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Particularidades do Brasil, por Luis Fernando Veríssimo

Uma das particularidades do Brasil que com certeza desorientará os historiadores futuro será a notória existência no país - única em todo o mundo - de dois sistemas de pesos e medidas. O cidadão poderia escolher um sistema como se escolhe uma água mineral, com gás ou sem gás. No caso, pesos e medidas que valiam para todo mundo, especialmente para o Psdb, ou pesos e medidas que só valiam para o PT. Leia mais Aqui


Resultado de imagem para charge pesos e medidas

Ri palhaço

A crônica abaixo, de autoria do genial Fernando Veríssimo, dedico aos midiotas, coxinhas e paneleiros do Brazil.
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Depois da provável cassação da Dilma pelo Senado, ainda falta um ato para que se possa dizer que la commedia è finita: a absolvição do Eduardo Cunha. Nossa situação é como a ópera “Pagliacci”, uma tragicomédia, burlesca e triste ao mesmo tempo. E acaba mal. Há dias li numa pagina interna de um grande jornal de São Paulo que o Temer está recorrendo às mesmas ginásticas fiscais que podem condenar a Dilma. O fato mereceria um destaque maior, nem que fosse só pela ironia, mas não mereceu nem uma chamada na primeira página do próprio jornal e não foi mais mencionado em lugar algum.

Juliano Santos - O Nassif é tão bonzinho


Comentário ao post "O xadrez de Ilan Goldfajn" de Luis Nassif

O Nassif é tão bonznho, as vezes parece a velhinha de Taubaté. O Parente pode ter um nível intelectual acima desses aí que acham que planta industrial é um vegetal. Provavelmente esses são indicações do Cunha. Mas isso não importa. O que importa é que o cara está lá para vender o pré-sal a preço de banana.
Sem dúvida que não se pode comparar o nível de preparo da porção tucana do governo Temer com a porção Cunha. A primeira está lá para fazer a privataria II, o retorno. Ou melhor, acabar o serviço que o FHC não teve tempo. São todos cultos, letrados e acima de tudo elegantes. Mas no final das contas o resultado é o mesmo.  Pau no lombo de nosotros!
PS: O cara do Itaú vai criar uma instância acima do BC para o governo fazer política monetária menos comprometida com o mercado
Autor: Juliano Santos

Crônica do dia

Andorinha
A Dilma descobriu que, como uma andorinha só não faz verão, um Joaquim Levy no Ministério da Fazenda não significou muito. Levy na Fazenda era para ser um sinal de que o governo sucumbira à realidade e adotaria a temível austeridade, mesmo sacrificando princípios do PT. Depois das benesses do Mantega, o rigor do Levy, com liberdade para fazer o que fosse preciso para mostrar que a festa acabara, a banda já fora dormir e reinava a responsabilidade fiscal no salão vazio. Não deu certo. O mercado não acreditou na mudança, Levy foi inútil como uma andorinha solitária, e o único resultado alcançado pela Dilma foi brigar com o PT.
Mas agora tudo vai mudar. Alguém duvida da responsabilidade fiscal daqueles brancos engravatados, todos com impecáveis credenciais liberais, na fotografia do Ministério? Mesmo com a nova austeridade, os programas sociais do PT continuarão, disse o Temer, que também garantiu que a Copa América será nossa e que vai chover menos. De onde virá o dinheiro para os programas sociais do PT continuarem, apesar da nova austeridade? A questão foi debatida na primeira reunião do Ministério e ouvi dizer que alguém sugeriu, timidamente, “Quem sabe a gente dá algumas pedaladas, como a Dilma?” e foi atirado pela janela.
É injusto dizer que o país está mal representado no Ministério do Temer. Há de tudo no Ministério: racistas, machistas, tudo. Richard Nixon certa vez defendeu uma nomeação sua que estava sendo muito criticada com a sábia frase: “A mediocridade também precisa ser representada”. Temer não esqueceu os medíocres. Foi mais longe, na sua preocupação de montar um retrato fiel da população. Lembrando o número de brasileiros sendo investigados pela Operação Lava-Jato, Temer fez questão de incluir quatro investigados no seu Ministério, para manter o principio da proporcionalidade.
Voltando à andorinha, não deixa de ser irônico ninguém ter culpado o Levy pelo descontrole da economia brasileira. Ele teve todo o poder na mão, inclusive contrariando o amor liberal pelo Estado mínimo, e fracassou. Claro, era uma andorinha só, um estranho no ninho do PT, mas fracassou. A Dilma também errou, pensando que o convite ao Levy bastaria como uma mensagem de paz para quem não queria paz, queria sua cabeça de qualquer jeito.
No fim , é uma história de solidões. Do Levy, da Dilma e, claro, da andorinha que não significava nada.
por Luis Fernando Veríssimo

