de uma nova ordem econômica mundial, independente da ordem sacramentada pelo neoimperialismo anglo-americano. Os dólares do petróleo financiariam essa tentativa de emancipação dos pobres. Mas não aproveitaram a abertura.
Os emires apoiavam a ideia da revolta em tese, mas continuaram aplicando seus lucros no sistema bancário dominante. E o neoimperialismo, enquanto exaltava a democracia liberal, se encarregava de impedir qualquer alternativa para o seu domínio.
No Egito, agora, os hipócritas se impõem criminosamente. Quem diria que toda a história recente do mundo caberia numa letra de bolero?

Luis Fernando Veríssimo: Sou radicalmente contra a pena de morte, mas faço algumas exceções

Quem conversa no cinema durante todo o filme e, por uma estranha deformação da lei das probabilidades, sempre senta atrás de você, merece execução sumária.
Quem liga o seu celular no meio do filme para ver se tem alguma mensagem, e por outra cruel casualidade sempre senta do seu lado: execução sumária — se possível por garrote vil.
Gente que imita aspas com dois dedos de cada mão... Está bem, isto é só uma implicância minha. Sete anos de trabalho forçado.
Casal que se chama de “fofo” e “fofa”: banimento para a Ilha do Diabo, ou similar.

Luis Fernando Veríssimo: Eu gostaria de ser Deus

...não para consertar o mundo ou melhorar a humanidade, mas, confesso, para um fim menos nobre: conseguir mulher.
Posso imaginar como seria ter ao meu dispor todos os recursos de Deus para impressionar uma mulher. A começar pelo seu espanto ao saber da minha identidade. (Ela: “Você quer dizer Deus, Deus mesmo?! O Cara?!” Eu: “É”. Ela: “O Todo-Poderoso?!” Eu, para mostrar, além de tudo, simplicidade: “Sim, mas pode me chamar de Todo”).
Eu não a convidaria para jantar, apenas. Mandaria um anjo fulgurante convidá-la para jantar comigo, no meu apartamento celestial ou no restaurante da sua predileção. Onde já começaria a mostrar os meus poderes, pedindo mineral sem gás e transformando-a não apenas em vinho, mas num Chateau Petrus 82.
Conversaríamos sobre banalidades:
Ela: “Deve dar trabalho, ser Deus.”
Eu, modestamente: “No começo, foi difícil. Tive que fazer tudo sozinho, do nada. Desde então, só dou retoques”.
Depois do jantar Eu a convidaria para ir ver o eclipse da Lua do meu terraço à beira-mar.
— Mas hoje não tem eclipse da Lua!
— Quer apostar?
Quando ficássemos mais íntimos, e ela mais crítica, Eu faria tudo que ela pedisse.
— Terremoto...Precisa ter?
— Está bem. Não vai mais ter terremoto.
— Dá para acabar com a má fase do São Paulo?
— Vamos ver o que se pode fazer.
Eu não lhe mandaria bilhetes amorosos, mandaria tábuas gravadas amorosas, entregues por profetas barbudos, junto com flores — todos os dias.
Presentes de pedras preciosas? Por que ser sovina e não lhe dar, logo, uma mina de diamantes?
E se, com tudo isso, Eu não a conquistasse, me restaria um último recurso: refazer-me completamente, do barro. Seguindo as suas instruções.
— Sem barba. Outro nariz. Mais alto...

Luis Fernando Veríssimo: Compensações


Perguntaram ao escritor sulista americano William Faulkner como ele explicava o florescimento literário havido no Sul dos Estados Unidos depois da Guerra Civil e sua resposta foi sucinta: “Nós perdemos.” A humilhação da derrota e o fim de um tipo de vida explicavam a literatura, que misturava nostalgia, decadência, romantismo sombrio e um certo preciosismo “faisandé”.
O estilo perdurou até autores modernos como Truman Capote, Carson McCullers, Flannery O´Connor, Tennesse Williams e o próprio Faulkner, e ganhou um nome: “gótico sulista”. O Sul perdeu a guerra, mas criou um gênero.
Quando Homero disse (se é que disse mesmo, nada que se sabe de Homero é cem por cento certo, nem a sua existência) que as guerras aconteciam para serem cantadas pelos poetas, não queria dizer que a arte compensava tudo. Ou queria?
Contam que um grupo de oficiais nazistas foi visitar o atelier do Picasso durante a ocupação de Paris e, vendo uma reprodução do seu quadro “Guernica”, a dramática recriação da destruição daquela pequena cidade pelos alemães na Guerra Civil espanhola, um deles comentou: “Ah, foi você que fez isso, não foi?” Ao que Picasso teria respondido: “Não, foram VOCÊS que fizeram isso.”

