Mostrando postagens com marcador Luis Fernando Verissimo. Mostrar todas as postagens
Mostrando postagens com marcador Luis Fernando Verissimo. Mostrar todas as postagens

por Luis Fernando Verissímo



Quando o grampo telefônico e a minicâmera escondida ainda não eram instrumentos de denúncia e moralização, o político corrupto podia contar com uma certa tolerância tácita dos seus pares e do público.
Mesmo quando não havia dúvidas quanto a sua corrupção, havia a disposição de perdoá-lo, até de folclorizá-lo — e o político que roubava mas fazia tinha o privilégio do artista, de ser um canalha em particular se sua obra o redimisse.
Uma única gravura do Picasso absolve uma vida de mau-caráter. A obra do Marquês de Sade é estudada com a mesma isenção moral dedicada à obra de Santo Agostinho — que nem sempre foi santo — e ninguém quer saber se o escritor engana o fisco ou bate na mãe se seus livros são bons.
Ou querer saber, queremos, mas só pelo valor de fuxico.
A absolvição custa um pouco mais quando o pecado do artista é o da ideologia errada. Pois se se admitia no político a perversão privada do artista, a única inconveniência intolerável no artista era a incorreção política.
Assim um Louis Ferdinad Céline e um Wilson Simonal tiveram que esperar a remissão que o tempo acabou dando a Kipling, Claudel, Nelson Rodrigues, Jean Genet, etc. Mas a receberam.
O político que declaradamente roubava mas se redimia fazendo tinha um pouco desta imunidade de artista. Sua obra justificava seus pecados, quando não era uma decorrência deles.
Todo o sistema de conveniências e deixa-pra-laísmo que domina o Congresso brasileiro e que está sendo testado agora presume a mesma desconexão entre moral privada e moral aparente. A cultura do clientelismo, onde o suposto proveito político substitui a ética, está baseada nela.
O que causou a atual revolta contra a roubalheira e a tolerância com a corrupção no Brasil, além das modernas técnicas de averiguação, é a constatação crescente de que aqui não se tem nem a ética nem o proveito, rouba-se para poucos e não se faz para a maioria.
Em cleptocracias mais avançadas a obra dos artistas do desenvolvimento, todos bandidos, redimiu-os. Empresários corruptores e políticos corruptos fizeram dos Estados Unidos, por exemplo, o que eles são hoje.
O capitalismo selvagem americano domou a si mesmo depois de construir um país, ou controlou-se razoavelmente, mas nos seus tempos desinibidos escandalizaria até o Cachoeira. Aqui se tem o crime mas ainda não se tem o país.

Bom dia!!!

 
Realize mais, sonhe menos.
Faça mais, planeje menos.
Acredite em você!
" Porque, embora quem quase morre, esteja vivo, quem quase vive, já morreu", 
Luis Fernando Verissimo 

Dorinha nunca deixou de desfilar no carnaval

Crônica de Luis Fernando Verissimo
Outra carta da Dorinha
Recebo outra carta da ravissante Dora Avante. Dorinha, como se sabe, até hoje só perdeu um carnaval. Foi quando morou um ano no exterior com um milionário cujo titulo ela não se lembra (“Duque, Sultão... Sei que era nome de cachorro”) . O romance durou pouco porque ele tinha lhe jurado que era do “jet set” mas se revelou um teco-teco na cama.
Até hoje Dorinha só se refere a ele como “Le Blef”. Fora este interregno impensado, Dorinha nunca deixou de desfilar no carnaval.
Inclusive com sacrifícios pessoais, como na vez em que saiu como destaque num pedestal tão alto que ficou presa na rede elétrica e foi salva por um bombeiro chamado Eudir, com quem ela não tem certeza mas acha que se casou depois.
Ficou famosa a sua passagem triunfal na avenida como rainha da bateria, só de tapa sexo e puxando o Pitanguy pela mão, para o caso de o publico começar a gritar “O autor! O autor!” .
Por tudo isto, pode se compreender seu desalento com a possibilidade de não desfilar este ano. Sim, ela e seu grupo de pressão política e carteado, as Socialaites Socialistas, estão ameaçados de serem cortados do desfile da sua escola, porque...
Mas deixemos que a própria Dorinha nos conte. Sua carta veio, como sempre,escrita com tinta purpura em papel rosa e com aroma de “Sacanage”, um perfume recém-lançado e já banido em vários países.
“Queridíssimo. Beijos tristes e babados. Agora esta: estão preocupados com a quantidade de brancos nas escolas de samba e a solução, na nossa escola, foi adotarem um sistema de cotas! Parece que se deram conta da gravidade da situação quando descobriram que justamente este ano, quando o tema da escola é “Esplendor de um rei Nagô”, a porta-bandeira será canadense e o mestre-sala dinamarquês, e os dois aprenderam a evolução por correspondência.
Concluíram que se não fosse tomada uma resolução drástica agora em breve teríamos baterias formadas só de alemães. Como o ritmo dos desfiles fica cada vez mais marcial, nesse quesito os alemães não seriam problema. Problema seria eles não pararem na praça da Apoteose, seguirem adiante e invadirem a Polônia.
Concordamos que alguma coisa deve ser feita, mas o fato é que as cotas para brancos já foram todas preenchidas por um grupo ucraniano e não sobrou nada para as Socialaites Socialistas, vítimas de odiosa discriminação.
Pensamos em muitas maneiras de contornar a situação, todas envolvendo algum tipo de escurecimento rápido da pele, culminando com a decisão da Tatiana (“Tati”) Bitati de mergulhar em tinta nanquim. Mas temos pouco tempo. E o impensável talvez aconteça.
Este ano, a avenida pode não ver Dora Avante. Domage. Estou com seios novos, ainda não testados em publico. Assim passam as glórias, e as doras, deste mundo. Beijíssimo da tua Dorinha.”