O sono da memória, crônica de Luis Fernando Veríssimo





Não há problema em publicar o “Mein Kampf” do Hitler, cujos direitos de edição recém caíram em domínio público. O livro interessa a historiadores e estudiosos da psicologia de massa e a qualquer pessoa curiosa sobre o poder das suas ideias, um poder capaz de galvanizar uma nação e mudar radicalmente a sua história. Eu só acho que as novas edições de “Mein Kampf” deveriam vir com um DVD encartado, com cenas dos cadáveres empilhados e dos moribundos esquálidos descobertos em Auschwitz e outros campos de extermínio, no fim da Segunda Guerra Mundial. Cenas terríveis dos esqueletos das cidades bombardeadas e dos milhares de refugiados tentando sobreviver em meio aos escombros, enquanto o mundo ficava sabendo, nos julgamentos dos criminosos, das barbaridades cometidas em concordância com a Kampf do Hitler. Assim, o comprador do livro teria o nazismo como teoria e o nazismo na prática. As ideias e suas consequências.
Seria bom se as ideias viessem sempre acompanhadas de suas consequências. As pessoas pensariam melhor no que dizem e pregam, para não terem remorso depois. Já se disse que muitas barbaridades teriam sido evitadas no mundo se existisse algo parecido com o remorso antes do fato, uma espécie de remorso preventivo. Não se imagina o próprio Hitler se arrependendo das suas teses e, diante dos horrores que elas desencadearam, dizendo “Ei, pessoal, não era nada disso!”. Está claro que no cerne patológico da pregação de Hitler há uma volúpia de destruição, um desejo secreto de caos que tem tanto a ver com o romantismo alemão quanto com a geopolítica da época. Mas outros não têm o mesmo motivo para desprezarem as consequências. Ou para esquecerem-se delas.
Naquela famosa legenda de uma gravura do Goya está escrito que o sono da razão cria monstros. Pior que o sono da razão, Goya, é o sono da memória. As pessoas que hoje defendem a volta da ditadura militar no Brasil esqueceram-se de como foi. Esqueceram-se das prisões arbitrárias, das torturas, do terror e dos assassinatos de Estado, da censura, do número de estrelas nos ombros como única credencial para governar. Se não lhes falta memória, lhes falta razão. Ou miolos.
O Jair Bolsonaro, principal proponente da volta à ditadura, é o deputado mais votado do Rio. Tem uma multidão de apoiadores. E tem mais do que isso: na recente mudança no Comando Militar do Sul, Bolsonaro foi um convidado especial do novo comandante para a cerimônia de posse. Não se sabe se o comandante também é um nostálgico como ele. De qualquer maneira, tenho tido longas conversas com a minha paranoia, tentando acalmá-la.

Crônica semanal de Luis Fernando Verissímo

Virando anedota
A oposição entre corpo e alma não existia em tempos bíblicos, ou pelo menos na linguagem bíblica. Mas a versão em latim antigo das Escrituras que Santo Agostinho lia usava “anima” para traduzir “nefesh”, que em hebraico não quer dizer alma mas algo como sopro vital, ser, uma forma exaltada do “eu”. E foi nesse engano que tudo começou.
 
A alma e o corpo se separaram e nunca mais se encontraram. E nunca mais se pode ler o Velho Testamento a não ser como Agostinho o lia, não como um relato da aventura do corpo humano no mundo como Deus o fez, cheio de som, fúria, sangue e sacanagem, mas como uma alegoria espiritual, em que até os cantares eróticos de Salomão queriam dizer outra coisa: a luta da alma para transcender o corpo, que para Agostinho significava a sexualidade.
 
Tudo culpa de um mau tradutor.
 
