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Crônica semanal de Luis Fernando Veríssimo

O caminho
Um espectro ronda a Europa e o resto do mundo onde a receita neoliberal contra a crise é austeridade para os pobres e liberdade total para os ricos enriquecerem cada vez mais. O espectro tem nome e sobrenome: Thomas Piketty. É um jovem economista francês cujo livro “O capital no século XXI” é um best-seller internacional e está apavorando muita gente.

Não há resposta para a sua tese de que a ideia de que basta deixar os ricos se lambuzarem que sobrará para os pobres — todos se beneficiarão e a desigualdade acabará no planeta — é furada como um donut — a não ser chamá-lo de um marxista com preconceitos previsíveis. Mas justamente o que assusta em Piketty é que sua tese foge da ortodoxia marxista e é baseada em retrospectiva academicamente irretocável e fatos e números inegáveis, não em ideologia.
Ela apenas prova que a lição dos últimos anos, quando o capital financeiro se adonou do mundo, é não apenas que o caminho tomado está errado e só levará a mais desigualdade como todos os argumentos usados para justificá-lo são falsos.
A concentração de renda não se deve a nenhum tipo de meritocracia, já que vem principalmente de dinheiro herdado ou produzido pelo próprio dinheiro, sem nenhum proveito social, e nem as oligarquias mais “esclarecidas” estão prontas a renunciar à sua capacidade de autogeração, que, no caso, é a possibilidade de se autorremunerar ao infinito.

Thomas Piketty
A continuar assim, diz Piketty, a história do capitalismo no século XXI será a do crescente confronto com a desigualdade e com a revolta que ela, cedo ou tarde, mas fatalmente, provocará.
Gosto daquela cena num filme dos irmãos Marx em que Groucho, no papel de um general, prepara-se para explicar a seus comandados o significado de um mapa na parede. “Uma criança de 3 anos entenderia este mapa”, diz Groucho. E, depois de estudar o mapa por alguns minutos: “Tragam uma criança de três anos!”
Sem querer diminuí-lo — ao contrário — acho que monsieur Piketty é a criança de 3 anos desta história. Ele traz uma visão nova de uma situação que todo mundo está vendo mas nem todo mundo enxerga ou quer enxergar, e que a criança de 3 anos veria com a mesma simplicidade, sem os mesmos recursos do francês.
Mas também desconfio que, passado o primeiro susto, a tese de Piketty terá o mesmo efeito da explicação da hipotética criança de 3 anos — muito pouco. A lição que Piketty aprendeu ou apreendeu no passado estava evidente. Se o caminho errado continua o mesmo é porque interessa economicamente e politicamente a quem tem o poder e não quer distribuí-lo como se distribui renda. É um caminho para o desastre conscientemente assumido.

Crônica dominical de Luis Fernando Veríssimo

Progressão
A senhora, quem é?
— A esposa, doutor.
— Muito bem. Conte-nos o que houve.
— Não sei, doutor. Ele chegou em casa, depois de esperar horas na fila de um banco, ser assaltado no ônibus, passar pelo supermercado sem poder comprar nada e começado a ver o “Jornal Nacional”.
— E foi ficando vermelho. Entendi. Ele está cheio. Ou, para usar o termo científico, pê da cara.
— É grave, doutor?
— Se conseguirmos controlar a tempo, não. O perigo é ele passar para uma fase mais aguda, quando em vez de vermelho ficará fulo.
— Fulo?
— Uma cor indefinida, entre o vermelho e o roxo. Nesta fase, o importante é ele ficar em isolamento, sem receber notícia de espécie alguma, principalmente do Brasil.
— O que eu posso fazer, doutor?
— Fale com ele sobre a seleção, sobre como o Felipão parece estar acertando e como faremos bonito na Copa. E outras coisas boas. Só cuidando com a dosagem, para não parecer gozação. Os efeitos colaterais podem ser sérios.
— O que pode acontecer?

Luis Fernando Veríssimo - do que fomos cúmplices involuntários


Quem defende as barbaridades cometidas pelo o regime militar no Brasil costuma invocar os mortos pela ação dos que contestavam o regime. Assim reduz-se tudo a uma contabilidade tétrica: meus mortos contra os seus.