 Por um tortuoso raciocínio homérico se poderia concluir que os alemães foram coautores da pintura. Pelo mesmo raciocínio, louve-se a perseguição fascista na Europa pelo exílio de tantas mentes superiores e tanto talento na América, louve-se a escravatura pela nossa rica cultura negra e louve-se as agruras do nosso agreste pelos bons escritores e artistas nordestinos.
Tudo isto foi sintetizado naquela celebre fala que deram para o Orson Welles (há quem diga que a fala foi escrita pelo próprio Welles) no filme “O terceiro homem”, adaptado de um romance do Graham Greene. Para justificar seu mau caráter, Welles compara a conturbada história da Itália antes da unificação com a milenar placidez da Suíça. Enquanto a Itália, junto com conspiradores, corruptos e canalhas tinha produzido alguns dos maiores gênio da humanidade, a bem comportada Suíça só produzira o relógio cuco.
Mas a ideia de que arte compensa qualquer barbaridade é perigosa. Melhor dizer que os eventuais benefícios de crimes históricos não os absolvem. São efeitos acidentais, como certos queijos que descendem do leite estragado. E você, prefere a paz que só produz o relógio cuco ou a confusão que produz dois, três, muitos Leonardo da Vinci?

Crônica dominical de Luis Fernando Veríssimo

O poder do Papa
Os Papas já tiveram o poder de reis. A história da Europa é, em grande parte, a história desta divisão de poder, e da luta entre os dois absolutismos, o dos Papas e o dos monarcas. O Geoffrey Barraclough (historiador favorito do Paulo Francis quando este ainda era de esquerda e escrevia no “Pasquim”) tinha uma tese segundo a qual a rivalidade de Roma com os reis explicava a superioridade da Europa sobre as sociedades orientais, que já eram civilizadas quando a Europa ainda era terra de bárbaros, mas governadas por dinastias antigas, rígidas e incontestadas, e por isso paradas no tempo.
Na Europa, quem não quisesse se submeter a uma monarquia tinha a opção de se submeter à Igreja. A troca era de um império teocrático por outro, claro, mas criou-se o hábito de dissidência e de pensamento dialético, prólogo para o desenvolvimento científico que viria depois, apesar do obscurantismo da Igreja. E a opção determinou que a Europa não fosse um império monolítico, e sim uma coleção de pequenos Estados.
Acima de tudo, o pluralismo reforçou a independência e a importância das cidades comerciais — Milão, Palermo, Gênova, Veneza, Marselha, Barcelona, Antuérpia, Southampton, Lisboa, as cidades da liga hanseática (o primeiro ensaio de um mercado comum europeu) etc. —, cuja competição impulsionaria as descobertas e a expansão colonial. Tudo isto porque os Papas eram iguais aos reis, inclusive na pretensão de representarem a vontade de Deus na Terra, com exclusividade.
Dizem que certa vez Stalin reagiu à notícia de que o Vaticano o teria reprovado, por alguma razão, com a pergunta desdenhosa: “E quantas divisões tem o Papa?” Desde que perdeu seu poder que rivalizava com o dos reis, o Papa só tem a seu dispor a Guarda Suíça, e assim mesmo para fins decorativos. Mas o Vaticano é o grande exemplo de um Estado cuja potência não se mede com armas — pelo menos não com armas convencionais.
Atualmente, a julgar pela recepção que ele teve no Brasil, o arsenal do Vaticano se resume ao sorriso simpático de um homem. A Igreja não tem mais a relevância política e histórica que teve antigamente e sacrificou muito da sua autoridade moral com posições retrógradas e escândalos financeiros e sexuais. Mas a emoção das multidões que ele mobilizou serviria como uma resposta ao Stalin.