 Freud tentou, de certa maneira, retransformar “anima” em “nefesh”, mas como muito do que ele escreveu em alemão também foi mal traduzido em outras línguas, a confusão só aumentou. No fim a grande danação sob a qual vive a Humanidade não é a da História nem da carne, é a insanável danação de Babel.
 
 Deus disse “que haja muitas línguas, e que cada língua tenha muito dialetos”. E depois, para ter certeza que os homens nunca mais se entenderiam, completou: “E que haja tradutores.”
 
Um estudo, mesmo superficial como o meu, da etimologia e das transformações que as palavras sofrem através do tempo e das más traduções revela coisas fascinantes.
 
 “Escândalo” — uma palavra que nos diz muito respeito — está indiretamente ligado, na sua origem, aos pés. Sua raiz indo-europeia é “skand”, pular ou subir, de onde também vem escalada. Quem pula ou sobe precisa cuidar onde põe os pés e o grego “skandalon” significa um obstáculo ou uma armadilha.
 
 “Scandalum“ em latim tanto pode significar tentação como armadilha. No francês antigo “scandal“ era um comportamento antirreligioso que agredia a Igreja todo-poderosa e, da mesma origem, existia a palavra “sclaudre”, de onde vem o inglês “slander”, ou difamação.
 
Alguns escândalos não investigados, como acontece muito no Brasil, acabam virando anedotas. “Anedota” vem, através do francês “anecdote”, do grego “anekdotos”, história não publicada, presumivelmente tanto no sentido de inédita quanto no sentido de versão não oficial, secreta, clandestina, enfim, tipo “em Brasília não se fala em outra coisa”.
 
 Em francês queria dizer pequeno relato ilustrativo à margem de um relato maior. No seu sentido brasileiro continua sendo uma história marginal, só que engraçada, ou se esforçando para ser.
 
Sobrevive, na anedota, a tradição homérica da literatura oral, passada de geração a geração sem necessidade de escrita. Se for escrita, deixa de ser anedota. Muitos contadores anotam o fim da anedota para não esquecê-la, mas se sentiriam heréticos se a escrevessem toda. E assim correm o risco de esquecerem o resto e ficarem com uma coleção de últimas frases sem sentido.
no O Globo


Transbording - crônica

de Luis Fernando Veríssimo
Triste o país que tem vergonha da própria língua.
Fico pensando num corretor de imóveis tendo que mostrar, para compradores em potencial, um apartamento no edifício Golden Tower, ou similar, em algum lugar do Brasil.
— Isto é o que nos chamamos de entrance.
— Entrance?
— Ou front door. Porta da frente.
— Ah.
— Aqui temos o living room e o dining room conjugados. Ou conjugated. Por aqui, a gourmet kitchen.
— Kitchen é…?
— Cozinha, mas nós não gostamos do termo. Isto aqui é interessante: é o que chamamos de coffee corner, onde a família pode tomar seu breakfast de manhã. A gourmet kitchen vem com todos osappliances, e o prédio tem uma smart laundry comunitária.
— O que é smart laundry?
— Não tenho a menor ideia, mas é o que está escrito no flyer. E passamos para o corridor que leva ao master bedroom, ou suíte, em português. As camas podem ser king size ou queen size. Aqui temos o closet, que em português também é closet. E aqui temos esta giant window que dá para o garden do prédio, e o playground. Você tem kids?
— O quê?
— Kids. Crianças.
— Ah. Não.
— O garden também tem uma green walk, que é uma trilha para passear entre as trees and tropical plants, e um infinity pool que é uma piscina que parece que está sempre transbordando, outransbording. Além disso, claro, existe um indoor pool, que faz parte do fitness center. Ah, e se comprarem o apartamento vocês automaticamente passam a fazer parte do party club, onde tem um barbecue pit.
— Barbecue pit?
— Churrasqueira. E podem usar o working hub, que eu também não sei o que é, mas com esse nome só pode ser coisa fina.
— E a segurança...?
— Garantida dia e noite, ou twenty-four/seven.
— Porteiro?
— Sim, mas não chamamos de porteiro. Ele é um hall concierge.
— Tudo ótimo, mas não sei se vamos comprar o apartamento.
— Por que não?
— Ter que mostrar o passaporte, sempre, para entrar em casa... Sei não.


