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Leonardo Boff: muito além do "mensalão"


Há um provérbio popular alemão que reza: “você bate no saco mas pensa no animal que carrega o saco”. Ele se aplica ao PT com referência ao processo do “Mensalão”. Você bate nos acusados mas tem a intenção de bater no PT. A relevância espalhafatosa que o grosso da mídia está dando à questão, mostra que o grande interesse não se concentra na condenação dos acusados, mas através de sua condenação, atingir de morte o PT.

De saída quero dizer que nunca fui filiado ao PT. Interesso-me pela causa que ele representa pois a Igreja da Libertação colaborou na sua formulação e na sua realização  nos meios populares. Reconheço com dor que quadros importantes da direção do partido se deixaram morder pela mosca azul do poder e cometeram irregularidades inaceitáveis. Muitos sentimo-nos decepcionados, pois depositávamos neles a esperança de que seria possível resistir às seduções inerentes ao poder. Tinham a chance de mostrar um exercício ético do poder na medida em  que  este poder reforçaria o poder do povo que assim se faria participativo e democrático. Lamentavelmente houve a queda. Mas ela nunca é fatal. Quem cai, sempre pode se levantar. Com a queda não caiu a causa que o PT representa: daqueles que vem da grande tribulação histórica sempre mantidos no abandono e na marginalidade. Por políticas sociais consistentes, milhões foram integrados e se fizeram sujeitos ativos. Eles estão inaugurando um novo tempo que obrigará  todas as forças sociais a se reformularem e também a mudarem seus hábitos políticos.

Por que muitos resistem e tentam ferir letalmente o PT? Há muitas razões. Ressalto  apenas duas decisivas. Continua>>>

Artigo semanal de Leonardo Boff


É notório que o sistema capitalista imperante no mundo é consumista, egoísta e depredador da natureza

Tempos de crise sistêmica como os nossos favorecem uma revisão de conceitos e a coragem para projetar outros mundos possíveis que realizem o que Paulo Freire chamava de o “inédito viável”.
É notório que o sistema capitalista imperante no mundo é consumista, visceralmente egoísta e depredador da natureza. Está levando toda a humanidade a um impasse pois criou uma dupla injustiça: a ecológica por ter devastado a natureza e outra social por ter gerado imensa desigualdade social.
Simplificando, mas nem tanto, poderíamos dizer que a humanidade se divide entre aquelas minorias que comem à tripa forra e aquelas maiorias que se alimentam insuficientemente. Se agora quiséssemos universalizar o tipo de consumo dos países ricos para toda a humanidade, necessitaríamos, pelo menos, de três Terras, iguais a atual. Continua>>>

Artigo semanal de Leonardo Boff


Nós ocidentais, os principais responsáveis

O complexo de crises que avassala a humanidade nos obriga a parar e a fazer um balanço. É o momento filosofante de todo observador crítico, caso queira ir além dos discursos convencionais e intrasistêmicos.

Por que chegamos à atual situação que objetivamente ameaça o futuro da vida humana e de nossa obra civilizatória? Respondemos sem maiores justificativas: os principais causadores deste percurso são aqueles que nos últimos séculos detiveram o poder, o saber e o ter. Eles se propuseram dominar a natureza, conquistar o mundo inteiro, subjugar os povos e colocar tudo a serviço de seus interesses.
Para isso foi utilizada uma arma poderosa: a tecnociência. Pela ciência identificaram como funciona a natureza e pela técnica operaram intervenções para benefício humano sem reparar nas consequências.
Esses senhores que realizaram esta saga foram os ocidentais europeus. Nós latino-americanos fomos à força agregados a eles como um apêndice: o Extremo Ocidente.
Estes ocidentais, entretanto, estão hoje extremamente perplexos. Perguntam-se aturdidos: como podemos estar no olho da crise, se possuímos o melhor saber, a melhor democracia, a melhor consciência dos direitos, a melhor economia, a melhor técnica, o melhor cinema, a maior força militar e a melhor religião, o Cristianismo?
Ora, estas “conquistas” estão postas em xeque, pois elas, não obstante seu valor, inegavelmente não nos fornecem mais nenhum horizonte de esperança. Sentimos: o tempo ocidental se esgotou e já passou. Por isso perdeu qualquer legitimidade e força de convencimento.
Arnold Toynbee, analisando as grandes civilizações, notou esta constante histórica: sempre que o arsenal de respostas para os desafios não é mais suficiente, as civilizações entram em crise, começam a esfacelar-se até o seu colapso ou assimilação por outra. Esta traz renovado vigor, novos sonhos e novos sentidos de vida pessoais e coletivos. Qual virá? Quem o sabe? Eis a questão cruciante.
O que agrava a crise é a persistente arrogância ocidental. Mesmo em decadência, os ocidentais se imaginam ainda a referência obrigatória para todos.
Para a Bíblia e para os gregos esse comportamento constituía o supremo desvio, pois as pessoas se colocavam no mesmo pedestal da divindade, tida como a referência suprema e a Última Relidade. Chamavam a essa atitude de hybris, quer dizer: arrogância e excesso do próprio eu.
Foi esta arrogância que levou os EUA a intervir, com razões mentirosas, no Iraque,depois no Afeganistão e antes na América Latina, sustentando por muitos anos regimes ditatoriais militares e a vergonhosa Operação Condor pela qual centenas de lideranças de vários países da América Latina foram sequestradas e assassinadas.
Com o novo Presidente Barak Obama se esperava um novo rumo, mais multipolar, respeitador das diferenças culturais e compassivo para com os vulneráveis. Ledo engano. Está levando avante o projeto imperial na mesma linha do fundamentalista Bush.
Não mudou substancialmente nada nesta estratégia de arrogância. Ao contrário, inaugurou algo inaudito e perverso: uma guerra não declarada usando “drones”, aviões não tripulados. Dirigidos eletronicamente a partir de frias salas de bases militares no Texas atacam, matando lideranças individuais e até grupos inteiros nos quais supõe estarem terroristas.
O próprio cristianismo, em suas várias vertentes, se distanciou do ecumenismo e está assumindo traços fundamentalistas. Há uma disputa no mercado religioso para ver qual das denominações mais aglomera fiéis.
Assistimos na Rio+20 a mesma arrogância dos poderosos, recusando-se a participar e a buscar convergências mínimas que aliviassem a crise da Terra.
E pensar que, no fundo, procuramos a singela utopia bem expressa por Pablo Milanes e Chico Buarque: “a história poderia ser um carro alegre, cheio de um povo contente”.