O cúmulo do chutzpah


por Luis Fernando Verissimo
Um exemplo extremo do que os judeus chamam de “chutzpah” é o cara que mata o pai e a mãe e no tribunal pede clemência para um pobre órfão.
“Chutzpah” é algo que ultrapassa o cinismo e provoca até uma certa admiração pela audácia. Se houvesse um prêmio para a “Chutzpah do Ano” de 2012 o vencedor já estaria decidido, pois ninguém poderia concebivelmente igualar o primeiro-ministro britânico David Cameron este ano.
Quando Cameron chamou de “colonialista” a pretensão da Argentina de incorporar as Ilhas Malvinas, Falklands para os ingleses, ao seu território, estabeleceu um novo parâmetro para o “chutzpah” que humilha até o do órfão que pede clemência.
As Ilhas Falklands são os últimos farelos do maior sistema colonial que o mundo já conheceu. Um sistema que levou a espoliação comercial, a prepotência e a morte — junto com o parlamentarismo, o críquete e o chá com bolinhos — a todos os limites da Terra, e ainda se apegava aos seus domínios, muitas vezes por puro orgulho imperial, quando outras potências coloniais já tinham desistido.
Se há alguém que não pode xingar ninguém de colonialista é um inglês. Pelo menos não sem corar.
Você não precisa torcer pela Argentina para lamentar os ingleses no caso das Malvinas/Falklands. Ou vice-versa.
As barbaridades de lado a lado se equivalem. A tentativa de tomada das ilhas pelo governo militar argentino de 1982 — decidida, segundo o folclore, durante uma bebedeira do general Galtieri — foi uma aventura desastrada, tornada ainda mais trágica pela desproporção de forças.
As consequências da aventura também se equilibram. A derrota humilhante decretou o fim do regime militar argentino. A vitória fácil decretou a reeleição da Margaret Thatcher na Inglaterra.
Entre os quase mil mortos argentinos e ingleses na rápida guerra, as razões geopolíticas e eleitorais para o seu sacrifício não fizeram nenhum sentido.
Num plebiscito, a população das ilhas certamente escolheria continuar fazendo parte do Reino Unido. Este é o principal argumento inglês para continuar lá. Tudo bem. Mas o David Cameron poderia ter ao menos corado um pouco.

O xerox e o scanner são mais antigos do que se pensava.

Especulações de Luis Fernando Veríssimo?...


Descobriram, na Espanha, uma cópia idêntica da Mona Lisa do Leonardo da Vinci. O que provocou várias especulações:

1 — O xerox e o scanner são mais antigos do que se pensava.
2 — O autor da pintura foi o próprio Da Vinci, que fez várias cópias da sua Gioconda para vender no mercado paralelo.
3 — O autor foi um discípulo de Da Vinci que copiou a obra do mestre.
A última hipótese é a mais provável, mas as especulações não ficarão por aí. O fascinante em descobertas como esta é que, como é impossível saber exatamente o que aconteceu há séculos, tudo é especulação e a imaginação se solta. A pintura revelada agora tem seus mistérios. A Mona Lisa copiada parece mais jovem do que a original.  Seu sorriso é mais inocente do que enigmático — é o de uma Mona Lisa antes de saber das coisas da vida.
Um fundo preto que distinguia a cópia do original foi retirado e apareceu um fundo igual ao pintado por Da Vinci. Por 
que o discípulo teria camuflado a paisagem toscana do mestre? Outros discípulos fizeram cópias parecidas, e que fim estas levaram?

A imaginação se solta. No seu livro “A mouthful of air”, Anthony Burgess lembra uma tese, ou uma lenda, que se espalhou sobre a feitura da versão inglesa da Bíblia encomendada pelo rei James I e publicada em 1611. O rei convocou um time de quarenta e sete tradutores do grego e do hebraico, alguns para traduzir o Velho Testamento, outros para traduzir o Novo, alguns para as partes proféticas e outros para as partes poéticas.
E, segundo a lenda, provas das escrituras poéticas teriam sido distribuídas entre os poetas profissionais da época para darem uma polida no texto, desde que não desvirtuassem a tradução. O que explicaria a presença do nome de Shakespeare no Salmo 46 — “shake” a 46 palavra a contar do princípio, “speare” a 46 palavra a contar do fim.
Segundo Burgess, sem nenhuma esperança de ter algum tipo de posteridade com seus versos, o poeta teria ao menos deixado seu nome, mesmo cifrado, numa obra histórica. Mas o próprio Burgess não acreditava na lenda.
O passado, já disse alguém, é uma terra estranha. Só se pode conhecê-lo pela especulação e visitá-lo pela imaginação. E se a Mona Lisa da Espanha for a verdadeira e a do Louvre uma cópia? Como a presença ou não do Shakespeare entre os tradutores dos salmos, jamais saberemos.