Publicada originalmente no Estadão

Saudade de Ted Boy Marino

Crônica de Luis Fernando Veríssimo
Alguma coisa aconteceu no coração do Brasil quando acabaram com as lutas de “catch”. Elas eram um sucesso na TV e seus astros viajavam em caravanas pelo país, apresentando-se em ginásios e circos. As lutas não eram lutas, eram teatro. Não eram exatamente combinadas, mas seguiam um roteiro estabelecido e havia um acordo tácito de que ninguém sairia do ringue machucado, mesmo que saísse arremessado.

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Luis Fernando Veríssimo e os buracos morenos

Buracos que tem predileção por tucanos

A mais nova especulação da Física é que existem mais buracos negros no Universo do que se imaginava. Eles não estariam apenas na imensidão sideral, como gigantescos aspiradores engolindo galáxias inteiras, mas também à nossa volta, como pequenos ductos para o Universo paralelo. Seriam tão comuns e fariam parte do nosso cotidiano de tal maneira que deveríamos parar de chamá-los de buracos “negros”, com sua conotação de obscuridade e terror, e adotar um nome mais íntimo, como buracos morenos (mas não, claro, buracos afrodescendentes). Qualquer um de nós está sujeito a ser tragado por um desses buracos e se ver, de repente, no outro Universo. Onde poderia muito bem encontrar aquela caneta favorita que tinha sumido, o último disco do Chico que desconfiava que alguém tinha roubado, livros e outros objetos inexplicavelmente desaparecidos e até a tia Idalina, que todos pensavam que tinha fugido com um boliviano e fora apenas sugada por um duto.

Crônica

A mulher feia de cada um
Para-choques de caminhão têm sempre o que dizer, e algumas das suas frases tornaram-se clássicas. Há declarações religiosas, num tom de catequese ressentida (“Deus é maior do que você merece”). Há as frases que tratam das agruras do casamento (“Se casamento fosse coisa boa, não precisava de testemunha”) e das suas consequências indesejáveis (“Deus fez a mãe e o Diabo fez a sogra”). Algumas são sobre o sexo (“Bom é mulher carinhosa e embreagem macia”) e sobre as armadilhas do sexo (“Casamento que começa em motel termina em pensão”), outras são exemplos de sabedoria prática (“Devagar se vai ao longe... mas leva muito tempo”, “Cana dá pinga, pinga demais dá cana”, “Em terra de sapo mosquito não dá rasante” etc) e outras apenas confessionais (“Devo tudo à minha mãe, mas estamos negociando”).

A minha frase de para-choque preferida é “Se me virem abraçado com mulher feia, podem apartar que é briga”. Uma frase preconceituosa, é claro. Se você for examiná-la de perto — o que é sempre desaconselhável com qualquer piada — a frase é cruel. A mulher tem muitas maneiras de ser bonita sem, necessariamente, ser vistosa. E há muitas razões para estar abraçado com uma mulher feia sem que seja briga. O importante na frase é o que a mulher feia significa para cada um. A mulher da frase, além de feia, é simbólica. Representa todos os mal-entendidos que queremos evitar a nosso respeito. Ela é a causa que nunca abraçaríamos, embora pareça que sim. Por exemplo: se me virem participando de uma manifestação de rua de que também participe o Jair Bolsonaro ou similar, com faixas pedindo a volta da ditadura militar, podem ter certeza que, ou não sou eu ou entrei na manifestação errada. Os outros manifestantes podem não se incomodar com a companhia, e sua decisão é respeitável. Mas eu sei bem que mulher feia não quero do meu lado.

Acho que todo mundo deveria se preocupar com a mulher feia que aparecerá na sua biografia, quando contarem a história destes tempos. Estamos vivendo um preâmbulo de golpe, em que as causas se misturam, a fronteira entre o oportunismo político e moralismo exacerbado se dilui, e as definições são impossíveis — pelo menos definições claras e precisas como as de um para-choque. Mas no futuro cada um terá de dizer se estava dançando ou brigando com mulher feia.
by Luis Fernando Veríssimo