Coluna semanal de Leonardo Boff


O impossível pacto entre o lobo e o cordeiro

Post Festum, podemos dizer: o documento final da Rio+20 apresenta um cardápio generoso de sugestões e de propostas, sem nenhuma obrigatoriedade, com uma dose de boa vontade comovedora mas com uma ingenuidade analítica espantosa, diria até, lastimável.
Não é uma bússola que aponta para o “futuro que queremos” mas para a direção de um abismo. Tal resultado pífio se tributa à crença quase religiosa de que a solução da atual crise sistêmica se encontra no veneno que a produziu: na economia.
Não se trata da economia num sentido transcendental, como aquela instância, pouco importam os modos, que garante as bases materiais da vida. Mas da economia categorial, aquela realmente existente que, nos últimos tempos, deu um golpe em todas as demais instâncias (na política, na cultura e na ética) e se instalou, soberana, como o único motor que faz andar a sociedade.
É a “Grande Transformação” que já em 1944 o economista húngaro-norteamericano Karl Polanyi denunciava vigorosamente. Este tipo de economia cobre todos os espaços da vida, se propõe acumular riqueza a mais não poder, tirando de todos os ecossistemas, até à sua exaustão, tudo o que seja comercializável e consumível, se regendo pela mais feroz competição. Esta lógica desequilibrou todas as relações para com a Terra e entre os seres humanos.
Face a este caos Ban Ki Moon, Secretário Geral da ONU, não se cansa de repetir na abertura das Conferências: estamos diante das últimas chances que temos de nos salvar. Enfaticamente em 2011 em Davos diante dos “senhores do dinheiro e da guerra econômica” declarou: “O atual modelo econômico mundial é um pacto de suicídio global”.
Albert Jacquard, conhecido geneticista francês, intitulou assim um de seus últimos livros: ”A contagem regressiva já começou?” (2009). Os que decidem não dão a mínima atenção aos alertas da comunidade científica mundial.
Nunca se viu tamanha descolagem entre ciência e política e também entre ética e economia como atualmente. Isso me reporta ao comentário cínico de Napoleão depois da batalha de Eylau ao ver milhares de soldados mortos sobre a neve: “Uma noite de Paris compensará tudo isso”.
Eles continuam recitando o credo: um pouco mais do mesmo, de economia e já sairemos da crise. É possível o pacto entre o cordeiro (ecologia) e o lobo (economia)? Tudo indica que é impossível.
Podem agregar quantos adjetivos quiserem a este tipo vigente de economia, sustentável, verde e outros, que não lhe mudarão a natureza. Imaginam que limar os dentes do lobo lhe tira a ferocidade, quando esta reside não nos dentes mas em sua natureza.
A natureza desta economia é querer crescer sempre, a despeito da devastação do sistema-natureza e do sistema-vida. Não crescer é prescrever a própria morte.
Ocorre que a Terra não aquenta mais esse assalto sistemático a seus bens e serviços. Acresce a isso a injustiça social, tão grave quanto a injustiça ecológica. Um rico médio consome 16 vezes mais que um pobre médio. Um africano tem trinta anos a menos de expectativa de vida que um europeu (Jaquard, 28).
Face a tais crimes como não se indignar e não exigir uma mudança de rumo? A Carta da Terra nos oferece uma direção segura: “Como nunca antes na história, o destino comum nos conclama a buscar um novo começo. Isto requer uma mudança na mente e no coração; requer um novo sentido de interdependência global e de responsabilidade universal... para alcançarmos um modo sustentável de vida nos níveis local, nacional, regional e global” (final).
Mudar a mente implica um novo olhar sobre a Terra não como o “mundo-máquina” mas como um organismo vivo, a Terra-mãe a quem cabe respeito e cuidado.
Mudar o coração significa superar a ditadura da razão técnico-científica e resgatar a razão sensível onde reside o sentimento profundo, a paixão pela mudança e o amor e o respeito a tudo o que existe e vive.
No lugar da concorrência, viver a interdependência global, outro nome para a cooperação e no lugar da indiferença, a responsabilidade universal, quer dizer, decidir enfrentar juntos o risco global.
Valem as palavras do Nazareno: “Se não vos converterdes, todos perecereis” (Lc 13,5).