Compartilhem no Google +, Twitter e Facebook Obrigado!!!

Crônica de Luis Fernando Verissimo


Saudade do Ted Boy Marino

Alguma coisa aconteceu no coração do Brasil quando acabaram com as lutas de “catch”. Elas eram um sucesso na TV e seus astros viajavam em caravanas pelo país, apresentando-se em ginásios e circos. As lutas não eram lutas, eram teatro. Não eram exatamente combinadas, mas seguiam um roteiro estabelecido e havia um acordo tácito de que ninguém sairia do ringue machucado, mesmo que saísse arremessado.

O roteiro básico não variava: era os bons contra os maus, e os bons sempre ganhavam. Ou só perdiam quando o adversário traiçoeiro recorria a um golpe especialmente baixo, sob uivos de raiva da plateia. E a reação da plateia fazia parte do teatro. Havia uma suspensão voluntária de descrença, e todos torciam pelo Bem contra o Mal — ou pelo bonito contra o feio, o esbelto contra a barrigudo, o correto contra o falso — com um fervor que não excluía a consciência de que era tudo encenação.
Era fácil distinguir os bons e os maus. Os bons eram atletas como o Ted Boy Marino, caráter tão irretocável quanto os seus cabelos loiros, que lutava limpo. Os maus tinham nomes como Verdugo e Rasputin, e comportamento correspondente ao nome. Lembro de um Homem Montanha, que mais de uma vez derrubou o juiz junto com o adversário. E não havia um Tigre Paraguaio?
Os bons geralmente começavam apanhando e, quando parecia que estavam liquidados e que o Mal triunfaria, vinha a eletrizante reação, durante a qual o inimigo pagava por todas as suas maldades. Humilhação e vingança, nada na história do teatro é tão antigo e tão eficaz. Nove entre dez novelas de televisão têm o mesmo enredo.
Não sei se ainda fazem espetáculos de “catch” pelo interior do país. Hoje na TV o que se vê é o “ultimate fighting”, ou “mixed martial arts”, dois lutadores simbolizando nada trocando socos e pontapés sem simulação, quando não se engalfinham no chão como um bicho de duas costas e oito patas em convulsão.
Nessas lutas não vale, exatamente, tudo — parece que esgoelar o outro e xingar a mãe não pode. Mas é o “catch” despido da fantasia, com sangue de verdade. Não há mais mocinho e vilão, apenas duas máquinas de brigar, brigando.
Nem Ted Boy Marino nem Homem Montanha, apenas a violência em estado puro. Sei não, acho que empobrecemos.

O antilulismo não é solidário nem no câncer


Um historiador do futuro — figura retórica tão útil quanto o Marciano Hipotético para se olhar o Brasil atual de uma certa distância — terá duas grandes dificuldades para entender que diabos se passou por aqui nos últimos anos.
Uma será explicar o amor ao Lula. A outra será explicar o ódio ao Lula. As duas coisas transbordaram de qualquer parâmetro racional.
Lula terminou seu mandato com um índice de aprovação popular inédito, e odiado na mesma proporção. O amor resistiu a escândalos, gafes, alianças indefensáveis, uma imprensa hostil e uma oposição ativa. O ódio se manteve constante até depois do mandato e não se diluiu nem numa natural simpatia pelo homem doente — o antilulismo feroz não é solidário nem no câncer.
Nosso historiador talvez desista de encontrar explicações para essa polarização extrema na disputa política e sucumba a simplificações sociorromânticas.
Talvez conclua que Lula teria o amor da maioria pelo seu tipo físico e sua biografia independentemente de qualquer outra coisa, e seria aprovado pelos seus semelhantes não importa que governo fizesse. E que o ódio ao Lula se explicava por nada menos científico ou novo no Brasil do que o preconceito social, uma repulsa atávica a quem ultrapassa sua classe e com isto ameaça todo o conceito de classe predestinada.
No caso um torneiro mecânico inculto metido a grande coisa.
No fundo o que o perplexo historiador do futuro estaria dizendo é que é impossível confiar em padrões históricos como os que explicam outras sociedades para nos explicar. Não se trata de reativar a frase que o De Gaulle nunca disse, sobre nossa falta de seriedade. Somos sérios, sim. Mas também somos movidos a paixões que sabotam toda coerência histórica.
O Lula foi um catalisador de paixões, a favor e contra. E o mais extraordinário e brasileiro disso é que o amor e o ódio não têm nada a ver com os sucessos ou os fracassos do seu governo. Existem num plano ahistórico e apolítico de pura devoção ou pura raiva.
de Luis Fernando Verissimo

por Luis Fernando Verissimo

O som da época [e/ou do nosso tempo?]...