10 dicas para fazer o casamento durar




  1. Duas vezes por semana, vamos a um ótimo restaurante, com uma comida gostosa, uma boa bebida e um bom companheirismo. Ela vai às terças-feiras e eu, às quintas.
  2. Nós também dormimos em camas separadas: a dela é em Fortaleza e a minha, em SP.
  3. Eu levo minha mulher a todos os lugares, mas ela sempre acha o caminho de volta.
  4. Perguntei a ela onde ela gostaria de ir no nosso aniversário de casamento, “em algum lugar que eu não tenha ido há muito tempo!” ela disse. Então, sugeri a cozinha.
  5. Nós sempre andamos de mãos dadas…Se eu soltar, ela vai às compras!
  6. Ela tem um liquidificador, uma torradeira e uma máquina de fazer pão, tudo elétrico. Então, ela disse: “nós temos muitos aparelhos, mas não temos lugar pra sentar”. Daí, comprei pra ela uma cadeira elétrica.
  7. Lembrem-se: o casamento é a causa número 1 para o divórcio. Estatisticamente, 100 % dos divórcios começam com o casamento.
  8. Eu me casei com a “senhora certa”. Só não sabia que o primeiro nome dela era “sempre”.
  9. Já faz 18 meses que não falo com minha esposa. É que não gosto de interrompê-la.
  10. Mas, tenho que admitir: a nossa última briga foi culpa minha. Ela perguntou: 
- O que tem na TV?”
- E eu disse: “Poeira”.

by Luis Fernando Veríssimo



Blasfêmia, por Luis Fernando Veríssimo



Vamos combinar que não existe nada mais ofensivo do que um tiro na cabeça. Não posso imaginar uma blasfêmia maior do que espalhar os miolos de alguém com um AK-47. Porque tem gente dizendo que os cartunistas do “Charlie Hebdo" foram longe demais, o que equivale a dizer que mereceram o que lhes aconteceu. É o mesmo raciocínio de quem diz que mulher estuprada geralmente estava pedindo.
“Blasfêmia” quer dizer uma afronta ao sagrado. Assim, a verdadeira discussão não é sobre o que as pessoas consideram blasfêmia, mas sobre o que consideram sagrado. A descrença em qualquer divindade é uma blasfêmia perene — ou, visto de outra forma, quem não crê em nenhum deus não pode, por definição, ser um blasfemo.
Muitas vezes o que se faz em nome de uma crença ou de uma divindade é que é blasfêmia: uma ofensa a quem acha que sagrado deve ser a vida humana, o direito de pensar livremente e o direito de descrer. Não se está falando só do islamismo radical. Já houve tempo em que não acreditar no Deus da Igreja Romana era razão suficiente para ser queimado vivo. Levava mais tempo do que um tiro de AK-47.
Mudando de assunto, mas não muito. A reação do George W. Bush aos ataques ao World Trade Center foi da catatonia, quando recebeu a notícia, à hiperatividade impensada que resultou na transformação da base americana de Guantánamo em campo de concentração para “terroristas” que, na sua maioria, não tinham nada a ver com o atentado e, mais tarde, na invasão do Iraque para pegar o Saddam, que também não tinha nada a ver com o Onze de Setembro, e as suas armas de destruição em massa, que não existiam. Mas, faça-se justiça: num dos seus primeiros pronunciamentos depois dos ataques, quando já se sabia quem eram os responsáveis, Bush fez questão de alertar contra perseguições aos muçulmanos no país, que não tinham culpa da ação radical de uma minoria.
Na França pós-Sete de Janeiro, com sua imensa população muçulmana, vítima do ressentimento de boa parte da maioria francesa e da crescente reação a imigrantes em toda a Europa, vai ser difícil seguir um conselho como o do Bush. A direita inchou do Sete de Janeiro para cá, na França. Se sua pregação racista vai prevalecer contra a tradição libertária da terra dos direitos humanos, é o que se verá nas próximas eleições. Os AK-47 podem ter matado muito mais do que 17 pessoas.
no O Globo