Coluna semanal de Leonardo Boff


O Documento Zero da ONU para a Rio+20 é ainda refém do velho paradigma da dominação da natureza para extrair dela os maiores benefícios possíveis para os negócios e para o mercado. Através dele e nele o ser humano deve buscar os meios de sua vida e subsistência.
A economia verde radicaliza esta tendência, pois como escreveu o diplomata e ecologista boliviano Pablo Solón “ela busca não apenas mercantilizar a madeira das florestas mas também sua capacidade de absorção de dióxido de carbono”. Tudo isso pode se transformar em bônus negociáveis pelo mercado e pelos bancos.
Destarte o texto se revela definitivamente antropocêntrico como se tudo se destinasse ao uso exclusivo dos humanos e a Terra tivesse criado somente a eles e não a outros seres vivos que exigem também sustentabilidade das condições ecológicas para a sua permanência neste planeta.
Resumidamente: “O futuro que queremos”, lema central do documento da ONU, não é outra coisa que o prolongamento do presente. Este se apresenta ameaçador e nega um futuro de esperança. Num contexto destes, nãoavançar é retroceder e fechar as portas para o novo.
Há, outrossim, um agravante: todo o texto gira ao redor da economia. Por mais que a pintemos de marrom ou de verde, ela guarda sempre sua lógica interna que se formula nesta pergunta: quanto posso ganhar no tempo mais curto, com o investimento menor possível, mantendo forte a concorrência?
Não sejamos ingênuos: o negócio da economia vigente é o negócio. Ela não propõe uma nova relação para com a natureza, sentindo-se parte dela e responsável por sua vitalidade e integridade. Antes, move-lhe uma guerra total, como denuncia o filósofo da ecologia Michel Serres.
Nesta guerra não possuímos nenhuma chance de vitória. Ela ignora nossos intentos. Segue seu curso mesmo sem a nossa presença. Tarefa da inteligência é decifrar o que ela nos quer dizer (pelos eventos extremos, pelos tsunamis, etc.), defender-nos de efeitos maléficos e colocar suas energias a nosso favor.
Ela nos oferece informações mas não nos dita comportamentos. Estes devem se inventados por nós mesmos. Eles somente serão bons caso estiverem em conformidade com seus ritmos e ciclos.
Como alternativa a esta economia de devastação, precisamos, se queremos ter futuro, opor-lhe outro paradigma de economia de preservação, conservação e sustentação de toda a vida. Precisamos produzir sim, mas a partir dos bens e serviços que a natureza nos oferece gratuitamente, respeitando o alcance e os limites de cada biorregião, distribuindo com equidade os frutos alcançados, pensando nos direitos das gerações futuras e nos demais seres da comunidade de vida.
Ela ganha corpo hoje através da economia biocentrada, solidária, agroecológica, familiar e orgânica. Nela cada comunidade busca garantir sua soberania alimentar. Produz o que consome, articulando produtores e consumidores numa verdadeira democracia alimentar.
A Rio 92 consagrou o conceito antropocêntrico e reducionista de desenvolvimento sustentável, elaborado pelo relatório Brundland de 1987 da ONU. Ele se transformou num dogma professado pelos documentos oficiais, pelos Estados e empresas sem nunca ser submetido a uma crítica séria. Ele sequestrou a sustentabilidade só para seu campo e assim distorceu as relações para com a natureza.
Os desastres que causava nela, eram vistos como externalidades que não cabia considerar. Ocorre que estas se tornaram ameaçadoras, capazes de destruir as bases físico-químicas que sustentam a vida humana e grande parte da biosfera. Isso não é superado pela economia verde.
Ela configura uma armadilha dos países ricos, especialmente da OCDE (Organização para a Cooperação e o Desenvolvimento Econômico) que produziu o texto teórico do PNUMA Iniciativa da Economia Verde.
Com isso, astutamente descartam a discussão sobre a sustentabilidade, a injustiça social e ecológica, o aquecimento global, o modelo econômico falido e mudança de olhar sobre o planeta que possa projetar um real futuro para a Humanidade e para a Terra.
Junto com a Rio+20 seria um ganho resgatar também a Estocolmo+40. Nessa primeira conferência mundial da ONU de 5-15 de julho de1972 em Estocolmo na Suécia sobre o Ambiente Humano, o foco central não era o desenvolvimento mas o cuidado e a responsabilidade coletiva por tudo o que nos cerca e que está em acelerado processo de degradação, afetando a todos e especialmente aos países pobres.
Era uma perspectiva humanística e generosa. Ela se perdeu com a cartilha fechada do desenvolvimento sustentável e agora com a economia verde.

Artigo semanal do teólogo Leonardo Boff


Quem cuida do cuidador?

As primeiras e mais ancestrais cuidadoras são nossas mães e avós que desde o início da humanidade cuidaram de sua prole. Caso contrário, não estaríamos aqui escrevendo sobre o cuidado.
Neste contexto queremos mencionar duas figuras, verdadeiros arquétipos do cuidado: o médico suíço Albert Schweitzer (1875-1965) e a enfermeira inglesa Florence Nightingale (1820-1910).
Albert Schweitzer era exímio exegeta bíblico e um dos maiores concertistas de Bach de seu tempo. Aos trinta anos já com fama em toda a Europa, largou tudo, estudou medicina para, no espírito das bem aventuranças de Jesus, cuidar dos mais pobres dos pobres (os hansenianos) em Lambaréné, no Gabão.
Numa de suas cartas confessa explicitamente: ”o que precisamos não é de missionários que queiram converter os africanos, mas de pessoas dispostas a fazer aos pobres o que deve ser feito, se é que o Sermão da Montanha e as palavras de Jesus possuem algum valor. Minha vida não está nem na arte nem na ciência mas em ser um simples ser humano que no espírito de Jesus faz algo por insignificante que seja”. Foi dos primeiros a ganhar o Prêmio Nobel da Paz.
Por cerca de quarenta anos viveu e trabalhou num hospital por ele construído com o dinheiro de tournées de concertos de Bach. Nas poucas horas vagas, teve tempo para escrever vasta obra centrada na ética do cuidado e do respeito pela vida.
Formulou assim seu lema: “a ética é a responsabilidade ilimitada por tudo o que existe e vive”.
Numa outra obra assevera: ”a ideia chave do bem consiste em conservar a vida, desenvolvê-la e elevá-la ao mais alto valor; o mal consiste em destruir a vida, prejudicá-la e impedir que se desenvolva plenamente; este é o princípio necessário, universal e absoluto da ética”.
Outro arquétipo do cuidado foi a enfermeira inglesa Florence Nightingale. Humanista e profundamente religiosa, decidiu melhorar os padrões da enfermagem em seu país.
Em 1854, com outras 28 companheiras, Florence se deslocou para um campo de guerra na Turquia, durante a Guerra da Criméia, onde se empregavam bombas de fragmentação que produziam muitos feridos.
Aplicando no hospital militar a prática do rigoroso cuidado, em seis meses reduziu de 42% para 2% o número de mortos. Esse sucesso granjeou-lhe notoriedade universal.
De volta a seu país e depois nos EUA, criou uma rede hospitalar que aplicava o cuidado como eixo norteador da enfermagem e como sua ética natural. Florence Nightingale continua a ser uma referência inspiradora.
O operador da saúde é por essência um curador. Cuida dos outros como missão e como opção de vida. Mas quem cuida do cuidador, título de um belo livro do médico Dr. Eugênio Paes Campos (Vozes 2005)?
Partimos do fato de que o ser humano é, por sua natureza e essência, um ser de cuidado. Sente a predisposição de cuidar e a necessidade de ser ele também cuidado. Cuidar e ser cuidado são existenciais (estruturas permanentes) e indissociáveis.
É notório que o cuidar é muito exigente e pode levar o cuidador ao estresse. Especialmente se o cuidado constitui, como deve ser, não um ato esporádico mas uma atitude permanente e consciente.
Somos limitados, sujeitos ao cansaço e à vivência de pequenos fracassos e decepções.
Sentimo-nos sós. Precisamos ser cuidados, caso contrário, nossa vontade de cuidar se enfraquece. Que fazer então?
Logicamente, cada pessoa precisa enfrentar com sentido de resiliência (saber dar a volta por cima) esta situação dolorosa. Mas esse esforço não substitui o desejo de ser cuidado. É então que a comunidade do cuidado, os demais operadores de saúde, médicos e o corpo de enfermagem devem entrar em ação.
O enfermeiro ou a enfermeira, o médico e a médica sentem necessidade de serem também cuidados. Precisam se sentir acolhidos e revitalizados, exatamente como as mães fazem com seus filhos e filhas.
Outras vezes sentem necessidade do cuidado como suporte, sustentação e proteção, coisa que o pai proporciona a seus filhos e filhas.
Cria-se então o que o pediatra R. Winnicott chamava de “holding”, quer dizer, aquele conjunto de cuidados e fatores de animação que reforçam o estímulo para continuarem no cuidado para com pacientes.
Quando este espírito de cuidado reina, surgem relações horizontais de confiança e de mútua cooperação, se superam os constrangimentos, nascidos da necessidade de ser cuidado.
Feliz é o hospital e mais felizes são ainda aqueles pacientes que podem contar com um grupo de cuidadores. Já não haverá “prescrevedores” de receitas e aplicadores de fórmulas mas “cuidadores” de vidas enfermas que buscam saúde. A boa energia que se irradia do cuidado corrobora na cura.