Pode-se discutir se a luta armada contra o poder ilegítimo foi uma opção correta ou não, mas não há equivalência possível entre os mortos de um lado e de outro. Não apenas porque houve mais mortes de um só lado, mas por uma diferença essencial entre o que se pode chamar, com alguma literatice, de os arcos de cumplicidade.
O arco de cumplicidade dos atentados contra regime era limitado à iniciativa, errada ou não, de grupos ou indivíduos clandestinos. Já o arco de cumplicidade na morte de contestadores do regime era enorme, era o Estado brasileiro.
Quando falamos nos “porões da ditadura” onde pessoas eram seviciadas e mortas, nem sempre nos lembramos que as salas de tortura eram em prédios públicos, ou pagas pelo poder publico — quer dizer, por todos nós.
A cumplicidade com o que acontecia nos “porões” em muitos casos foi consentida, mesmo que disfarçada. Ainda está para ser investigada a participação de empresários e outros civis na chamada Operação Bandeirantes durante o pior período da repressão, por exemplo. Mas a cumplicidade da maioria com um Estado assassino só existiu porque o cidadão comum pouco sabia do que estava acontecendo.
A contabilidade tétrica visa a nivelar o campo dessa batalha retroativa pela memória do país e igualar os dois arcos de cumplicidade. Não distingue os mortos nem como morreram. Todas as mortes foram lamentáveis, mas os mortos nas salas de martírio do Estado ou num confronto com as forças do Estado na selva em que ninguém sobreviveu ou teve direito a uma sepultura significam mais, para qualquer consciência civilizada, do que os outros. O que se quer saber, hoje, é exatamente do que fomos cúmplices involuntários.

Crônica semanal de Luis Fernando Veríssimo


Eu e ele, por Luis Fernando Veríssimo

No vertiginoso mundo dos computadores o meu, que devo ter há uns quatro ou cinco anos, já pode ser definido como uma carroça. Nosso convívio não tem sido muito confortável. Ele produz um texto limpo, e é só o que lhe peço.

Desde que literalmente metíamos a mão no barro e depois gravávamos nossos símbolos primitivos com cunhas em tabletes até as laudas arrancadas da máquina de escrever para serem revisadas com esferográfica, não havia maneira de escrever que não deixasse vestígio nos dedos.
Nem o abnegado monge copiando escrituras na sua cela asséptica estava livre do tinteiro virado. Agora, não. Damos ordens ao computador, que faz o trabalho sujo por nós. Deixamos de ser trabalhadores braçais e viramos gerentes de texto. Ficamos pós-industriais. Com os dedos limpos.
Mas com um custo. Nosso trabalho ficou menos respeitável. O que ganhamos em asseio perdemos em autoridade. A um computador não se olha de cima, como se olhava uma máquina de escrever. Ele nos olha na cara. Tela no olho.
A máquina de escrever fazia o que você queria, mesmo que fosse a tapa. Já o computador impõe certas regras. Se erramos, ele nos avisa. Não diz “Burro!”, mas está implícito na sua correção. Ele é mais inteligente do que você. Sabe mais coisas, e está subentendido que você jamais aproveitará metade do que ele sabe.
Que ele só desenvolverá todo o seu potencial quando estiver sendo programado por um igual. Isto é, outro computador. A máquina de escrever podia ter recursos que você também nunca usaria (abandonei a minha sem saber para o que servia “tabulador”, por exemplo), mas não tinha a mesma empáfia, o mesmo ar de quem só aguenta os humanos por falta de coisa melhor, no momento.
Eu e o computador jamais seríamos íntimos. Nosso relacionamento é puramente profissional. Mesmo porque, acho que ele não se rebaixaria ao ponto de ser meu amigo. E seu ar de reprovação cresce. Agora mesmo, pedi para ele enviar esta crônica para o jornal e ele perguntou: “Tem certeza?”

Crônica semanal de Luis Fernando Veríssimo

Arrependimento
Ironia climática: em meio a uma das maiores estiagens da nossa História, estreia no Brasil o filme “Noé”, sobre o Dilúvio.

Noé, filho de Lameque, é uma das figuras mais controvertidas da Bíblia. Na verdade, a Bíblia mal começa e já nos apresenta seus dois personagens mais intrigantes, Caim e Noé.
É evidente, pelo que se lê em Gênesis, que Deus tinha outros planos para Caim, não o de ser o primeiro vilão e o primeiro desterrado do mundo, mas um dos fundadores da aventura humana sobre a Terra.
Deus amaldiçoa Caim com uma marca que o identifica como assassino do seu irmão, mas também o protege dos vingadores de Abel (“Qualquer que matar a Caim”, avisa o Senhor, “sete vezes será castigado”) e permite que ele se case (até hoje nenhuma exegese da Bíblia conseguiu explicar de onde, de que criação paralela, saiu a mulher de Caim) e procrie, e construa uma cidade, a que dá o nome do seu primogênito Enoque, e inicie uma prole que incluirá Jabal, “pai dos que habitam em tendas e têm gado”, e Jubal, “pai de todos que tocam harpa e órgão”.
Nada mal para um fratricida: acabar como patriarca, construtor de cidades e precursor da pecuária e das artes. Abençoado por Deus, pode-se dizer, com a marca da maldade.