Crônica semanal de Luis Fernando Veríssimo

Heróis e História
Velha questão: são os homens providenciais que fazem a História ou é a História que os providencia? Estou pensando no Mandela. Ele sem dúvida fez história, mas o apartheid teria se mantido mesmo sem a resistência dramatizada na sua prisão e no seu sacrifício? Provavelmente não.
Martin Luther King simbolizou a luta pelos direitos dos negros nos Estados Unidos, empolgou e inspirou muita gente, mas a injustiça flagrante da segregação racial estaria condenada mesmo sem seus discursos e seu exemplo.
Frequentei uma high school americana durante três anos e todos os dias, antes de começarem as aulas, botava a mão sobre o coração e prometia lealdade à bandeira aos Estados Unidos da América a à republica que ela representava, com liberdade e justiça para todos, e certamente não era só eu que completava, em silêncio, o juramento: “...exceto para os negros.”
Durante anos a democracia americana conviveu com imagens de discriminação racista, linchamentos e outra violência contra negros no Sul do país. Variava apenas o grau de consciência em cada um da hipocrisia desta convivência cega.
O que Martin Luther King fez foi tornar a consciência universal e a hipocrisia visível, e insuportável. Mas a justiça para todos viria — ou virá, ou tomara que venha, numa América ainda dividida pela questão racial, como mostra a revolta pela absolvição recente do assassino daquele garoto negro na Florida — mesmo sem a sua retórica.
Gandhi liderou o movimento de resistência pacifica que ajudou a liberar a Índia do domínio inglês. Há figuras como Gandhi — mais ou menos pacificas — em quase todas as histórias de liberação do jugo colonialista. Mas, por mais atraente que seja a ideia de heróis emancipadores derrotando impérios, a verdade é que eles serviram uma inevitabilidade histórica, independentemente da sua bravura, do seu discurso ou, como Gandhi, do seu apelo espiritual.
O poder da História de fazer acontecer o necessário, à revelia da iniciativa humana, soa como ortodoxia marxista, eu sei, mas consolemo-nos com a ideia de que a História pode nos ignorar, mas está do nosso lado.
E dito tudo isto é preciso dizer que poucas coisas na vida me emocionaram tanto quanto a aparição do Mandela antes do jogo final da Copa do Mundo na África do Sul, ovacionado pela multidão. Consequente ou não, ali estava um herói.

Crônica semanal de Luis Fernando Veríssimo

Ninguém é mais direitista do que um ex-esquerdista. Talvez porque a desilusão com as promessas nunca realizadas da esquerda se misture com a necessidade do novo direitista de exorcizar seu passado, de se auto punir pela sua ingenuidade.
Para repudiar o que era, o ex-esquerdista precisa arrasar o que era. Como está também arrasando o seu passado, a sua juventude e o tempo que perdeu acreditando em coisas como igualdade, solidariedade e a redenção da humanidade, não admira que sua crítica à esquerda seja tão ácida. Está lamentando a si mesmo, o que só aumenta sua raiva.
O adágio, tão repetido, segundo o qual quem não é de esquerda até uma certa idade não tem coração e quem não é de direita depois não tem cérebro, equipara a migração da esquerda para a direita como uma conquista da sabedoria.
Idealismo, crença em justiça social etc. seriam coisas que iríamos largando pelo caminho rumo à maturidade, junto com outras baboseiras juvenis. Não se tem notícia de uma migração ao contrário, de direitistas que voltam a ser esquerdistas, até como uma forma de recuperar a juventude.
E esquerdistas que continuam esquerdistas apesar de já terem idade para se darem conta do engano são alvos prioritários do escárnio dos convertidos. Ainda têm coração, os inocentes.
Os neoconservadores que levaram a política externa americana a sucessivos desastres nos últimos anos têm este nome porque muitos deles foram trotskistas na juventude. Abandonaram o internacionalismo trotskista e inauguraram o ultranacionalismo do “século americano”, e continuam influentes, mesmo sob o governo do Obama.
Os ex-trotskistas odeiam o que foram um dia, e seu conservadorismo ativo é uma forma de expiação. Caso notório de conversão foi a do escritor John dos Passos, ex-comunista e autor de alguns livros memoráveis de crítica social, que acabou seus dias quase como uma caricatura de direitista americano, com bandeira na frente da casa e tudo.
Para quem ainda se considera de esquerda, apesar das desilusões e de um coração combalido, o rancor dos convertidos tem seu lado positivo. Mostra que a esquerda ainda existe, logo chateia. Ou chateia, logo existe.

Luis Fernando Veríssimo: Kd De Gaulle?