Artigo semanal de Leonardo Boff


Panteísmo versus Panenteísmo

Uma visão cosmológica radical e coerente afirma que o sujeito último de tudo o que ocorre é o próprio universo. É ele que faz emergir os seres, as complexidades, a biodiversidade, a consciência e os conteúdos desta consciência pois somos parte dele.
Assim, antes de estar em nossa cabeça como idéia, a realidade de Deus estava no próprio universo. Porque estava lá, pôde irromper em nós. A partir desta compreensão, se entende a imanência de Deus no universo. Deus vem misturado com todos os processos, sem perder-se dentro deles. Antes, orienta a seta do tempo para a emergência de ordens cada vez mais complexas, dinâmicas (portanto, que se distanciam do equilíbrio para buscar novas adaptações) e carregadas de propósito.
Deus comparece, na linguagem das tradições transculturais, como o Espírito criador e ordenador de tudo o que existe. Ele vem misturado com as coisas. Participa de seus desdobramentos, sofre com as extinções em massa, sente-se crucificado nos empobrecidos, rejubila-se com os avanços rumo a diversidades mais convergentes e interrelacionadas, apontando para um ponto Omega terminal.
Deus está presente no cosmos e o cosmos está presente em Deus. A teologia antiga expressava esta mútua interpenetração pelo conceito "pericórese", aplicada às relações entre Deus e a criação e depois entre as divinas Pessoas da Trindade.
A teologia moderna cunhou outra expressão, o "panenteísmo" ( em grego: pan=tudo; en= em; theos=Deus). Quer dizer: Deus está em tudo e tudo está em Deus. Esta palavra foi proposta evangélico Frederick Krause (l781-1832), fascinado pelo fulgor divino do universo.
O panenteísmo deve ser distinguido claramente do panteísmo. O panteísmo (em grego: pan-tudo; theos=Deus) afirma que tudo é Deus e Deus é tudo. Sustenta que Deus e mundo são idênticos; que o mundo não é criatura de Deus mas o modo necessário de existir de Deus. O panteísmo não aceita nenhuma diferença: o céu é Deus, a Terra é Deus, a pedra é Deus e o ser humano é Deus.
Esta falta de diferença leva facilmente à indiferença. Se tudo é Deus e Deus é tudo, então é indiferente se me ocupo com uma menina estuprada num ônibus no Rio ou com o carnaval, ou com indígenas em extinção ou com uma lei contra a homofobia. O que é manifestamente um erro, pois diferenças existem e persistem.
Tudo não é Deus. As coisas são o que são: coisas. No entanto, Deus está nas coisas e as coisas estão em Deus, por causa de seu ato criador. A criatura sempre depende de Deus e sem Ele voltaria ao nada de onde foi tirada.
Deus e mundo são diferentes. Mas não estão separados ou fechados. Estão abertos um ao outro. Se são diferentes, é para possibilitar o encontro e a mútua comunhão. Por causa dela superam-se as categorias de procedência grega que se contrapunham: transcendência e imanência. Imanência é este mundo aqui.
Transcendência é o mundo que está para além deste. O Cristianismo por causa da encarnação de Deus, criou uma categoria nova: a transparência. Ela é a presença da transcendência (Deus) dentro da imanência(mundo).
Quando isso ocorre, Deus e mundo se fazem mutuamente transparentes. Como dizia Jesus: “quem vê a mim, vê o Pai”. Teilhard de Chardin viveu uma comovente espiritualidade da transparência. Dizia:"O grande mistério do Cristianismo não é a aparição, mas a transparência de Deus no universo. Não somente o raio que aflora, mas o raio que penetra. Não a Epi-fania mas a Dia-fania”(Le milieu divin, 162).
O universo em cosmogênese nos convida a vivenciarmos a experiência que subjaz ao panenteísmo: em cada mínima manifestação de ser, em cada movimento, em cada expressão de vida estamos às voltas com a presença e a ação de Deus. Abraçando o mundo, estamos abraçando Deus.
As pessoas sensíveis ao Sagrado e ao Mistério tiram Deus de seu anonimato e dão-lhe um nome. Celebram-no com hinos, cânticos e ritos mediante os quais expressam sua experiência de Deus. Testemunham o que Paulo disse aos gregos de Atenas: ”Em Deus vivemos, nos movemos e existimos”(17, 28).

Artigo semanal de Leonardo Boff

Para onde irão os indignados e os 'occupiers'?