Se o Deus da Bíblia camuflou seu apoio a

Luis Fernando Veríssimo

Lugar ideal

Um homem resolve fugir da cidade grande em que vive e padece. Bota família e bagagem num carro e ruma para... Para onde? Ele não sabe. Vai para o interior do país. Depois para o interior do interior do país. A família se impacienta. Aonde ele quer chegar?
A cada cidadezinha que passam, a mulher pergunta “É aqui?” e o homem diz “Não”. A cada lugarejo que cruzam, as crianças, esperançosas, perguntam. “Aqui não serve?” e o homem diz “Não”. E continua a viagem, rumo ao interior do interior do interior do país. Até que entram numa cidade minúscula, uma cidade de um poste só. E o homem declara: “É aqui que nós vamos morar!”
A família não entende. O que aquela cidade tem de especial? Por que logo ali? E o homem responde:
— Vocês não notaram?
— O quê?
— Os cachorros correndo atrás do carro! Aqui cachorros ainda correm atrás de carros! É aqui que nós vamos ficar!
Em outra versão da mesma história, o homem à procura de um lugar perfeito para morar chega numa cidadezinha no interior do interior do interior do interior do país, entra no único bar da cidade e pede:
— Uma Coca-Cola, por favor.
E o dono do bar pergunta:
— Uma o quê?
— É AQUI! — grita o homem.
(Na verdade, como adepto da Coca diet, meu ideal não seria o mesmo do nosso hipotético buscador. Mas entendo a sua alegria.)
Numa lista recém-publicada de países ideais para se viver, o primeiro lugar foi para a Nova Zelândia, seguida da Suíça, da Islândia e da Holanda. Neozelandeses, suíços, islandeses e holandeses morariam nos melhores lugares do mundo, julgados, eu suponho, pelo parâmetro algo impreciso da “qualidade de vida”.
Imagino que não entre na cotação o grau de chateação cotidiana nesses paraísos, o que desclassificaria pelo menos três dos quatro. Só se salvaria a Holanda, onde a tolerância com o comportamento individual dos cidadãos em matéria de sexo e drogas é, no mínimo, uma garantia contra o tédio. Pois deveria contar pontos na avaliação dos lugares ideais para se viver o quesito “o que fazer nos sábados à noite”.

Luis Fernando Veríssimo é escritor.

Crônica semanal de Luis Fernando Veríssimo

Um dia você se olhará no espelho e terá uma revelação estarrecedora. Sua mulher está dormindo com outro homem! Depois descobrirá que o que vê no espelho não é outro, é você mesmo. Só que, por uma razão inexplicável, você está mais velho.
Os espelhos são de uma franqueza brutal. Na era das relações públicas, é inadmissível que a sua imagem trate você com tanta crueza. É inaceitável que o espelho lhe diga “Você está com 50 (ou 60 ou, meu Deus, 70) anos assim, na cara, mesmo que quem diga seja a sua própria cara. E de manhã, na hora em que, ainda amarrotado pelo sono e antes de botar o rosto que usará durante o dia, você está mais vulnerável.
Se a cena pudesse ser confiada a um profissional da comunicação, seria diferente. Infelizmente, as piores notícias são sempre dadas por amadores. Num mundo mais justo, sua imagem no espelho poderia ser apresentada por um especialista em marketing e, em vez da sua cara no espelho revelador, você veria, por exemplo, a Patrícia Poeta.
— Patrícia! Você por aqui?
— Vim para lhe dizer que você ficará muito bem, com cabelo grisalho. Aumentará sua credibilidade. Será ótimo para os negócios.
— Eu acho que estou perdendo cabelos.
— E daí? Cabelo demais é desperdício. Os fios que ficam são os melhores.
— Será?
— As rugas realçarão seu caráter. E se um queixo já enfatiza sua masculinidade, imagine dois.
— Patrícia. Cabelos grisalhos, rugas, queixo duplo... Você quer me dizer que eu estou ficando... Velho?
— Maduro.
Ou então você deveria poder mergulhar de ponta-cabeça no espelho para descobrir como seria sua vida do outro lado dos 50 (ou 60 ou, meu Deus, 70). E se consolar com o fato de que ela não será muito diferente da vida que você leva hoje — com alguns reajustes. Você terá que evitar carnes brancas, morenas e mulatas, principalmente depois das refeições. E deixar de frequentar motéis com escadaria. Fora isso... Que venham as rugas!

Crônica dominigal de Luis Fernando Verissímo


Quando eu era garoto, louco por futebol, tinha time em vários lugares do mundo. Só os conhecia pelo noticiário nos jornais, muitas vezes nem sabia a cor das suas camisetas. Eu era River na Argentina, Tottenham Hotspur na Inglaterra, Racing (que depois virou Paris Saint-Germain) na França, Internazionale (claro) na Itália, e tinha time até, não duvido, na Cochinchina.