O “Journal du Dimanche” de Paris de domingo trazia uma entrevista com Daniel Cohn-Bendit, um dos lideres da sublevação popular que quase derrubou o governo francês em maio de 1968 e que continua atuando, como ativista e analista político, com o nome que conquistou naquela primavera.
Não é mais o irreverente Dani Vermelho de 45 anos atrás, mas ainda é o remanescente mais notório daquela geração que fez o então presidente De Gaulle pensar em largar tudo e se mandar. Só mais tarde ficou-se sabendo como o velho general chegara mesmo perto de renunciar.
De Gaulle não era a única causa da revolta que começou com os estudantes e empolgou Paris, mas era um símbolo de tudo que os revoltosos não queriam mais.
Se maio de 68 não sabia definir bem seus objetivos, pelo menos tinha um ícone vivo contra o qual concentrar seu fogo. Um conveniente símbolo com dois metros de altura, um nariz dominador e a empáfia correspondente.
A chamada de capa para a entrevista de Cohn-Bendit era “Um perfume de Maio de 68” e a matéria fazia uma comparação mais ou menos óbvia do que acontece no Brasil com o que acontece na Turquia e o que aconteceu nas recentes “primaveras” árabes e em 68 em Paris. Óbvia e inexata.

Daniel Cohn-Bendit, líder estudantil de 1968 em Paris

Nos países árabes a rua derrubou ditadores, na Turquia a revolta é, em parte, contra um governo autocrático e inclui, como complicadora, a luta antiga pela hegemonia religiosa. E, diferente do maio de Paris, a combustão instantânea no Brasil ainda não produziu seus Cohn-Bendits nem tem um De Gaulle conveniente como um símbolo que resuma o que se é contra.
Ser contra tudo que está errado despersonaliza o protesto. Qual é a cara de tudo que está errado? No Brasil tanta coisa está errada há tanto tempo que qualquer figura, atual ou histórica, serve como símbolo da nossa desarrumação intolerável, na falta de um De Gaulle. Renan Calheiros ou Pedro Álvares Cabral.
Na sua entrevista, forçando um pouco a cronologia, Cohn-Bendit diz que 68 foi o preâmbulo de 81, quando a esquerda chegou ao poder na França. Junho de 2013 será o preâmbulo de exatamente o quê, no Brasil?
Aqui a esquerda, ou algo que se define como tal, já está no poder. O que vem agora? O Marx tem uma frase: se uma nação inteira pudesse sentir vergonha, seria como um leão preparando seu bote. Uma nação envergonhada dos seus políticos e das suas mazelas está inteira nas ruas. Resta saber para que lado será o bote desse leão.
Tempos interessantes, tempos interessantes.

16 de junho, por Luis Fernando Veríssimo


Hoje, 16 de junho, é o “Bloomsday”, um dia na vida de Leopold Bloom em Dublin, narrado por James Joyce no seu “Ulysses”.
Estive uma vez em Dublin. De certa maneira, conhecer Dublin é trair James Joyce. Stephen Dedalus, o herói autobiográfico de Joyce, precisou trocar a familiaridade de Dublin pelo silêncio e a sabedoria do exílio — “silence, exile and cunning” — para começar a forjar, na usina da sua alma, a consciência ainda por criar da sua raça, como anunciou, com típica grandiloquência irlandesa, no final de “Retrato do artista quando jovem”. Dedalus/Joyce voltou a Dublin na memória e a transformou num lugar mítico, uma das cidades chaves da literatura moderna, em “Ulysses” e “Finnegans wake”.
Mas você não chega à Dublin transfigurada de Joyce, chega em apenas outra capital do McMundo. O Rio Lifey, mesmo com uma simbólica lua cheia em cima, é apenas um rio que divide a cidade, não é o rio recorrente da vida que passa pelo Eden e deságua em si mesmo, ou Anna Livia Plurabelle, a mulher-rio, de “Finnegans wake”. Nem o homem sentado ao seu lado no “pub” é a condição humana incorporada na última versão do Leopold Bloom. Aliás, provavelmente é um turista alemão, nada mais longe da condição humana.
A cidade dá a devida atenção a Joyce. Há uma estátua dele numa rua central, um centro de estudos e um museu com seu nome e um Hotel Bloom (com um previsível “Molly Bar”, em homenagem à lânguida sra. Bloom, cujo “stream of consciousness” em “Ulysses” fez história literária e escândalo e levou o livro a ser proibido em vários países).