Uma das mesas de debates importante no Forum Social Temático em Porto Alegre, da qual me coube participar, foi escutar os testemunhos vivos dos Indignados da Espanha, de Londres, do Egito e dos USA.
O que me deixou muito impressionado foi a seriedade dos discursos, longe do viés anárquico dos anos 60 do século passado com suas muitas “parolle”. O tema central era “democracia já”. Revindicava-se uma outra democracia, bem diferente desta a que estamos acostumados, que é mais farsa do que realidade.
Querem uma democracia que se constrói a partir da rua e das praças, o lugar do poder originário. Uma democracia que vem de baixo, articulada organicamente com o povo, transparente em seus procedimentos e não mais corroída pela corrupção. Esta democracia, de saída, se caracteriza por vincular justiça social com justiça ecológica.
Curiosamente, os indignados, os “occupiers” e os da Primavera Árabe não se remeteram ao clássico discurso das esquerdas, nem sequer aos sonhos das várias edições do Forum Social Mundial.
Encontramo-nos num outro tempo e surgiu uma nova sensibilidade. Postula-se outro modo de ser cidadão, incluindo poderosamente as mulheres antes feitas invisíveis, cidadãos com direitos, com participação, com relações horizontais e transversais facilitadas pelas redes sociais, pelo celular, pelo twitter e pelos facebooks.
Temos a ver com uma verdadeira revolução. Antes as relações se organizavam de forma vertical, de cima para baixo. Agora é de forma horizontal, para os lados, na imediatez da comunicação à velocidade da luz.
Este modo representa o tempo novo que estamos vivendo, da informação, da descoberta do valor da subjetividade, não aquela da modernidade, encapsulada em si mesma, mas da subjetividade relacional, da emergência de uma consciência de espécie que se descobre dentro da mesma e única Casa Comum, Casa, em chamas ou ruindo pela excessiva pilhagem praticada pelo nosso sistema de produção e consumo.
Essa sensibilidade não tolera mais os métodos do sistema de superar a crise econômica e derivadas, sanando os bancos com o dinheiro dos cidadãos, impondo severa austeridade fiscal, a desmontagem da seguridade social, o achatamento dos salários, o corte dos investimentos no pressuposto ilusório de que desta forma se reconquista a confiança dos mercados e se reanima a economia.
Tal concepção é feita dogma e ai se ouve o estúpido bordão: “TINA: there is no alternative”, não há alternativa. Os sacrílegos sumos sacerdotes da trindade nada santa do FMI, da União Européia e do Banco Central Europeu deram um golpe financeiro na Grécia e na Itália e puseram lá seus acólitos como gestores da crise, sem passar pelo rito democrático.
Tudo é visto e decidido pela ótica exclusiva do econômico, rebaixando o social e o sofrimento coletivo desnecessário, o desespero das famílias e a indignação dos jovens por não conseguirem trabalho. Tudo pode desembocar numa crise com consequências dramáticas.
Paul Krugmann, prêmio Nobel de economia, passou uns dias na Islândia para estudar a forma como esse pequeno pais ártico saiu de sua crise avassaladora. Seguiram o caminho correto que outros deveriam também ter seguido: deixaram os bancos quebrar, puseram na cadeia os banqueiros e especuladores que praticaram falcatruas, reescreveram a constituição, garantiram a seguridade social para evitar uma derrocada generalizada e conseguiram criar empregos.
Consequência: o pais saiu do atoleiro e é um dos que mais cresce nos países nórdicos. O caminho islandês foi silenciado pela mídia mundial de temor de que servisse de exemplo para os demais países. E a assim a carruagem, com medidas equivocadas, mas coerentes com o sistema, corre célere rumo a um precipício.
Contra esse curso previsível se opõem os indignados. Querem um outro mundo mais amigo da vida e respeitoso da natureza. Talvez a Islândia servirá de inspiração. Para onde irão? Quem sabe? Seguramente não na direção dos modelos do passado, já exauridos.
Irão na direção daquilo que falava Paulo Freire “do inédito viável” que nascerá desse novo imaginário. Ele se expressa, sem violência, dentro de um espírito democrático-participativo, com muito diálogo e trocas enriquecedoras. De todas as formas o mundo nunca será como antes, muito menos como os capitalistas gostariam que ficasse.

por Leonardo Boff

A difícil busca da autorrealização

Hoje vigora vastamente uma erosão de valores éticos que normalmente eram vividos e transmitidos pela família e depois pela escola pela sociedade. Essa erosão fez com que as estrelas-guia do céu da ética ficassem encobertas por nuvens de interesses danosos para a sociedade e para o futuro da vida e do equilíbrio da Terra.
Não obstante esta obscuridade importa reconhecer também a emergência de novos valores ligados à solidariedade internacional, ao cuidado para com a natureza, à transparência nas relações sociais e à rejeição de formas de violência política repressiva e da transgressão dos direitos humanos.
Mas nem por isso diminuiu a crise de valores, especialmente no campo da economia de mercado e das finanças especulativas que são as instâncias que definem os rumos do mundo e o dia-a-dia dos assalariados, vivendo sob permanente ameaça de desemprego.
As crises recentes denunciaram máfias de especuladores instalados nas bolsas e nos grandes bancos cujo volume de rapinagem de dinheiros alheios quase levou à derrocada todo o sistema financeiro mundial.
Ao invés de estarem na cadeia, depois de pequenos rearranjos, tais velhacos voltaram ao antigo vício da especulação e do jogo de apropriação indébita dos “commons”, dos bens comuns da humanidade (água, sementes, solos, energia, etc.).
Esta atmosfera de anomia e de vale-tudo que se espraia também na política, faz com que o sentido ético fique embotado e as pessoas diante da geral corrupção se sintam impotentes e condenadas à amargura ácida e à resignação humilhante.
Neste contexto muitos buscam sentido na literatura de autoajuda, feita de cacos de psicologia, de sabedoria oriental, de espiritualidade com receitas para a felicidade completa, ilusória, porque não se sustenta nem se apoia num sentido realista e contraditório da realidade.
Outros procuram psicólogos e psicanalistas que recebem dicas melhor fundadas. Mas no fundo, tudo termina com os seguintes conselhos: “dada a falência das instâncias criadoras de sentido como as religiões e as filosofias, devido à confusão de visões de mundo, da relativização de valores e do vazio de sentido existencial, procure você mesmo seu caminho, trabalhe seu Eu profundo, estabeleça você mesmo referências éticas que orientam sua vida e busque sua autorrealização.
“Autorrealização”: eis uma palavra mágica, carregada de promessas.
Não serei eu que vá combater a “autorrealização” depois de escrever "A águia e a galinha: uma metáfora da condição humana” (Vozes 1999), livro que estimula as pessoas a encontrarem em si mesmas as razões de uma auto-realização sensata.
Esta resulta da sábia combinação da dimensão de águia e de galinha. Quando devo ser galinha, quer dizer, concreto, atento aos desafios do cotidiano e quando devo ser águia que busca voar alto para, em liberdade, realizar potencialidades escondidas. Ao articular tais dimensões, cria-se a possibilidade de uma autorrealização bem sucedida.
Penso que esta autorrealização só se consegue se incorporar seriamente três outras dimensões. A primeira é a dimensão de sombra. Cada um possui seu lado autocentrado, arrogante e outras limitações que não nos enobrecem. Esta dimensão não é defeito mas marca de nossa condição humana, feita da união dos contrários. 
Acolher tal sombra, cuidar que seus efeitos maléficos não atinjam os outros, nos faz humildes, compreensivos das sombras alheias e nos permite uma experiência humana mais completa e integrada.
A segunda dimensão é a relação com os outros, aberta, sincera e feita de trocas enriquecedoras. Somos seres de relação. Não há nenhuma autorrealização cortando os laços com os demais.
A terceira dimensão é alimentar certo nível de espiritualidade. Com isso não quero dizer que a pessoa deva se inscrever em alguma confissão religiosa. Pode até ocorrer mas não é imprescindível. O importante é abrir-se ao capital humano/espiritual que, ao contrário do capital material, é ilimitado e feito de valores como a verdade, a justiça, a solidariedade e o amor.
É nesta dimensão que emerge a questão impostergável: que sentido tem, afinal, minha vida e o inteiro universo? Que posso esperar? A volta ao pó cósmico ou ao abrigo num Útero divino que me acolhe assim como sou?
Se esta última for a resposta, a autorrealização traz profundidade e uma felicidade íntima que ninguém pode tirar.