Desconfio que ainda nos lembraremos destes anos como a época em que vivemos com o acompanhamento dos alarmes de carro. Os alarmes de carro são a trilha sonora do nosso tempo: o som da paranoia justificada.
O alarme é o grito da nossa propriedade de que alguém está querendo tirá-la de nós. É o som mais desesperado que um ser humano pode produzir — a palavra "Socorro!" — mecanizado, padronizado e a todo volume. É "socorro!" acrescentado ao vocabulário das coisas, como a buzina, a campainha, a música de elevador, o "ping" que avisa que o assado está pronto e todos os "pings" do computador.
Também é um som típico porque tenta compensar a carência mais típica da época, a de segurança. Os carros pedem socorro porque a sua defesa natural — polícia por perto, boas fechaduras ou respeito de todo o mundo pelo que é dos outros — não funciona mais. Só lhes resta gritar.
Também é o som da época porque é o som da intimidação. Sua função principal é espantar, e substituir todas as outras formas de dissuasão pelo simples terror do barulho. O som da época em que os decibéis substituíram a razão. Como os ouvidos são, de todos os canais dos sentidos, os mais difíceis de proteger, foram os escolhidos pela insensibilidade moderna para atacar nosso cérebro e apressar nossa imbecilização. Pois são tempos literalmente do barulho.
O alarme contra roubo de carro também é próprio da época porque frequentemente não funciona. Ou funciona quando não deve. Ouvem-se tantos alarmes a qualquer hora do dia ou da noite porque, talvez influenciados pela paranoia generalizada, eles disparam sozinhos. Basta alguém se aproximar do carro com uma cara suspeita e eles começam a berrar.
Decididamente, o som do nosso tempo.

por Luis Fernando Verissimo


O monstro

Marx não chegou a pedir que esquecessem tudo que ele tinha escrito, mas confessou que a invenção do trem e do navio a vapor o forçavam a repensar algumas das suas teorias sobre o futuro do capitalismo.
Os seguidores de Ned Ludd, chamados luditas, trabalhadores na indústria têxtil inglesa, se revoltaram contra a invenção de teares automatizados que ameaçavam seus empregos no começo do século dezenove e pregavam a destruição de todas as máquinas que substituíssem o trabalho humano.
A história social e econômica dos Estados Unidos se divide em antes e depois da massificação, pela Ford, da produção dos seus carros, que empestavam o ambiente, além de assustar os cavalos, e foram duramente combatidos.
Reações a novidades tecnológicas se repetem ao longo da história, movidas pelo medo à obsolescência, como no caso dos luditas, incompreensão ou apego ao passado. O capítulo mais recente e mais curioso dessa briga é a decisão do governo inglês de restringir o uso no país das redes sociais, que todo o mundo achava maravilhosas até revelarem um potencial subversivo que ninguém previra.
Enquanto os tuiters e os facebooks animaram as revoltas contra os déspotas e por aberturas democráticas nas ruas árabes, tudo bem. Eram as redes sociais, o produto mais moderno da engenhosidade humana, usadas para modernizar sociedades atrasadas. Mas descobriram que os quebra-quebras e queima-queimas nas ruas inglesas estavam sendo, em grande parte, também tramados na internet. Epa, disseram os ingleses, ou o equivalente em inglês. Aqui não.
Conservadores e trabalhistas se uniram para condenar a violência e o vandalismo e negar qualquer outra motivação, além de banditismo nato, para a rebelião. E todos, presumivelmente, concordaram com as medidas do governo para evitar novos distúrbios, incluindo o controle das redes sociais.
Resta saber se o controle ainda é possível. O monstro talvez não seja mais domável. Já acabou com qualquer pretensão a se manter segredos oficiais secretos, já invadiu a privacidade de meio mundo e tornou a pornografia acessível a todas as idades, e já sentiu o gosto do sucesso como instigador de revoltas — sem falar que ninguém mais consegue viver sem ele.
Agora pode não haver mais o que fazer. Se tivessem parado na invenção do trem...

por Luis Fernando Verissimo


O espírito da coisa

Dizem que juiz de futebol bom é o que não é notado. O Nelson Jobim não poderia ser julgado pelo mesmo critério porque um homem do seu tamanho e com sua personalidade nunca deixaria de ser notado. Mas, mesmo não tendo exatamente um perfil baixo, Jobim foi um ministro da Defesa razoavelmente discreto.
Não houve nenhuma crise maior com os militares durante sua gestão e a coisa mais controvertida que ele disse no cargo — que os registros da ditadura em poder dos militares já tinham sido destruídos — recebeu, curiosamente, pouca atenção, e nenhuma cobrança.
A maior falha do Jobim como ministro talvez se deva à sua envergadura. Se fosse um ministro da Defesa menor vestindo aquela farda de campanha na companhia de militares, como ele fez mais de uma vez, o erro seria menos conspícuo. Escolhendo o traje militar tamanho GG, com camuflagem, para ser fotografado como um membro da tropa, Jobim subverteu o que é, afinal, o significado mais importante de se ter um ministro civil da Defesa: o fato de ele ser um civil.
A criação do cargo de ministro da Defesa, como existe em todos os países adiantados do mundo e até em alguns atrasados, foi um dos bons feitos do governo Fernando Henrique. Marcou o fim oficial de uma era em que se liam as ordens do dia dos quartéis para conhecer aquela emanação ominosa, "o pensamento militar", e muitas vezes o nosso destino político.
A distinção entre o chefe civil das Forças Armadas e seus subordinados de uniforme deveria ser enfatizada até no meio da selva, em vez de sacrificada por uma ideia equivocada de companheirismo ou integração. Acho até que, mesmo em missões no mato, o ministro deveria ir de terno e gravata. E, vá lá, de botas. Mas civis.
O Jobim, vestindo-se como soldado, mostrou que não tinha entendido o espírito da coisa. Ou então estava apenas cedendo a um ímpeto juvenil, e neste caso está perdoado. De qualquer maneira, podemos ter uma certeza. Jamais veremos o Celso Amorim de uniforme de campanha.