Eu gostaria de ser Deus


...não para consertar o mundo ou melhorar a humanidade, mas, confesso, para um fim menos nobre: conseguir mulher.
Posso imaginar como seria ter ao meu dispor todos os recursos de Deus para iimpresionar uma mulher. A começar pelo seu espanto ao saber da minha identidade. (Ela: “Você quer dizer Deus, Deus mesmo?! O Cara?!” Eu: “É”. Ela: “O Todo-Poderoso?!” Eu, para mostrar, além de tudo, simplicidade: “Sim, mas pode me chamar de Todo”).
Eu não a convidaria para jantar, apenas. Mandaria um anjo fulgurante convidá-la para jantar comigo, no meu apartamento celestial ou no restaurante da sua predileção. Onde já começaria a mostrar os meus poderes, pedindo mineral sem gás e transformando-a não apenas em vinho, mas num Chateau Petrus 82.
Conversaríamos sobre banalidades:
Ela: “Deve dar trabalho, ser Deus.”
Eu, modestamente: “No começo, foi difícil. Tive que fazer tudo sozinho, do nada. Desde então, só dou retoques”.
Depois do jantar Eu a convidaria para ir ver o eclipse da Lua do meu terraço à beira-mar.
— Mas hoje não tem eclipse da Lua!
— Quer apostar?
Quando ficássemos mais íntimos, e ela mais crítica, Eu faria tudo que ela pedisse.
— Terremoto...Precisa ter?
— Está bem. Não vai mais ter terremoto.
— Dá para acabar com a má fase do São Paulo?
— Vamos ver o que se pode fazer.
Eu não lhe mandaria bilhetes amorosos, mandaria tábuas gravadas amorosas, entregues por profetas barbudos, junto com flores — todos os dias.
Presentes de pedras preciosas? Por que ser sovina e não lhe dar, logo, uma mina de diamantes?
E se, com tudo isso, Eu não a conquistasse, me restaria um último recurso: refazer-me completamente, do barro. Seguindo as suas instruções.
— Sem barba. Outro nariz. Mais alto...
por Luis Fernando Veríssimo


Luis Fernando Veríssimo

"Para os erros há perdão; para os fracassos, chance; para os amores impossíveis, tempo... Não deixe que a saudade sufoque, que a rotina acomode, que o medo impeça de tentar. Desconfie do destino e acredite em você. Gaste mais horas realizando que sonhando, fazendo que planejando, vivendo que esperando Porque, embora quem quase morre esteja vivo, quem quase vive já morreu."

Os porteiros, por Luis Fernando Veríssimo

Os porteiros de cinema da minha adolescência foram os últimos exemplos de intransigência moral da nossa história. “Proibido até 18 anos”, sinal de que no filme — invariavelmente francês ou italiano — aparecia um seio nu, com sorte até dois, era proibido até 18 e não tinha conversa. Menores de 18 anos não podiam ver um seio nu na tela, sob pena de se costumarem e saírem a reivindicar seios nus na vida real.

Entre os 13 anos, quando tive minha primeira experiência sexual digna desse nome — com começo, meio, fim e, acima de tudo, parceira —, e os 18, vi exatamente 23 seios nus, contabilizados aí dez pares completos e três avulsos vistos fortuitamente (decote descuidado, etc.) que registrei como brindes.
Eram seios reais, vivos e palpitantes, não impressos, pintados, esculpidos, projetados numa tela ou sonhados. Desses 23 devo ter tocado nuns 14 (preciso consultar minhas anotações). Mas não adiantaria usar esta argumentação com o porteiro do cinema. Sustentar que os seios da Martinne Carol não teriam nada de novo para me dizer, pois não podiam ser tão diferentes assim dos da Ivani, não colaria.
Com menos de 18 anos não entrava e pronto. Pela lei, eu não tinha idade para ver seios. Se tivesse visto algum por minha conta, não era responsabilidade do porteiro.
Já porteiro de baile era mais, por assim dizer, conversável. O truque para convencê-lo a deixar você entrar no salão do clube sem convite era escolher um argumento — por exemplo “preciso entrar e dizer pra minha irmã que nossa mãe foi pro hospital” — e insistir, insistir sempre.
Oferecer propina não adiantava e, mesmo, quem tinha dinheiro?
Uma boa história podia despertar compaixão, ou pelo menos admiração pelo seu valor literário, no porteiro. Ou então o porteiro simplesmente cedia para livrar-se da insistência do postulante. “Entra, vai.”
Existia, no meu tempo de ir a bailes, um conversador de porteiro legendário. Especialista em entrar sem pagar ou sem convite que encarava cada porteiro como um desafio à sua criatividade e poder de persuasão, e que raramente falhava. Mas às vezes encontrava um porteiro que já o conhecia de outras tentativas. Certa vez ocorreu o seguinte diálogo:
— Você de novo?
— Desta vez é sério. Eu preciso entrar.
— Não.
— É uma questão de vida ou morte.
— Não.
— Minha namorada está aí dentro. Meu maior rival, um canalha, está aí dentro. Os dois podem estar dançando juntos neste momento. Tive uma briga com a namorada e preciso dizer pra ela que me arrependo. Que podemos voltar ao que era antes. Que ela não caia na conversa do canalha.
— Fale com ela amanhã.
— Não posso. Estou com uma doença terminal. Talvez não passe desta noite. Me deixa entrar?
— Não.
— Mas eu...
— Não.
— Está bem. Tome.
E tirou do bolso um convite, que deu para o porteiro. Tinha convite, mas entrar em baile sem precisar conversar o porteiro era contra os seus princípios.