Estátua de James Joyce

Imagino que o dia 16 de junho em que se passa toda a ação de “Ulysses” seja comemorado de algum modo na cidade. Mas é impossível evitar a sensação de que Joyce representa para Dublin o mesmo problema que Freud representa para Viena.
São dois filhos complicados, com ideias e obras não facilmente reduzíveis para folhetos turísticos, e que têm pouco a ver com o espírito do lugar. Em Viena, o desconforto é maior. A Dublin mitificada de Joyce, afinal, não era um lugar lúgubre. Já Freud lembra tudo que a cidade da valsa e da torta de chocolate nem quer saber.
Mas a Dublin que a gente espera é a vista do exílio, o que quer dizer que chega-se lá para desconhecê-la. Depois de passar quatro dias em Dublin e gostar da sua jovialidade e alegre familiaridade, você se sente tentado a pedir desculpas a Joyce. Por confraternizar com o inimigo.

Luis Fernando Veríssimo: ting-ling

Nas casas senhoriais do Japão antigo era comum colocarem sininhos sob o assoalho dos corredores. Era impossível pisar numa tábua do chão de um corredor sem que soassem os sininhos. Conhecendo-se a violenta historia do Japão medieval, com facções em luta constante pelo poder, é fácil deduzir que os sininhos existiam para denunciar a aproximação de espiões ou assassinos. Mas o ting-ling também devia servir como alarme contra ladrões e para prevenir o flagrante de adultério. Imagine-se a senhora da casa prestes a arrancar as calças do entregador de pizzas, ou o equivalente na época, quando este levanta a cabeça e pergunta:
— Esse som de sininhos, é do templo?
— Não, é o meu marido!
O ting-ling era uma maneira prática de evitar surpresas. Mas pode-se imaginar o grau de desconfiança de uma sociedade em permanente pavor do que vem pelo corredor. Até que se revelasse quem ou o que vinha, os sininhos poderiam significar qualquer coisa, alimentar qualquer paranoia.
E qualquer tilintar poderia ser confundido com o ting-ling. Um gorjeio de passarinho, um pingo de chuva no teto, um brinde com cristais, até os inocentes sininhos do templo. E um gato solto num corredor espalharia o terror pela casa toda.
No Brasil de hoje desenvolvemos uma paranoia parecida. De tanto ouvir falara em roubalheira e maracutaias nos acostumamos a equacionar política e corrupção. Tudo que vem pelo corredor é suspeito, todo ting-ling é um prenúncio de escândalo.
E como no Japão antigo também vivemos em permanente estado de desconfiança. Claro que a classe política é responsável pela sua própria má reputação, mas há exceções importantes. E hoje não se rouba mais do que antes — é que antes não se ficava sabendo a metade.
Enfim: nem tudo que tilinta é má notícia.

Papo vovô

Luis Fernando Veríssimo
Engana-se quem acha que os avôs vivem num paraíso enquanto os pais padecem com as crianças. Ser avô também requer pratica e habilidade e, acima de tudo, versatilidade. Ainda mais quando a neta tem uma imaginação ativa, como a Lucinda, e vive mudando a distribuição de papéis nos seus faz de contas.
Você um minuto é príncipe e no outro é pai, no outro é caçador e no outro é monstro, e pode passar rapidamente de rei a cachorro. O que exige do avô um talento histriônico fora do comum, além de preparo físico.
Uma das minhas encarnações é a de marido. Já nos casamos várias vezes, e como marido tenho um direito que nenhum outro personagem tem, nem o cachorro: o de ser chamado de “meu amor”. É o meu papel preferido.