É engraçado isso, viver a realidade alheia como se fosse a nossa. No caso dos times de futebol, a escolha se baseava em simpatias fortuitas, nada racionais. Por que Tottenham Hotspur e não Arsenal? Que possível identificação eu poderia ter com meu time na Ucrânia?
Já as outras escolhas de lados para os quais torcer, que faríamos ao longo da vida, seriam mais lógicas, ou mais explicáveis. Viveríamos vicariamente as histórias dos outros porque projetaríamos nelas as nossas convicções, ou a nossa própria história irresolvida.
Exemplo prototípico disso é a Guerra Civil Espanhola, na qual muita gente foi lutar contra ou a favor da insurreição de Franco, mas que teve torcida calorosa em todo o mundo.
Você se definia com sua escolha de lado na Espanha. Nunca tinha sido tão fácil identificar o inimigo — ou o amigo, para quem via na Espanha insurrecta um bastião contra o bolchevismo.
De Mussolini ainda não se sabia se era um bufão inconsequente ou uma ameaça, Hitler estava recém-começando a fazer das suas. Franco era, portanto, a primeira personificação nítida do assomo fascista na Europa. “No pasarán!”, o grito de guerra dos legalistas espanhóis, foi, mesmo à distância, o grito de guerra de uma geração. Passaram, mas isso é outra história.
No Brasil vivemos vicariamente a história de outras países americanos como se fosse a nossa, ou como se decidisse a nossa. Cuba, por exemplo, está no centro do debate esquerda/direita no país há anos.
É um exemplo admirável de resistência à prepotência americana e de sociedade solidária em que saúde e educação públicas são prioritárias ou um exemplo lamentável de país totalitário que prende seus críticos e cujos benefícios sociais não compensam a falta de liberdade, dependendo do seu lado.
A polarização das opiniões não permite que se torça pelo meio-termo, também conhecido como a visão de cima do muro: admirar o admirável e lamentar o lamentável, sem esquecer que o que se vê de longe são as versões e não os fatos.
Muitos vibraram com a ascensão de Allende ao poder no Chile como se ele tivesse chegado ao Palácio do Planalto, e vê-se que, hoje, muitos acham que o que o Brasil precisa é de um bom pinochetaço. Também vivemos vicariamente na Venezuela, onde a história acontece em extremos tais que tornam difícil sequer identificar os lados em conflito, quanto mais escolher um para torcer.
Quando eu era garoto não havia essas hesitações. O River era o time da elite argentina? Aquilo não me interessava. Era o meu time e pronto.

Crônica semanal de Luis Fernando Veríssimo

Tem havido protestos de grupos religiosos contra a reencenação de “Jesus Cristo Superstar”, em São Paulo. Pensei que essa guerra já tivesse terminado, na ingênua suposição de que até as mentes mais obscuras, com o tempo, se iluminam — ou pelo menos se dão conta do seu ridículo.
A ópera-rock de Andrew Lloyd Webber e de Tim Rice já tem quase 50 anos. Deu um belo filme de Norman Jewison, e é um relato emocionante dos últimos dias de Jesus Cristo que deve ter motivado mais jovens a se interessar pela sua história do que qualquer catecismo da Igreja.
Quem se horroriza com a versão roqueira de Cristo ignora a tradição da arte renascentista de atualizar as cenas da Paixão, representando-as com roupas e interiores da época dos artistas, sem que isto fosse considerado blasfêmia e provocasse protestos. 
Há alguns anos a Igreja conseguiu que fosse proibida a exibição no Brasil do filme “Je vous salue, Marie”, do Jean-Luc Godard. Motivo: uma versão moderna da Virgem Maria aparecia com os seios nus. Ignorada pelos ignorantes, no caso, foi outra tradição da arte religiosa, a das virgens lactantes, que aparecem em várias pinturas com os seios à mostra amamentando o menino Jesus.
No seu filme, Godard humanizava a figura de Maria e trazia para atualidade, e para uma reflexão intelectual adulta, o mistério de dogmas como o da Anunciação e o da Concepção Imaculada. De novo, uma expressão da experiência religiosa muito mais consequente e inspiradora do que a retrógrada instrução das igrejas.
INJUSTIÇA

Vallodolid forever

por Luis Fernando Veríssimo

Valladolid é uma cidade de 300 mil habitantes no Noroeste da Espanha. Foi lá que se casaram e reinaram os monarcas católicos Isabel e Fernando, foi lá que viveu Miguel de Cervantes e morreu Cristóvão Colombo.
E foi lá que em 1550 e 1551, diante de uma junta de doutores e teólogos convocada pelo rei Carlos V, o historiador eclesiástico Juan Ginés de Sepúlveda e o frei Bartolomé de Las Casas se reuniram para debater a colonização espanhola do Novo Mundo e o que fazer com seus nativos, além de catequizá-los.
Las Casas voltara do Novo Mundo e tinha uma visão humanitária das suas populações subjugadas. Pregava a sua cristianização benévola. Sepúlveda era um escolástico sem experiência fora do mundo acadêmico e um seguidor da teoria aristotélica segundo a qual seres inferiores são naturalmente escravizáveis.
Assim, para Sepúlveda, os nativos poderiam ser ao mesmo tempo cristãos, para o caso de terem almas a serem salvas, e escravos, para ajudar na pilhagem da sua própria terra.
No famoso debate de Valladolid o Império espanhol pretendia fazer um exame de consciência depois dos excessos da conquista, uma espécie de faxina depois da chacina. O que Las Casas e Sepúlveda estavam realmente discutindo era se índio é gente ou não é gente e, portanto, qual era o tamanho da culpa dos conquistadores.