crônica semanal de Luis Fernando Veríssimo

Tudo é vaidade.
Tem aquela do cara que invade uma delegacia de polícia e exige falar com o desenhista.
— Com quem?
— Com o desenhista. O que faz retratos falados. Quero falar com ele agora!
— Espera aí. Você não pode entrar aqui assim e...
— Não interessa. Quero falar, imediatamente, com quem fez isto.
E o homem mostra um cartaz em que aparece o desenho de um rosto e escrito, em cima, “Procura-se”. Insiste:
— Se ele não aparecer logo, eu quebro esta joça!
— Calma, cidadão. Calma.
Tantas o homem faz que o desenhista é localizado e trazido à sua presença. O homem mostra o cartaz e pergunta:
— Isto se parece comigo?
— Bom, eu...
— Não. Me diga. Esta cara se parece vagamente com a minha?
— É que eu...
— Olha o meu nariz e olha o nariz do desenho. Desde quando eu tenho um nariz assim? E a boca?
— É que eu me guiei pela descrição da testemunha...
— Não. Não tente transferir sua culpa. O desenho é seu. É a minha cara falsificada que está por aí, colada em tudo que é poste da cidade. E eu exijo retratação. Ou, no caso, rerretratação.
Um policial de plantão interfere:
— Você está preso.
— Eu sei — diz o homem. E, para o desenhista:
— Assim você terá o tempo que quiser para refazer meu retrato, usando o original como modelo.
— Está bem — diz o desenhista.
— Certo, desta vez!

pesos e medidas, Luis Fernando Veríssimo

Recorre-se tanto à frase “dois pesos e duas medidas” para reclamar isonomia no julgamento dos casos de corrupção no país que eu proponho o fim da hipocrisia. 
Oficialize-se, já, dois sistemas de pesos e medidas diferentes no Brasil, um que vale só para o PT (Sistema 1) e outro para os outros, principalmente o PSDB (Sistema 2).
As previsíveis confusões — desencontros em construções, conflitos na medição de terras etc — seriam resolvidas por um conselho arbitral formado por representantes dos dois sistemas. Desde que não fosse presidido pelo Barbosa, claro.

Crônica semanal de Fernando Veríssimo

Me lembro do meu pai treinando seu francês para o discurso que faria em saudação ao Albert Camus, que estava no Brasil e visitaria Porto Alegre. Era “Camus” com final “mus” como em “músculo” ou “Cami”?
Eu só sabia que era um francês importante. Depois ele falou mal da sua visita. Nunca ficou claro o que o desagradara tanto no Brasil. Seu desgosto foi com todo o país, não só com Porto Alegre. O que pelo menos livrou a pronúncia do meu pai.
Antes de ler qualquer coisa do Camus, eu já sabia da vida dele, instigado por aquela sua visita à minha cidade quando eu tinha 13 anos. Sua infância na Argélia, sua atuação na resistência durante a ocupação nazista da França, e — o que mais me interessava — o fato de ele ter sido goleiro na juventude.
Mais tarde, quando comecei a ler sua obra, me interessei pelo mito inteiro. Sua definição do absurdo da existência na figura de Sísifo, sua posição ambígua diante da guerra de independência da Argélia, seus desentendimentos com Sartre, seu Prêmio Nobel (que Sartre também ganhou, mas se recusou a receber) e sua crescente reputação entre os intelectuais da época como alternativa para o engajamento radical do Sartre, e entre as leitoras da época como a personificação do escritor enquanto galã.
Este ano comemora-se o centenário do nascimento de Camus, cujo nome e cuja influência, acho eu, duraram mais do que as do Sartre. O dele ainda é um modelo de engajamento a ser seguido.
Numa entrevista publicada na “Les Nouvelles Littéraires” em 1951, ele qualifica a conclusão, representada no mito de Sísifo e o eterno retorno da sua pedra, de que a condição humana é um absurdo inescapável. Diz Camus: “Nada realmente tem sentido? Nunca acreditei nisso. Enquanto escrevia ‘O mito de Sísifo’ eu já pensava no ensaio sobre a revolta que escreveria em seguida.”
O ensaio citado pelo autor é o livro “O homem revoltado”, uma receita para que a vida faça sentido, na revolta contra a injustiça.