Governados por cegos e irresponsáveis - Leonardo Boff


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Afunilando as muitas análises feitas acerca do complexo de crises que nos assolam, chegamos a algo que nos parece central e que cabe refletir seriamente. As sociedades, a globalização, o processo produtivo, o sistema econômico-financeiro, os sonhos predominantes e o objeto explícito do desejo das grandes maiorias é: consumir e consumir sem limites.

Criou-se uma cultura do consumismo propalada por toda a mídia. Há que consumir o último tipo de celular, de tênis, de computador. 66% do PIB norteamericano não vem da produção, mas do consumo generalizado. As autoridades inglesas se surpreenderam ao constatar que, entre os milhares que faziam turbulências nas várias cidades, não estavam apenas os habituais estrangeiros em conflito entre si e pessoas dos guetos, mas universitários, ingleses desempregados, professores e até recrutas. Era gente enfurecida porque não tinha acesso ao tão propalado consumo. Não questionavam o paradigma do consumo, mas as formas de exclusão dele.

No Reino Unido, depois de M.Thatcher, e nos USA, depois de R. Reagan, como em geral no mundo, grassa grande desigualdade social. Naquele país, as receitas dos mais ricos cresceram nos últimos anos 273 vezes mais do que as dos pobres, nos informa a Carta Maior de 12/08/2011. Então, não é de se admirar a decepção dos frustrados face a um “software social” que lhes nega o acesso ao consumo e face aos cortes do orçamento social, na ordem de 70% que os penaliza pesadamente. 70% do centros de lazer para jovens foram simplesmente fechados.

O alarmante é que nem o primeiro ministro David Cameron nem os membros da Câmara dos Comuns se deram ao trabalho de perguntar pelo porquê dos saques nas várias cidades. Responderam com o pior meio: mais violência institucional. O conservador Cameron disse com todas as letras:”vamos prender os suspeitos e publicar seus rostos nos meios de comunicação sem nos importarmos com as fictícias preocupações com os direitos humanos”. Eis uma solução do impiedoso capitalismo neoliberal: se a ordem, que é desigual e injusta, o exige, se anula a democracia e se passa por cima dos direitos humanos. Logo, no país onde nasceram as primeiras declarações dos direitos dos cidadãos.

Se bem repararmos, estamos enredados num círculo vicioso que poderá nos destruir: precisamos produzir para permitir o tal consumo. Sem consumo, as empresas vão à falência. Para produzir, elas precisam dos recursos da natureza. Estes estão cada vez mais escassos e já dilapidamos a Terra em 30% a mais do que ela pode repor. Se pararmos de extrair, produzir, vender e consumir não há crescimento econômico. Sem crescimento anual, os países entram em recessão, gerando altas taxas de desemprego. Com o desemprego, irrompem o caos social explosivo, depredações e todo tipo de conflitos. Como sair desta armadilha que nos preparamos a nós mesmos?

O contrário do consumo não é o não consumo, mas um novo “software social” na feliz expressão do cientista político Luiz Gonzaga de Souza Lima. Quer dizer, urge um novo acordo entre consumo solidário e frugal, acessível a todos, também aos demais seres vivos e os limites intransponíveis da natureza.

Como fazer? Várias são as sugestões: um “modo sustentável de vida” da Carta da Terra, o “bem viver” das culturas andinas, fundada no equilíbrio homem/Terra, economia solidária, bio-sócio-economia, “capitalismo natural”(expressão infeliz) que tenta integrar os ciclos biológicos na vida econômica e social, e outras.

Mas, não é sobre isso que falam quando os chefes dos Estados opulentos se reunem. Lá se trata de salvar o sistema que veem dando água por todos os lados. Sabem que a natureza não está mais podendo pagar o alto preço que o modelo consumista cobra. Já está a ponto de pôr em risco a sobrevivência da vida e o futuro das próximas gerações. Somos governados por cegos e irresponsáveis, incapazes de dar-se conta das consequências do sistema econômico-político-cultural que defendem.

É imperativo um novo rumo global, caso quisermos garantir nossa vida e a dos demais seres vivos. A civilização técnico-científica que nos permitiu níveis exacerbados de consumo pode pôr fim a si mesma, destruir a vida e degradar a Terra.

Seguramente, não é para isso que chegamos até a este ponto no processo de evolução. Urge coragem para mudanças radicais, se ainda alimentamos um pouco de amor a nós mesmos.

Alento aos desolados com a Igreja - por Leonardo Boff

Atualmente há muita desolação com referência à Igreja Católica institucional. Verifica-se uma dupla emigração: uma exterior, pessoas que abandonam concretamente a Igreja e outra interior, as que permanecem nela mas não a sentem mais como um lar espiritual. Continuam a crer apesar da Igreja.