Frei Bartolomé de Las Casas

O fato de os nativos terem almas que respondiam à catequese não provava nada; na época também se discutia, com o mesmo ardor intelectual, se bicho tinha ou não tinha alma. Convencionou-se que Las Casas ganhou o debate, pois tinha os melhores sentimentos cristãos ao seu lado, mas Sepúlveda ficou com a razão.
A pilhagem do Novo Mundo continuou, com a cumplicidade involuntária dos nativos — e continua até hoje. O debate de Valladolid se eternizou. Afinal, os miseráveis do hemisfério são gente ou não são gente?
Os bons sentimentos cristãos de Las Casas impediram que a divisão entre saqueadores e saqueados no continente se aprofundasse ou só serviram para encobrir o abismo com o manto da caridade inútil, que só satisfaz o caridoso?
Por que será que todas as tentativas de romper esta maldição no hemisfério acabam em golpe ou farsa, com os eventuais insurgentes fazendo o mesmo papel de bichos exóticos que os nativos faziam diante dos colonizadores do século 16?
Conforme o adágio, não existe pecado abaixo da linha do Equador. Henry Kissinger, sem saber, fez uma adaptação geopolítica da frase quando disse que ninguém faz história no sul do mundo. O que é outra maneira de duvidar que aqui haja gente, ou pelo menos gente consequente. Talvez por modéstia, não se lembrou de dizer que quando aparece um decidido a não ser mais escravo, como Allende no Chile, é rapidamente abatido.

O incrível e inacreditável Luis Fernando Veríssimo

“Incrível” e “inacreditável” querem dizer a mesma coisa — e não querem. “Incrível” é elogio. Você acha incrível o que é difícil de acreditar de tão bom. Já inacreditável é o que você se recusa a acreditar de tão nefasto, nefário e nefando — a linha média do Execrável Futebol Clube.
Incrível é qualquer demonstração de um talento superior, seja o daquela moça por quem ninguém dá nada e abre a boca e canta como um anjo, o do mirrado reserva que entra em campo e sai driblando tudo, inclusive a bandeirinha do córner, o do mágico que tira moedas do nariz e transforma lenços em pombas brancas, o do escritor que torneia frases como se as esculpisse.
Inacreditável seria o Jair Bolsonaro na presidência da Comissão de Direitos Humanos da Câmara em substituição ao Feliciano, uma ilustração viva da frase “ir de mal a pior”.
Incrível é a graça da neta que sai dançando ao som da Bachiana nº 5 do Villa-Lobos como se não tivesse só cinco anos, é o ator que nos toca e a atriz que nos faz rir ou chorar só com um jeito da boca, é o quadro que encanta e o pôr de sol que enleva.
Inacreditável é, depois de dois mil anos de civilização cristã, existir gente que ama seus filhos e seus cachorros e se emociona com a novela e mesmo assim defende o vigilantismo brutal, como se fazer justiça fosse enfrentar a barbárie com a barbárie, e salvar uma sociedade fosse embrutecê-la até a autodestruição.
Incrível, realmente incrível, é o brasileiro que leva uma vida decente mesmo que tudo à sua volta o chame para o desespero e a desforra.
Inacreditável é que a reação mais forte à vinda de médicos estrangeiros para suprir a falta de atendimento no interior do Brasil, e a exploração da questão dos cubanos insatisfeitos para sabotar o programa, venha justamente de associações médicas.
Incrível é um solo do Yamandu.
Inacreditável é este verão.
Luis Fernando Veríssimo é escritor.

Crônica semanal de Luis Fernando Veríssimo

“Incrível” e “inacreditável” querem dizer a mesma coisa — e não querem. “Incrível” é elogio. Você acha incrível o que é difícil de acreditar de tão bom. Já inacreditável é o que você se recusa a acreditar de tão nefasto, nefário e nefando — a linha média do Execrável Futebol Clube.