Crônica semanal de Luis Fernando Veríssimo

Degenerados
Descobriram num apartamento da cidade de Augsburg, perto de Munique, Alemanha, mais de 1.400 quadros desaparecidos durante a Segunda Guerra Mundial. Os quadros incluem pinturas e desenhos de expressionistas alemães como Georg Grosz e Max Beckmann mas também de artistas como Matisse, Chagal, Renoir, Toulouse-Lautrec, Picasso e outros mestres europeus.

A descoberta, segundo o “New York Times”, foi há algum tempo, mas as autoridades alemãs só a noticiaram agora porque temiam que a revelação aumentasse a grossa confusão sobre a propriedade das obras encontradas.
Elas são, obviamente, produto da pilhagem de museus e coleções privadas dos territórios invadidos pelos nazistas na guerra. Mas estavam no apartamento de um descendente de Hildebrand Gurlitt, que, apesar de ser judeu, foi o escolhido por Goebbels para avaliar e ajudar a vender os quadros e era, legalmente, o dono do tesouro.
As obras incluem o que Hitler chamava de arte “degenerada” — os expressionistas alemães, principalmente — que pela sua vontade deveria ser destruída, e as de grande valor comercial, cuja venda reforçaria os cofres do Terceiro Reich.
Mas na promiscuidade do achado não se distingue umas das outras, e não deixa de haver uma triste ironia no fato de os mestres do impressionismo francês, por exemplo, estarem de novo na companhia de “degenerados”, como no famoso Salão dos Rejeitados em Paris, que reuniu os enjeitados pelos acadêmicos da época, e de onde saiu a grande arte do século XIX.
Ainda existem milhares de obras de arte desaparecidas na guerra, das quais não se tem notícia. Mas aos poucos elas reaparecem. Arte é difícil de matar. Inclusive a “degenerada” . Há pouco estive num museu em Munique em que havia uma exposição dos expressionistas alemães. Todos mortos, e todos vivíssimos.

Não aguento mais esses cronistas que escrevem como se seu umbigo fosse o centro do Universo quando todo o mundo sabe que o MEU umbigo é que é o centro do universo

Ele é o centro constante das minhas atenções como o centro do meu corpo, e onde ele vai eu vou junto, e vice-versa, certo de que todos se interessarão pelas nossas venturas e desventuras. O assunto do cronista é sempre o próprio cronista. Ou seu próprio umbigo e suas circunstâncias.
Digressão: o umbigo foi sempre um problema para a arte religiosa. Era impossível retratar Adão e Eva no Paraíso sem seus respectivos e anacrônicos umbigos — prova física da existência de partos ortodoxos em algum momento da criação.
A solução foi chamar os primeiros umbigos de marcas do dedo de Deus, o lugar em que o Criador cutucou Adão e Eva e os instigou a viverem e se multiplicarem, aquela história.
Achei que gostaram de saber que eu e meu umbigo andamos pela Toscana nas férias, entre Montalcino, Montepulciano, San Quirico, Siena, Pienza e outras cidades mágicas, e que na praça principal de Pienza nos aproximamos de uma dupla que tocava chorinho — ela, com cara de brasileira mas italiana, na flauta, ele, com cara de europeu mas brasileiro, no violão.
Já tinha nos impressionado o número de brasileiros encontrados em toda parte. Em Pienza, quando a dupla começou a tocar “Carinhoso”, toda a praça cantou junto. Ou foi uma alucinação minha, fruto, quem sabe, do “Brunello” do almoço, ou havia mais brasileiros na Toscana do que imaginávamos.
por Luis Fernando Veríssimo