E não é para menos. O atual Papa tomou algumas iniciativas radicais que dividiram o corpo eclesial. Assumiu uma rota de confronto com dois importantes episcopados, o alemão e francês, ao introduzir a missa em latim; elaborou uma esdrúxula reconciliação com a Igreja cismática dos seguidores de Lefebvre; esvaziou as principais instituições renovadoras do Concílio Vaticano II, especialmente o ecumenismo, negando, ofensivamente, o título de “Igreja” às demais Igrejas que não sejam a Católica e a Ortodoxa; ainda como Cardeal mostrou-se gravemente leniente com os pedófilos; sua relação para com a AIDs beira os limites da desumanidade.
A atual Igreja Católica mergulhou num inverno rigoroso. A base social de apoio ao modelo velhista do atual Papa é constituída por grupos conservadores, mais interessados nas performances mediáticas, na lógica do mercado, do que propor uma mensagem adequada aos graves problemas atuais.
Oferecem um “cristianismo-prozac”, apto para anestesiar consciências angustiadas, mas alienado face à humanidade sofredora.
Urge animar estes cristãos em vias de emigração com aquilo que é essencial ao Cristianismo. Seguramente não é a Igreja que não foi objeto da pregação de Jesus. Ele anunciou um sonho, o Reino de Deus, em contraposição com o Reino de César, Reino de Deus que representa uma revolução absoluta das relações desde as individuais até as divinas e cósmicas.
O Cristianismo compareceu primeiramente na história como movimento e como o caminho de Cristo. Ele é anterior a sua sedimentação nos quatro evangelhos e nas doutrinas. O caráter de caminho espiritual é um tipo de cristianismo que possui seu próprio curso. Geralmente vive à margem e, às vezes, em distância crítica da instituição oficial. Mas nasce e se alimenta do permanente fascínio pela figura e pela mensagem libertária e espiritual de Jesus de Nazaré.
Inicialmente tido como “heresia dos Nazarenos” (At 24,5) ou simplesmente “heresia” (At 28,22) no sentido de “grupelho”, o Cristianismo foi lentamente ganhando autonomia até seus seguidores, nos Atos dos Apóstolos (11,36), serem chamados de “cristãos.”
O movimento de Jesus certamente é a força mais vigorosa do Cristianismo, mais que as Igrejas, por não estar enquadrado nas instituições ou aprisionado em doutrinas e dogmas. É composto por todo tipo de gente, das mais variadas culturas e tradições, até por agnósticos e ateus que se deixam tocar pela figura corajosa de Jesus, pelo sonho que anunciou, um Reino de amor e de liberdade, por sua ética de amor incondicional, especialmente aos pobres e aos oprimidos e pela forma como assumiu o drama humano, no meio de humilhações, torturas e da execução na cruz.
Apresentou uma imagem de Deus tão íntima e amiga da vida, que é difícil furtar-se a ela até por quem não crê em Deus. Muitos chegam a dizer: “se existe um Deus, este deve ser aquele que traz os traços do Deus de Jesus”.
Esse cristianismo como caminho espiritual é o que realmente conta. No entanto, de movimento, ele muito cedo ganhou a forma de instituição religiosa com vários modos de organização.
Em seu seio se elaboraram as várias interpretações da figura de Jesus que se transformaram em doutrinas e foram recolhidas pelos atuais evangelhos. As igrejas, ao assumirem caráter institucional, estabeleceram critérios de pertença e de exclusão, doutrinas como referência identitária e ritos próprios de celebrar.
Quem explica tal fenômeno é a sociologia e não a teologia. A instituição sempre vive em tensão com o caminho espiritual. Ótimo quando caminham juntas, mas é raro. O decisivo é, no entanto, o caminho espiritual. Este tem a força de alimentar uma visão espiritual da vida e de animar o sentido da caminhada humana.
O problemático na Igreja romano-católica é sua pretensão de ser a única verdadeira. O correto é todas as igrejas se reconhecerem mutuamente, pois todas revelam dimensões diferentes e complementares do Nazareno.
O importante é que o cristianismo mantenha seu caráter de caminho espiritual. É ele que pode sustentar a tantos cristãos e cristãs face à mediocridade e à irrelevância em que caiu a Igreja atual.