Carrocinha de pipoca

por Luis Fernando Veríssimo
Eu sei que a coisa é séria. Se o Kim Jong-Un disparar mesmo os foguetes que está ameaçando disparar contra bases americanas na Ásia, teremos uma guerra nuclear com dimensões e consequências imprevisíveis. Mas lendo sobre o perigo iminente não pude deixar de pensar na história do homem que foi atropelado por uma carrocinha de pipoca.
Era um homem cauteloso, que olhava para os dois lados antes de atravessar a rua e só atravessava no sinal, e que dificilmente um carro pegaria. Mas que um dia não viu que vinha uma carrocinha de pipoca, e paft. Já no ambulatório do hospital, onde lhe deram uns pontos no braço, o homem disse que tinha sido atropelado por um motoboy.
Em casa, contou que tinha sido atropelado por um carro e só por sorte escapara da morte. Naquela noite, para os amigos que souberam do acidente e foram visitá-lo, especificou: tinha sido atropelado por um BMW.
No dia seguinte disse aos colegas de trabalho que tinha sido atropelado por um caminhão e não sofrera mais do que um corte no braço, por milagre. E quando um dos colegas de trabalho comentou que tinha visto o acidente e vira o homem ser atropelado por uma carrocinha de pipoca, gritou: “Calúnia!”
Por que me lembrei do homem que tinha vergonha de ter sido atropelado por uma carrocinha de pipoca? 
Desde o fim da Guerra Fria a possibilidade de um confronto nuclear entre duas potências, os Estados Unidos e a Rússia, diminuiu, mas os estoques de armas nucleares continuaram e sua proliferação também. Israel se segura para não usar seus foguetes para destruir as bombas nucleares que o Irã está ou não está construindo, Índia e Paquistão vivem comparando seus respectivos arsenais nucleares como guris comparando seus pipis, a França e a Inglaterra têm a bomba...
Enfim, ainda se vive num frágil equilíbrio de terror possível, exigindo de todos os nucleares um cuidado extremo, um cuidado de atravessar a rua sem serem atropelados pelo imprevisto. E aí aparece o Kim Jong-Un empurrando uma carrocinha de pipoca em alta velocidade...

Emma Bovary e Anna Karenina são as adúlteras mais famosas da literatura


e as duas tiveram o mesmo fim. Foram vítimas da sua época, da hipocrisia das sociedades em que viviam — mas também do moralismo disfarçado dos seus autores, que as criaram para se destruírem.
Flaubert e Tolstoi condenaram a hipocrisia, mas não deixaram de castigar as suas duas transgressoras, ou de permitir que elas se castigassem. Enfim, foram homens, com sua misoginia à mostra, antes de serem artistas defendendo a transgressão.
Ainda não fizeram, que eu saiba, um bom filme de “Madame Bovary” (o último que tentou sem sucesso foi o falecido Claude Chabrol), mas o filme definitivo de “Anna Karenina” está nas telas, deslumbrando todo o mundo.
A explicação talvez seja que Flaubert nunca encontrou um colaborador à sua altura para fazer o roteiro, enquanto Tolstoi encontrou o Tom Stoppard. E os dois contaram com um diretor aventureiro como Joe Wright, que conseguiu fazer um filme altamente estilizado, na sua redução dos cenários — até o de uma corrida de cavalos — a um teatro e seus bastidores, sem que isto parecesse preciosismo vazio ou atrapalhasse o drama.
O filme é teatro sem ser teatral, como escreveu o Xexeo. E se tivesse sido filmado de forma convencional não teria a metade do impacto visual que tem. Com pouquíssimas tomadas externas, sem sair dos confins de um teatro, o filme mostra a Rússia imperial em todo o seu esplendor e miséria. O vasto exterior só aparece como contraponto para o claustrofóbico pequeno mundo da corte. 
Joe Wright, para quem não se lembra, é o diretor, entre outros, do filme “Atonement” (“Desejo e reparação”, se não me engano), baseado num romance de Ian McEwan. O filme contém o que é provavelmente o mais longo travelling ininterrupto da história do cinema, toda a confusão na praia de Dunquerque, onde tropas inglesas fugindo dos alemães no começo da guerra esperavam para serem retiradas, captada numa única e interminável tomada de tirar o fôlego. Podia ser exibicionismo técnico gratuito, mas mostrava a audácia de um diretor, que agora se confirma com este entusiasmante “Anna Karenina”. Olho nele.
Mesmo para quem acha que nunca haverá outra Anna como a Greta Garbo, ou faz restrições a um ou outro incisivo da Keira Knightley, o filme é uma experiência imperdível. Ganhou só um Oscar, o que também o recomenda.
Luis Fernando Veríssimo