por Luis Fernando Verissimo



O platinado

Sei tão pouco do motor de um carro quanto sei da alma humana. Olho o que tem debaixo do capô como se olhasse um abismo sem fundo e só peço do motor do meu carro que funcione, sem precisar entrar na sua intimidade.
Conheço algumas partes do motor de ouvir falar, claro, como o radiador e a bateria, e simpatizo com o virabrequim apesar de não ter a menor ideia do que seja. Mas o virabrequim é o limite do meu envolvimento com o abismo. Não sei o que é o platinado, por exemplo. E me surpreendo com o número de vezes em que o platinado é citado quando busco ajuda profissional para um motor com defeito.
Muitas vezes a opinião do mecânico precede um exame do motor.
— Talvez seja o platinado...
Outras vezes o exame confirma o diagnóstico precoce:
— É o platinado.
E é raro se ouvir que o platinado tem conserto.
Normalmente a única solução para um problema com o platinado é um procedimento radical. Transplante.
— Tem que trocar o platinado.
Cheguei a desconfiar que, como tenho cara de quem não sabe nada de motores, estavam me enganando, e trocar o platinado fosse só uma maneira de me cobrar mais. Talvez o platinado velho estivesse em perfeitas condições. Talvez nem existisse o platinado! Ou então a troca do platinado era a maneira prática de dispensar uma intervenção mais trabalhosa. Na falta do que fazer, trocava-se o platinado.
Penso no platinado sempre que ouço que mais um técnico de futebol foi trocado por outro, para melhorar a produção do time, acabar com uma fase má ou simplesmente aplacar uma torcida revoltada. A conclusão em todos os casos é que a culpa é do platinado e a solução é um platinado novo.
Quase sempre a culpa real é de uma administração incompetente ou um time irreparavelmente ruim, mas trocar isto equivaleria a ter que trocar todo o motor. E trocar o platinado adquiriu até uma conotação mística.
Um novo técnico teria, como um deus, a capacidade de mudar o clima no vestiário. De fazer pernas de pau acertarem chutes, jogadores cegos enxergarem a bola e ameaçados de sepultamento na zona de rebaixamento ressuscitarem.
Raramente consegue, o que não diminui o poder da ortodoxia: quando as coisas vão mal, troque-se o platinado.

por Luis Fernando Verissimo

Fada Boa contra Fada Má

O jantar anual da associação dos correspondentes estrangeiros em Washington é uma oportunidade para políticos locais dizerem coisas que normalmente não diriam e rirem de si mesmos.
Começando pelo presidente da República, que é sempre convidado a falar e sempre fala no tom autodepreciativo que se espera de um cara legal, gente como a gente.
Num desses jantares mostraram um clip, especialmente gravado para a ocasião, do George Bush no gabinete da Presidência olhando dentro de gavetas, atrás das cortinas e embaixo dos móveis e dizendo: “Aquelas armas de destruição em massa têm que estar em algum lugar...”
Seria mais engraçado se a invasão do Iraque ordenada por Bush, motivada pelas armas de destruição em massa que não estavam lá, já não tivesse matado alguns milhares de pessoas. No mesmo jantar, Bush fez outra piada tática.
Falou da elite econômica americana, dos milionários e dos arrogantes barões de Wall Street, “que vocês chamam de gatos gordos e insensíveis e eu chamo de... meu eleitorado”. Risos. Palmas. O cinismo faz muito sucesso nos tais jantares.
Bush não decepcionou seu eleitorado. Foi fiel à tese de que deixando os gatos gordos se lambuzarem com concessões e privilégios, como cortes dos seus impostos e pouco controle dos seus excessos, algum benefício escorreria para a maioria.
A famosa trickle-down economics da era Reagan ainda perdura, e Bush tornou o melado ainda mais doce para os ricos. Essa briga entre os republicanos e o Barack Obama sobre elevar ou não o teto para o endividamento americano e como fazer para diminuir o déficit nacional é — ou era, imagino que já tenha se resolvido, ou dado empate — entre o legado de Bush e a mínima ação do Obama de defender o seu eleitorado do poder da ganância.
Um lado quer diminuir o déficit cortando gastos sociais e mantendo intocados os privilégios dos ricos, o outro quer manter os gastos sociais e taxar mais os ricos.
O Obama não está sendo, no governo, exatamente o que seu eleitorado esperava. Compreende-se, tem que ser mais flexível do que coerente para lidar com um Congresso hostil e cuidar da sua sobrevivência, não só política mas — a julgar pela retórica cada vez mais furiosa da direita contra ele — física também.
Mas na questão de quem deve pagar pelo déficit nenhuma flexibilidade era possível. Tratava-se de escolher entre leite para crianças e mais lucro para banqueiros, Fada Boa contra Fada Má.
Mas estou escrevendo antes do desfecho da briga, não sei se o Baraca cedeu. As Fadas Boas andam em recesso no mundo todo.

por Luis Fernando Verissimo


Ao contrário

Gustave Flaubert recomendava aos escritores que levassem pacatas vidas burguesas e enlouquecessem na sua obra.