Incrível é qualquer demonstração de um talento superior, seja o daquela moça por quem ninguém dá nada e abre a boca e canta como um anjo, o do mirrado reserva que entra em campo e sai driblando tudo, inclusive a bandeirinha do córner, o do mágico que tira moedas do nariz e transforma lenços em pombas brancas, o do escritor que torneia frases como se as esculpisse.
Inacreditável seria o Jair Bolsonaro na presidência da Comissão de Direitos Humanos da Câmara em substituição ao Feliciano, uma ilustração viva da frase “ir de mal a pior”.
Incrível é a graça da neta que sai dançando ao som da Bachiana nº 5 do Villa-Lobos como se não tivesse só cinco anos, é o ator que nos toca e a atriz que nos faz rir ou chorar só com um jeito da boca, é o quadro que encanta e o pôr de sol que enleva.
Inacreditável é, depois de dois mil anos de civilização cristã, existir gente que ama seus filhos e seus cachorros e se emociona com a novela e mesmo assim defende o vigilantismo brutal, como se fazer justiça fosse enfrentar a barbárie com a barbárie, e salvar uma sociedade fosse embrutecê-la até a autodestruição.
Incrível, realmente incrível, é o brasileiro que leva uma vida decente mesmo que tudo à sua volta o chame para o desespero e a desforra.
Inacreditável é que a reação mais forte à vinda de médicos estrangeiros para suprir a falta de atendimento no interior do Brasil, e a exploração da questão dos cubanos insatisfeitos para sabotar o programa, venha justamente de associações médicas.
Incrível é um solo do Yamandu.
Inacreditável é este verão.

Crônica

É o calor

por Luis Fernando Veríssimo

Alguém tem que assumir a culpa, minha filha! Sensação térmica de 51 graus, alguém tem que ser responsável’
Pode acontecer. A moça do tempo na TV entra no bar com um grupo de amigos. É recebida com óbvio desconforto pelos frequentadores do bar. Ouve-se um zum-zum-zum de desaprovação à sua presença. O grupo da moça ocupa uma mesa. Depois de algum tempo, um homem da mesa ao lado não se contém e pergunta:
— Você não é a moça do tempo, na TV?
A moça diz que é, sorrindo, mas o homem não sorri. Pergunta:
— Até quando vai esse calor?

— Pois é — diz a moça, ainda sorrindo. — Está difícil de prever. Tem uma zona de pressão na...
— Não — interrompe o homem. — Não me venha com zona de pressão. Chega de enrolação.

Uma mulher de outra mesa se manifesta:
— Há dias que você põe a culpa pelo calor nessa zona de pressão. E não toma providências.

— Minha senhora, eu...

Outros começam a gritar.

Crônica semanal de Luis Fernando Veríssimo

Não foram os americanos que inventaram o shopping center. Seus antecedentes diretos são as galerias de comércio de Leeds, na Inglaterra, e as passagens de Paris pelas quais flanava, encantado, o Walter Benjamin.
Ou, se você quiser ir mais longe, os bazares do Oriente. Mas foram os americanos que aperfeiçoaram a ideia de cidades fechadas e controladas, à prova de poluição, pedintes, automóveis, variações climáticas e todos os outros inconvenientes da rua.
Cidades só de calçadas, onde nunca chove, neva ou venta, dedicadas exclusivamente às compras e ao lazer — enfim, pequenos (ou enormes) templos de consumo e conforto. Os xópis são civilizações à parte, cuja existência e o sucesso dependem, acima de tudo, de não serem invadidas pelos males da rua.
Dentro dos xópis você pode lamentar a padronização de lojas e grifes, que são as mesmas em todos, e a sensação de estar num ambiente artificial, longe do mundo real, mas não pode deixar de reconhecer que, se a americanização do planeta teve seu lado bom, foi a criação desses bazares modernos, estes centros de conveniências com que o Primeiro Mundo — ou pelo menos uma ilusão de Primeiro Mundo — se espraia pelo mundo todo.
Os xópis não são exclusivos, qualquer um pode entrar num xópi nem que seja só para fugir do calor ou flanar entre as suas vitrines, mas a apreensão causada por essas manifestações de massa nas suas calçadas protegidas, os rolezinhos, soa como privilégio ameaçado.
De um jeito ou de outro, a invasão planejada de xópis tem algo de dessacralização. É a rua se infiltrando no falso Primeiro Mundo. A perigosa rua, que vai acabar estragando a ilusão.
As invasões podem ser passageiras ou podem descambar para violência e saques. Você pode considerar que elas são contra tudo que os templos de consumo representam ou pode vê-las como o ataque de outra civilização à parte, a da irmandade da internet, à civilização dos xópis.
No caso seria o choque de duas potências parecidas, na medida em que as duas pertencem a um primeiro mundo de mentira que não tem muito a ver com a nossa realidade. O difícil seria escolher para qual das duas torcer. Eu ficaria com a mentira dos xópis.