Bergoglio: um Papa inesperado




"A Igreja argentina sempre teve um poder junto à classe conservadora e o pensamento dos seus lideres muito maior do que a igreja brasileira junto a nossa elite, por exemplo."
Eu sei que ninguém mais diz coisas como “pelas barbas do profeta!” mas acho que deveríamos ter uma expressão parecida pronta para os casos de grandes surpresas (minha sugestão: “Pelas coxas da Beyonce!”) como a eleição de um papa inesperado.
Guardadas as obvias diferenças, a escolha do argentino Jorge Mario Bergoglio equivale a um daqueles prêmios Nobel de Literatura dado a um autor que só dezessete pessoas no mundo conhecem, e dez estão mentindo. Na Venezuela corre a versão de que a escolha de Bergoglio foi resultado de um pedido feito pessoalmente a Deus pelo Hugo Chavez. Pode ser verdade, mas o que não contam é que a primeira reação do Senhor ao ouvir o nome do argentino foi “Quien?” As piadas proliferam.
Já ouvi que, junto com a euforia, nota-se um certo desapontamento na Argentina pelo fato do novo papa ter preferido se chamar Francisco e não Diego Armando. A eleição do Jorge Mario, junto com os gols do Messi, espalham um certo temor pelo mundo: o de que a certeza argentina da sua superioridade sobre todos nós pode não ser megalomania!

Luis Fernando Verissimo: elefante na sala


A única maneira de conviver com um elefante na sala é fingir que ele não está ali. Ignorá-lo. Se algum visitante desavisado perguntar o que um elefante está fazendo na sua sala, a resposta padrão deve ser: “Que elefante?”
No Brasil nos acostumamos a conviver com elefantes na sala. Exemplo: só quase 30 anos depois do fim do período de exceção inaugurado em 1964, uma comissão começa a procurar a verdade sobre o que realmente aconteceu durante o período.
Por quase 30 anos este elefante específico não mereceu atenção e viveu entre nós como um parente apenas vagamente incômodo. A tal comissão não vai punir, antes tarde do que nunca, os desmandos da época. Os criminosos de então estão anistiados, mesmo identificados não sofrerão castigo ou sequer reprimendas da sua própria corporação. Mas pelo menos o elefante está sendo reconhecido. E citado. 

Outros elefantes continuam ignorados, e continuam na sala. Hoje não há nenhuma duvida de que o cigarro mata e o fumo é a principal causa do câncer no Brasil e no mundo. No caso do Brasil só o volume de impostos que a indústria do fumo paga ao governo explica que não haja um combate mais aberto e decisivo ao vício assassino.


Em alguns casos a indústria tem até vantagens fiscais. Já o volume de impostos não pagos pelas religiões organizadas explica a proliferação de igrejas e seitas no país e a presença de pastores evangélicos brasileiros nas listas dos mais ricos do mundo. Mas a isenção dada ao negócio da religião é um dos assuntos intocáveis do país, um elefante enorme cuja presença na sala nem a imprensa nem ninguém se anima a reconhecer. 

Crônica semanal de Luis Fernando Veríssimo

Bilhar 

Da série “Poesia numa hora dessas?!”
“E essa agora?
Se o que explodiu sobre a Rússia mostrou alguma coisa
foi que meteoro não tem hora.”
 O mais assustador do meteoro que cruzou o céu da Sibéria e explodiu no ar como várias bombas atômicas é que ele chegou sem ser anunciado. Com todas as atenções voltadas para um asteroide, o que passou de raspão, o meteoro da Sibéria entrou pela porta dos fundos sem ser detectado.
A desculpa é que era pequeno demais para chamar a atenção e por isso os alarmes não funcionaram. Nossa ilusão, até agora, era que qualquer detrito espacial que se aproximasse de nós seria identificado e rotulado, e sua trajetória calculada até o último milímetro com grande antecedência, o que nos daria tempo para preparar o espírito — ou usar nossos cartões de crédito até o limite — no caso de a colisão com a Terra ser inevitável.
Agora sabemos que qualquer coisa menor do que meio campo de futebol pode chegar de surpresa e explodir sobre nossas cabeças. Só nos faltava essa.
Imagino que tenha gente pensando em como evitar a catástrofe, no caso de um asteroide gigante vir em nossa direção. O cinema já previu algumas soluções, como a de mandar um foguete com ogiva nuclear desintegrar o bólido antes que ele nos atinja.
O problema é o asteroide grande se desintegrar em vários asteroides pequenos, como o meteoro que assustou a Sibéria, o que não seria vantagem. Outra dúvida é como nos comportaríamos se nenhum plano de defesa se mostrasse viável e nosso destino fosse, fatalmente, o dos dinossauros, que desapareceram depois que o choque de um asteroide mudou o clima da Terra.
Como a perspectiva de uma morte coletiva, que não distinguisse classes, ricos e pobres, virtuosos e pecadores, afetaria as relações humanas, nos nossos últimos dias de existência? Não tenho nenhuma vontade de descobrir. Se bem que a situação até daria uma boa crônica.
Corpos celestes se chocando no espaço lembram o que disse o Einstein sobre a aparente desorganização do Universo. Ele negou que fosse tudo aleatório e não seguisse nenhum plano. Deus, afirmou Einstein numa frase que ficou famosa, não joga dados com o Universo. Tinha razão. Não joga dados, joga bilhar.