Arthur Conan Doyle seguiu a receita de Flaubert ao contrário. Sua criação mais conhecida, Sherlock Holmes, era a personificação do pensamento racional e da lógica dedutiva e levava a vida de um correto cavalheiro inglês. Nem as suas excentricidades — ou o seu gosto por cocaína — destoavam muito do padrão vitoriano. E não há notícia de que Holmes tenha alguma vez recorrido ao sobrenatural para resolver um caso.
Já seu autor era um irracional assumido, ligado em ocultismo, sempre pronto a acreditar em manifestações metafísicas, por mais improváveis que fossem.
No fim do século dezenove a Inglaterra foi tomada por uma crença obsessiva em fadas. A nova arte da fotografia teve muito a ver com a propagação da mania entre ingleses de todas as idades e todos os tipos, inclusive intelectuais e cientistas. Fotos de ninfas aladas borboleteando entre flores convenceram muita gente grande da existência do fenômeno, que chegou a ser assunto no Parlamento.
E Conan Doyle foi dos primeiros a acreditar e defender a autenticidade das fotos e das fadas. E acreditou nelas até morrer.
Pode-se imaginar a reação de Sherlock Holmes ao saber das convicções do seu autor.
— Fadas, Watson. Ele acredita em fadas.
— Pelo menos ele nos poupou das suas crenças malucas, Holmes. Se bem que...
—- O quê, Watson?
— Sempre achei que havia algo de sobrenatural nos seus poderes de dedução.
— Bobagem, Watson. Uso apenas a razão e o senso comum, com, talvez, um toque de gênio. Que, aliás, foi ele que me deu.
— Estranho caso de um escritor que concentrou a sanidade na sua literatura para poder enlouquecer na sua vida.
— Mais um dos muitos mistérios da condição humana, Watson.
— Aonde você vai, Holmes?
— Buscar a sabedoria da cocaína. A única forma de metafísica que me permito.


APRÉS DRUMMOND
(Da série “Poesia numa hora dessas?!”)
Mundo, mundo, vasto mundo 
se eu me chamasse Eike Batista 
não seria uma rima 
mas seria uma solução. 

por Luis Fernando Verissimo


Ficções reais

Romeu e Julieta nunca existiram, o que não impede que exista um balcão em Verona que os guias locais identificam como o do quarto da desafortunada jovem, para grande alvoroço dos turistas.
Aparecia tanta gente na cidade de Portbou na fronteira da Espanha com a França atrás do túmulo do critico e ensaísta alemão Walter Benjamin, que ali se suicidara para não ser devolvido à França ocupada pelos nazistas, que a prefeitura decidiu inventar um túmulo para ele, já que ninguém sabia o verdadeiro paradeiro dos seus restos.
Nem o balcão da Julieta nem o túmulo do Benjamin são exatamente falsificações. Os amantes de Verona são símbolos tão cultuados de romance trágico, há tanto tempo, que têm direito a uma vida real, mesmo que retroativamente.
E se o túmulo do Benjamin está vazio, isto acaba sendo um detalhe sem importância. A lápide mentirosa evoca um dos grandes intelectuais do seu tempo, o monumento induz a uma reflexão sobre as mentes arrasadas pela guerra e, afinal, não é preciso que sejam mesmo os restos do Marx naquele cemitério em Highgate para que seu túmulo seja local de romarias.
Li que foi lançado um livro chamado "Daisy Buchanan´s Daughter", a filha de Daisy Buchanan, o amor da vida de Jay Gatsby no romance "O grande Gatsby", de F. Scott Fitzgerald.
Pam Buchanan faz uma pequena aparição, com três anos de idade, em "O grande Gatsby" e o novo livro é uma especulação sobre como teria sido a sua vida depois dos acontecimentos narrados por Fitzgerald. O que sugere um novo filão literário, ficções sobre personagens fictícios, ou a continuação de obras famosas com personagens tomados emprestados do autor original.
Capitu, no fim da vida, num asilo, finalmente contando a verdade sobre Escobar. Madame Bovary, em vez de se suicidar, começando uma vida nova como chapeleira em Paris. Etc, etc.
Já se especulou como teria sido a continuação de "Romeu e Julieta" se o mal-entendido que resultou na morte dos amantes tivesse sido evitado a tempo e os dois se casassem e vivessem felizes - até começarem a cansar um do outro, os filhos infernizarem a vida dos dois, surgirem as suspeitas de traição, Julieta engordar, Romeu começar a beber e voltarem velhas desavenças familiares ("Vocês Capuletos são todos iguais!").
Melhor terem morrido mesmo, e ressuscitado para os turistas.