Luis Fernando Veríssimo - A beleza maior

A beleza da Itália conspira contra os seus cineastas. Por mais dramáticos que sejam os filmes, eles serão sempre, antes de qualquer outra coisa, belos folhetos turísticos. E, por mais que tentem retratar a crise moral do nosso tempo, sempre acabam retratando um estilo de vida invejável, uma doce crise.
Você saía do filme seminal do Fellini sobre Roma como metáfora para o apocalipse iminente menos impressionado com a devassidão e o desespero dos seus personagens do que com o alegre rebuliço de um começo de noite na Via Veneto, e quem não queria ser Marcello Mastroianni, descrente de tudo mas comendo todas?
Os filmes do Antonioni também se esforçavam para nos dar angústia, mas nunca o vazio existencial foi tão fotogênico. Você não duvidava que os personagens de Antonioni em filmes como “A aventura”, “Noite” e “Eclipse” sofressem com a falta de sentido da vida, mas todos pareciam saídos de uma edição da “Vogue”. Eram elegantemente perdidos. E que cenários!

No filme “A grande beleza”, o diretor Paolo Sorrentino nem finge ignorar os cenários contra os quais desfilam seus personagens. Usa Roma, conscientemente, como personagem também. Convoca o cenário como cúmplice nas suas histórias cruzadas. 

E usar a beleza de Roma assim, descaradamente, é covardia. A sequência final de “A grande beleza” é a câmera passeando sob as pontes do Tevere enquanto aparecem os créditos, e no dia em que vimos o filme muita gente que normalmente já teria saído do cinema ficou no lugar para se deliciar um pouco mais com o cenário.

O personagem principal do filme, Jep Gambardella (vivido por Toni Servillo, com sua cara de nobre romano num afresco mal pintado), é o Marcello Mastroianni depois de “A doce vida”, em estado de cinismo terminal. É um escritor de um livro só, e diz para quem lhe cobra outro livro que está esperando uma “grande beleza” para inspirá-lo. Enquanto isso, vai curtindo, além dos prazeres da decadência, as pequenas belezas de um cotidiano romano. Mas a beleza maior é a própria Roma, que se não inspira o personagem certamente inspirou o diretor.

O maior defeito do filme é a sua duração. Pode-se imaginar Sorrentino agoniado com a perspectiva de ter que cortar algo que filmou e no fim decidindo incluir tudo, dane-se a metragem. Você sabe que um filme passou da hora de acabar quando começa a pensar “poderia terminar aí...” — e o filme não termina.

Há muitas cenas finais em “A grande beleza” antes do fim pra valer. E fica uma frustração: Jep lembra do seu primeiro amor e passa todo o filme fazendo mistério sobre o que ela lhe disse, certa vez, depois de um beijo à beira do mar. Vai ser a frase definitiva do filme, pensa você. E a frase não vem. Mas tudo bem. Ainda tem o passeio da câmera pelo Tevere.

Crônica semanal de Luis Fernando Veríssimo

Recebo outra carta da ravissante Dora Avante. Dorinha, como se sabe, não revela sua idade para ninguém, só diz que não é verdade que já viu o Cometa Halley passar duas vezes.
À frente do seu grupo de pressão política e carteado, as Socialaites Socialistas, que lutam pela implantação no Brasil do comunismo soviético na sua ultima etapa, a da volta ao tzarismo, Dorinha se mantém ocupada o ano inteiro, o que não a impede de fazer a coisa que mais gosta, pelo menos entre as publicáveis: viajar.
Ela ainda se lembra do tempo em que mandava fazer vestido especialmente para andar de avião, e todos os seus maridos só viajavam de paletó e gravata, e em viagem você só encontrava contribuintes da mesma categoria tributária que você, ou pelo menos do mesmo grau de sonegação, enquanto hoje...
Mas deixemos que a própria Dorinha faça a sua queixa. Sua carta veio, como sempre, escrita com tinta turquesa em papel lilás, cheirando a “Mange moi”, um perfume recentemente denunciado pelo Papa Francisco para agradar à ala conservadora da Igreja.
Caríssimo! Roto-beijos! Bons tempos em que a gente viajava não para alargar nossos horizontes culturais, mas para, na volta, dar inveja nos que não podiam. Me lembro do tempo em que não se encontrava brasileiros nem em Miami. Encontrava-se muitos cubanos, é verdade. Se por alguma razão você exclamasse ‘Jesus!’ na rua, sempre tinha um por perto que respondia ‘Sí?’
Mas os cubanos eram simpáticos, e todos anticastristas, o que me enternecia a ponto de levar vários para a cama. Hoje Miami é um subúrbio do Brasil, e Orlando sua colônia de férias. Já tive a experiência de viajar para a Flórida num avião cheio de ruidosas crianças brasileiras a caminho da Disneyworld, o que só reforçou minha convicção de que Herodes foi um incompreendido.
Na Europa também era raro se encontrar alguém falando português, inclusive em Portugal. Lembro que um dos meus maridos brasileiros, cujo nome me escapa no momento, insistiu em visitar sua conta na Suíça (era um sentimental) e descobriu que o banco o identificava como ‘El mexicano’. Na época, nem corrupto nacional era reconhecido. Hoje você não pode andar na rua em Paris ou Londres sem ouvir português por todos os lados.
Você não pode, principalmente, falar mal do grupo na mesa ao seu lado porque é quase certo que sejam de Presidente Prudente e estejam entendendo tudo. Você sabe que eu sou uma democrata e até já dei jantar pro Lula — não com a louça boa, claro — mas é preciso haver um limite! Que graça tem chegar de viagem e contar o que eu vi para minha diarista e ela dizer que a catedral de Chartres é bonita, mas não se compara ao Taj Mahal? Assim, decididamente, não dá. Da tua lamurienta Dorinha.