por Leonardo Boff

A perda de confiança na ordem atual

Na perspectiva das grandes maiorias da humanidade, a atual ordem é uma ordem na desordem, produzida e mantida por aquelas forças e países que se beneficiam dela, aumentando seu poder e seus ganhos.
Essa desordem se deriva do fato de que a globalização econômica não deu origem a uma globalização política. Não há nenhuma instância ou força que controle a voracidade da globalização econômica.
Joseph Stiglitz e Paul Krugman, dois prêmios Nobel em economia, criticam o Presidente Obama por não ter imposto freios aos ladrões de Wall Street e da City, ao invés de se ter rendido a eles. Depois de terem provocado a crise, ainda foram beneficiados com inversões bilionários de dinheiro público. Voltaram, airosos, ao sistema de especulação financeira.
Estes excepcionais economistas são ótimos na análise mas mudos na apresentação de saídas à atual crise.
Talvez, como insinuam, por estarem convencidos de que a solução da economia não esteja na economia mas no refazimento das relações sociais destruídas pela economia de mercado, especialmente, a especulativa.
Esta é sem compaixão e desprovida de qualquer projeto de mundo, de sociedade e de política. Seu propósito é acumular maximamente, apropriando-se de bens comuns vitais como água, sementes e solos e destroçado economias nacionais.
Para os especuladores, também no Brasil, o dinheiro serve para produzir mais dinheiro e não para produzir mais bens. Aqui o Governo tem que pagar 150 bilhões de reais anuais pelos empréstimos tomados, enquanto repassa apenas cerca de 60 bilhões para os projetos sociais.
Esta disparidade resulta eticamente perversa, consequência do tipo de sociedade a qual nos incorporamos, sociedade essa que colocou, como eixo estruturador central, a economia que de tudo faz mercadoria até da vida. 
Não são poucos que sustentam a tese de que estamos num momento dramático de decomposição dos laços sociais. Alain Touraine fala até de fase pós-social ao invés de pós-industrial.
Esta decomposição social se revela por polarizações ou por lógicas opostas: a lógica do capital produtivo cerca de 60 trilhões de dólares/ano e a do capital especulativo, cerca de 600 trilhões de dólares sob a égide do “greed is good”(a cobiça é boa).
A lógica dos que defendem a maior lucratividade possível e a dos que lutam pelos direitos da vida, da humanidade e da Terra.
A lógica do individualismo que destrói a “casa comum”, aumentando o número dos que não querem mais conviver e a lógica da solidariedade social a partir dos mais vulneráveis.
A lógica das elites que fazem as mudanças intrasistêmicas e se apropriam dos lucros e a lógica dos assalariados, ameaçados de desemprego e sem capacidade de intervenção.
A lógica da aceleração do crescimento material (o PAC) e a dos limites de cada ecossistema e da própria Terra. 
Vigora uma desconfiança generalizada de que deste sistema não poderá vir nada de bom para a humanidade. Estamos indo de mal a pior em todos os itens da vida e da natureza.
O futuro depende do cabedal de confiança que os povos depositam em suas capacidades e nas possibilidades da realidade. E esta confiança está minguando dia a dia.
Estamos nos confrontando com esse dilema: ou deixamos as coisas correrem assim como estão e então nos afundaremos numa crise abissal ou então nos empenharemos na gestação de uma nova vida social, capaz de sustentar um outro tipo de civilização.
Os vínculos sociais novos não se derivarão nem da técnica nem da política, descoladas da natureza e de uma relação de sinergia com a Terra. Nascerão de um consenso mínimo entre os humanos, a ser ainda construído, ao redor do reconhecimento e do respeito dos direitos da vida, de cada sujeito, da humanidade e da Terra, tida como Gaia e nossa Mãe comum.
A essa nova vida social devem servir a técnica, a política, as instituições e os valores do passado. Sobre isso venho pensando e escrevendo já pelo menos há vinte anos. Mas é voz perdida no deserto.
“Clamei e salvei a minha alma”(clamavi et salvavi animam meam), diria desolado Marx. Mas importa continuar. O improvável é ainda possível.

por Leonardo Boff

Uma nova sociedade ou um tsunami social-ecológico?

No último artigo aventei a idéia, sustentada por minorias, de que estamos diante de uma crise sistêmica e terminal do capitalismo e não de uma crise cíclica. Dito em outras palavras: foram destroçadas as condições de sua reprodução seja por parte da devastação da natureza e dos limites alcançados de seus bens e serviços seja por parte da desorganização radical das relações sociais, dominadas pela economia de mercado com a predominância do capital financeiro.
A tendência dominante é pensar que se pode sair da crise, voltando ao que era antes, com pequenas correções, garantindo o crescimen7o, resgatando empregos e assegurando lucros. Portanto, continuarão os negócios as usual.
As bilionárias intervenções dos Estados industriais salvaram bancos, evitaram uma derrocada sistêmica, mas não transformaram o sistema econômico. Pior ainda, as injeções estatais facilitaram o triunfo do capital especulativo sobre a economia real. Aquele é tido com o principal deslanchador da crise, comandado por verdadeiros ladrões que colocam o lucro acima do destino dos povos, como se viu agora com a Grécia.
A lógica do lucro máximo está destruindo os indivíduos, as relações sociais, penalizando os pobres, acusados de dificultar a implantação do capital. A bomba foi mantida com o estopim. Um problema maior qualquer poderá acender o estopim. Muitos analistas se perguntam amedrontados: a ordem mundial sobreviveria a outra crise do tipo da que tivemos?
O sociólogo francês Alain Touraine assevera em seu recente livro Após a crise (Vozes 2011): ou a crise acelera a formação de uma nova sociedade ou vira um tsunami que poderá arrasar tudo o que encontrar pela frente, pondo em perigo mortal nossa própria existência no planeta Terra (p. 49.115).
Razão a mais para sustentar a tese de que estamos face a uma situação terminal deste tipo de capital. Impõe-se a urgência de pensar valores e princípios que poderão fundar um novo modo de habitar a Terra, organizar a produção e a distribuição dos bens, não só para nós (superar o antropocentrismo) mas para toda a comunidade de vida.
Este foi o objetivo da produção da Carta da Terra, animada por M. Gorbachev que, como ex-chefe de Estado da União Soviética, conhecia os instrumentos letais disponíveis para a destruição até da última vida humana, como afirmou em várias reuniões.
Aprovada pela UNESCO em 2003, ela contém, efetivamente, “princípios e valores para um modo de vida sustentável como critério comum para indivíduos, organizações, empresas e governos”. Urge estudá-la e deixar-se inspirar por ela, sobretudo agora, na preparação da Rio+20.
Ninguém pode prever o que virá após a crise. Há apenas insinuações. Estamos ainda na fase do diagnóstico de suas causas profundas. Lamentavelmente são, sobretudo, economistas que fazem análises da crise e menos sociólogos, antropólogos, filósofos e estudiosos das culturas. O que está ficando claro é o seguinte: houve um triplo descolamento: o capital financeiro se descolou da economia real; a economia em seu conjunto, da sociedade; e a sociedade em geral, da natureza. Esta separação criou uma fumaça tal que já não vemos quais caminhos seguir.
Os “indignados” que enchem as praças de alguns países europeus e do mundo árabe, estão colocando este sistema em xeque. Ele é ruim para a maioria da humanidade. Até agora eram vítimas silenciosas. Agora gritam alto. Não só buscam emprego mas reclamam direitos humanos fundamentais.
Querem ser sujeitos, vale dizer, atores de um outro tipo de sociedade na qual a economia esteja a serviço da política e a política a serviço do bem viver das pessoas entre si e com a natureza.
Seguramente não basta querer. Impõe-se uma articulação mundial, a criação de organismos que viabilizem outro modo de conviver e uma representação política ligada aos anseios gerais e não aos interesses do mercado. Trata-se de refundar a vida social.
Por mim, vejo os indícios, em muitas partes, do surgimento de uma sociedade mundial ecocentrada e biocentrada. O eixo será o sistema-vida, o sistema-Terra e a Humanidade. Tudo deve servir a esta nova centralidade. Caso contrário, dificilmente evitaremos um tsunami ecológico-social possível.