por Luis Fernando Verissimo


Comparações
O escritor argentino Manuel Puig era um notório cinéfilo e certa vez mandou para seu amigo cubano Guillermo Cabrera Infante uma sugestão de elenco para um filme imaginário sobre a literatura latino-americana em que atrizes famosas fariam os papéis principais. Assim Júlio Cortazar seria interpretado por Hedy Lamarr (“Bela, mas fria e remota”, segundo Puig), Carlos Fuentes por Ava Gardner (“Cercada de glamour, mas será boa atriz?”), Garcia Marquez por Liz Taylor (“Rosto bonito mas pernas muito curtas”) e Vargas Llosa por Esther Williams (“Disciplinada, mas que chatura”).
Puig se incluía no filme, interpretado por Julie Christie, “uma grande atriz, que, desde que encontrou o homem certo (na época, Warren Beatty), deixou de atuar”.
Puig — que também era notoriamente gay — disse sobre Julie Christie e, presumivelmente, sobre si mesmo que sua sorte no amor causava inveja nas outras estrelas. Não se sabe quem era o Warren Beatty do argentino.
Jogos deste tipo são totalmente subjetivos e cada um pode fazer as comparações que quiser — se bem que comparar o Vargas Llosa com a Esther Williams me parece, por alguma razão, perfeito. Não que o peruano seja previsível e chato, pelo contrário. É que ele mergulha com estilo e nada de frente e de costas numa piscina que ninguém mais frequenta.
Me lembrei de outra lista de comparações, também inteiramente subjetiva, feita pelo Paulo Mendes Campos numa crônica intitulada “O Botafogo e eu”, aquela que termina assim: “E a insígnia do meu coração é também (literatura) uma estrela solitária.” Na sua lista o cronista diz que Michelangelo é Botafogo, Leonardo é Flamengo, Rafael é Fluminense, Stendhal é Botafogo, Balzac é Flamengo, Flaubert é Fluminense, Bach é Botafogo, Beethoven é Flamengo, Mozart é Fluminense. Segundo o Paulo “Dostoievski é Botafogo, Tolstoi é Flamengo (na literatura russa não há Fluminense)”. Baudelaire é Fluminense, Verlaine é Flamengo, Rimbaud é Botafogo.
A lista termina assim: “Camões não é Vasco, é Flamengo, Garret é Fluminense, Fernando Pessoa é Botafogo. Sim, Machado de Assis é Fluminense, mas no fundo, no fundo, debaixo da capa cética, Machado, um bairrista, morava onde? Laranjeiras!”

por Luis Fernando Verissimo

Ó Dilma!

Deixa ver se eu entendi. Querem liberar a maconha e proibir a pesquisa histórica, mesmo para fins terapêuticos. É isso? Nacionalizar a maconha e privatizar o passado?
Uma coisa não teria nada a ver com a outra se a atitude comum do brasileiro em relação à sua história não se parecesse com a letargia e a despreocupação que — dizem, eu nunca provei — caracteriza o barato da maconha. Agora mesmo, pode-se imaginar que muita gente marchará pelo direito de fumar maconha sem culpa, no que estará com toda a razão, mas não se prevê nenhuma grande manifestação popular contra a proposta de proibir para sempre o acesso a certos documentos históricos, com faixas dizendo "Queremos saber tudo sobre a Guerra do Paraguai".
E, no entanto, o direito de conhecer o passado sem restrição deveria ser tão natural quanto o direito a um baseado descriminalizado. Não bastasse os militares sentados em cima dos dados e das dúvidas sobre o período da repressão, vem essa ideia do segredo eterno para sonegar ainda mais à nação sua própria biografia. O objetivo é concluir que o passado não existiu e não se fala mais nisso. A presidente, dizem, aceitou a ideia do Sarney e do Collor, logo do Sarney e do Collor, contrariando o que deveria ser o seu instinto. Ó Dilma!

por Luis Fernando Verissimo

A anti-Palocci

Dizem que a Dilma mandou ligar para a casa do ministro das Comunicações, Paulo Bernardo, e da sua mulher Gleisi para fazer o convite para chefiar sua Casa Civil. Qual dos dois seria o convidado?