Drones e o Papa

O “drone” é um sonho de arma. Realiza o ideal de qualquer soldado, que é o de matar inimigos sem o risco de morrer também. O “drone” é controlado à distância, sua “tripulação” nunca sai do chão e seus ataques são guiados, imagino, por comandos parecidos com os de um videogame.

Foguetes e bombas são disparados dos “drones” com simples toques dos dedões e os resultados aparecem na tela para serem comemorados. Como nos videogames.
De certa forma, o “drone” é a última etapa de uma evolução que vem vindo desde que a única arma de guerra era o tacape e os homens buscavam maneiras mais assépticas de se matarem.
Daí inventaram a lança, o arco e flecha, a catapulta, o canhão — tudo para aumentar a distância entre os guerreiros e evitar os respingos de sangue. Com o “drone” chega-se perto da perfeição. Já se pode liquidar inimigos da poltrona.
Mas, ao contrário dos videogames, os “drones” matam gente, e indiscriminadamente. Hoje não se fala mais em bombardeios “cirúrgicos”, talvez porque estivesse ficando muito mal para a cirurgia.
Os ataques de “drones” americanos no Afeganistão eliminam os alvos e o que estiver por perto, e crescem as estatísticas de efeitos colaterais como a morte de crianças, entre outros inocentes.
Nos Estados Unidos tem havido protestos contra o uso de “drones”, mas o presidente Obama e seu novo secretário da Defesa já disseram que o aprovam. Afinal, até hoje não há caso de um avanço na tecnologia da guerra que tenha sido suspenso por motivos humanitários.
Ninguém mais usou bombas nucleares depois das de Hiroshima e Nagasaki, é verdade, mas porque usá-las seria suicídio. Os “drones”, à prova de retaliação, são o exato oposto das bombas nucleares. Que, de qualquer maneira, continuam estocadas, de prontidão.
A próxima etapa da evolução pode ser a substituição de soldados por robôs. O ascetismo chegaria ao máximo e ninguém mais morreria em ação. Pelo menos do lado americano.

Crônica semanal de Luis Fernando Veríssimo

A filha do tempo

Ricardo III, cuja ossada acaba de ser descoberta sob um estacionamento em Londres, é o melhor — ou, no caso, o pior — dos vilões de Shakespeare. Nenhum outro tem, como ele, tanta consciência da própria vilania e a exerce com tanto gosto.

O Ricardo III do Shakespeare e da História é um monstro que manda matar seus pequenos sobrinhos para herdar o trono, seduz a viúva de um homem que acaba de matar e comete um sortimento de maldades para se manter no poder — sempre festejando seu próprio mau caráter.
Foi o último rei da Inglaterra a morrer em combate e, segundo Shakespeare, na véspera da batalha em que perderia a vida (pedindo “Um cavalo, um cavalo, meu reino por um cavalo!”) é visitado pelos fantasmas de suas vítimas, e ouve de todos a mesma imprecação: “Desespere, e morra!”
Mas Ricardo III pode ter sido injustiçado, pela história e por Shakespeare. Uma escritora escocesa de livros policiais chamada Josephine Tey colocou o herói de várias das suas histórias, o inspetor Alan Grant, da Scotland Yard, numa cama de hospital com uma perna quebrada e sem nada para fazer.
Para combater o tédio, Grant resolve investigar, usando apenas livros e documentos que lhe são fornecidos por um amigo pesquisador, a verdadeira história do suposto tirano. A conclusão do inspetor e da sua criadora é que Richard III não era nada do que diziam dele. Talvez a sua deformidade física — ele era corcunda, o que foi comprovado pela ossada recém recuperada — tenha contribuído para sua fama de monstro.