— O que atender — disse Dilma.
Outros dizem que a decisão já estava tomada. Paulo Bernardo era cotado para ser o escolhido, mas tinha a contagem de cromossomos errada. Dilma queria alguém o mais diferente do Palocci possível. Ou seja, loira e bonitinha. Paulo Bernardo é um articulador político experimentado e orientará sua mulher nessa área, o que significa que algumas das mais importantes confabulações da República serão feitas na mesa de café do casal. Frases como “Passe o pão” poderão adquirir significados até agora insuspeitados.
Cresce a presença feminina no gabinete da Dilma e é possível que até o fim do seu mandato só sobre, como homem, o ministro da Defesa, Nelson Jobim, que passaria a participar das reuniões do Ministério em uniforme de campanha, por precaução.
COMPARAÇÕES
Uma das vantagens de envelhecer (ainda estou procurando as outras) é que cresce, por assim dizer, o nosso estoque de termos de comparação. Por exemplo: quem acompanha o futebol há muito tempo tem mais parâmetros para concordar ou não que Ronaldo foi o maior jogador brasileiro de todos os tempos, depois do Pelé.
O que não dá para aceitar é que tirem o Pelé do páreo, alegando que o futebol do seu tempo era outro e que história antiga não vale, como fazem certos exagerados. Está certo, para quem não o viu jogar, o Pelé já deixou de ser história e virou mito — mesmo que um mito bem documentado — e os mitos não costumam servir de parâmetros para mortais.
Eu vi jogar o Pelé (não, não é verdade que também vi o Friedenreich) e posso atestar que: 
1. ele já pegou o futebol duro, de pegada no calcanhar, que enfrentam os atacantes de hoje;
2. o mito corresponde à realidade do que ele fazia em campo; 
3. ele era mais completo do que o Ronaldo.
Nada contra as homenagens ao Ronaldo, um centroavante extraordinário que merece todas as festas. Mas sem comparações impensadas.

por Luis Fernando Verissimo

A estraga-prazeres

"Não foi bem assim..." é uma frase que se ouve muito por aqui. Não sei se em Portugal também, mas no Brasil é comum. Geralmente vem depois do relato entusiasmado de um fato em que a exatidão foi sacrificada pelo impacto. Uma maneira de não dizer "é mentira" mas sim, amavelmente, que é exagero.

Muitos fatos da nossa história ficaram na história na sua versão exagerada. A começar pela proclamação da Independência, que não teve a grandiloquência do relato oficializado nem o clima épico do retrato famoso.
Sucessivas revisões do nosso fato inaugural concluíram que, decididamente, ele não foi bem assim.
Na verdade são poucos os mitos fundamentais de qualquer nação que resistem a uma revisão. Na maioria dos casos, o exagero é que fez o mito. Se não foi bem assim, não interessa. O que realmente foi não tem nenhuma serventia histórica.
Se a frase está sempre ameaçando desmontar as versões heroicas da História, nas relações pessoais do dia a dia ela também age como uma estraga-prazeres. Quem de nós não prefere ouvir o relato dramático e bem contado, mesmo que não inteiramente verdadeiro, de qualquer fato? Preferimos o impacto à exatidão.
E nada acaba com o clima de revolta ou euforia diante do último escândalo ou fofoca como alguém, com um sorriso superior, dizer "não foi bem assim..." E revelar os tediosos detalhes que desmentem ou mitigam a versão entusiasmada e bem mais divertida.
O sorriso irônico vem embutido na frase pois dá a entender que seu final, não dito mas implícito, é "como sempre". Ou seja, os fatos sempre têm dois relatos, com ou sem nuances e qualificativos. E nada, nunca, é exatamente bem assim.
Explicado
(Da série "Poesia numa hora destas?!")
Explicado 
por que o mundo 
está neste estado 
de se lamentar. 
A Terra,gente,é bipolar!

por Luis Fernando Verissimo

Bananas

Li que a família de Jacobo Arbenz lançou uma campanha para recuperar o seu nome, na Guatemala. E nós com isso? Nada. Só que tive um assomo de nostalgia ao ler a notícia, por uma época em que a história era mais simples e seus vilões e vítimas mais facilmente identificáveis. Talvez só na Guerra Civil Espanhola se soubesse, com a mesma nitidez, qual era o lado “bom” de uma questão — antes, claro, de os nazistas surgirem como os bandidos indiscutíveis do século.

A Guatemala era o protótipo da “banana republic”. Sua dona era a americana United Fruit Company, que lá mantinha não só vastas plantações de bananas mas grandes extensões de terra ociosa, como investimento e como garantia para futuras expansões. 
O domínio da United Fruit sobre a política e a economia da Guatemala trazia escasso proveito social para o país. Jacobo Arbenz foi eleito livremente prometendo uma reforma agrária que fatalmente atingiria as propriedades americanas.
A United Fruit tinha notórias ligações políticas e um ativo lobby em Washington e não foi difícil, com a Guerra Fria esquentando, convencer o presidente Eisenhower de que Arbenz significava um regime comunista no quintal dos Estados Unidos.
A CIA foi autorizada a intervir e derrubou Arbenz com menos pudor do que mostraria em intervenções futuras, na mesma zona — como em El Salvador — e no resto da América Latina e do mundo. O golpe ficou como um exemplo clássico, sem disfarces e sofismas, do intervencionismo cru em ação. Os disfarces, os sofismas e a retórica geopolítica viriam depois. No caso da Guatemala era um povo contra a prepotência dos bananeiros. Simples.
Uma das consequências do golpe pró-United Fruit e da instalação de um regime apoiado pelos americanos foi uma sangrenta guerra civil que durou mais de 30 anos, com diversos grupos lançando-se na clandestinidade, milhares de mortos e atrocidades de lado a lado.
O fato de a família de Arbenz estar buscando sua reabilitação indica que na história oficial do país ele ficou como vilão, não como vítima. Já a United Fruit não teve nada a ver com a história. Aliás, nem existe mais. Seu simpático nome agora é “Chiquita Brands” e seu produto principal, a “Chiquita Banana”.