Crônica semanal de Luis Fernando Veríssimo


Esse horror na penitenciária do Maranhão é apenas um exemplo extremo do descaso com que são tratados os apenados no Brasil. Em geral as prisões brasileiras são sucursais do inferno, e tem sido sempre assim, não importa quem governe. O que leva a pensar se não existe, por trás da insensibilidade hereditária, outra razão para o horror. Verbas para o sistema penitenciário estão tradicionalmente entre as últimas prioridades do país, o aumento da criminalidade lota prisões inadequadas, esquecidas pelo poder público, mas não é só isso.

Haveria outra lógica, inconsciente mas não menos culpada, justificando o descaso. Chamar as prisões de infernos, como é comum, nos dá uma pista do que seja essa outra lógica. De acordo com a cosmogonia cristã, o inferno é para onde vão os pecadores — para sempre. Pecadores não merecem perdão nem compaixão, seu sofrimento é contínuo e eterno.
Existiria a convicção, nunca reconhecida mas prevalente, de que bandido tem que sofrer mesmo, que deveria ter pensado no que o esperava no inferno da prisão antes de cometer seu pecado, e que a sociedade não lhe deve a consideração que daria a um animal.


Qualquer discussão sobre direitos humanos sempre empaca na questão dos limites de consideração que merece um criminoso. É comum acusarem os que se preocupam com os direitos humanos de qualquer humano, mesmo os criminosos, de ignorarem os direitos humanos das suas vítimas. O que é um falso silogismo.
Todo humano é humano antes de ser qualquer outra coisa, inclusive um monstro. Na questão de como castigar o criminoso é que seguidamente se sente, disfarçada ou não, a nostalgia da velha e boa, e acima de tudo simples, cosmogonia: o céu para os bons, o inferno e todas as suas agonias para os maus. Presos amontoados, matando-se uns aos outros — é pena, mas quem mandou serem maus?
Penitenciárias superlotadas e violentas não são vergonhas só brasileiras, claro. O problema de como alojar apenados, tratá-los como gente e se possível reabilitá-los é internacional. Mas as cenas da barbárie no Maranhão mostraram um grau de selvageria provocado pelos anos de indiferença que espantou o mundo. Chegamos a isto. Somos os campeões do descaso e das suas consequências.

Crônica semanal de Luis Fernando Veríssimo

Há muitas maneiras de se medir progresso, ou pelo menos mudanças históricas, além dos frios números de uma economia ou além da sociologia convencional. Muitas vezes o detalhe que não é notado é o mais revelador.
O Marshall McLuhan (lembra dele?) construiu uma tese inteira em cima da importância da invenção do estribo de cavalo na história do Ocidente. O estribo significou que o aristocrata também passasse a participar das batalhas junto com o pobre soldado a pé, com tudo que isso implicava de novo em questões como relações hierárquicas — e de mortandade entre aristocratas.
A história das armas de guerra, que no fim é a história da civilização, pode ser medida em detalhes como o aumento da distância possível para se matar um inimigo, começando com o olho no olho e o tacape na mão do tempo das cavernas, passando pela espada, a lança, o arco e flecha, a catapulta, o mosquete, o fuzil, o canhão, o bombardeio aéreo, etc. e culminando no drone teleguiado, o mais longe que se pode chegar do inimigo sem precisar olhar no seu olho.
Ainda não foi tema de nenhum tratado sociológico, que eu saiba, mas a diferença entre o status do negro nas sociedades americana e brasileira, uma evidentemente racista e outra pretensamente não, pode ser encontrada em um detalhe, a quantidade de pianistas negros nos Estados Unidos em contraste com quase nenhum no Brasil.
jazz teve duas vertentes, três se você contar os blues: as bandas de rua, que desfilavam, obviamente, sem pianos, e o ragtime, que era jazz exclusivamente de piano, já tocado, lá nas origens, por músicos negros como Jelly Roll Morton.
Pianistas negros pressupõem piano em casa, dinheiro para pagar as aulas, tempo para praticar — ou seja, pressupõem uma classe média. Em Nova Orleans e em outras capitais do Sul dos Estados Unidos, em meio ao apartheid oficial, à discriminação aberta, aos linchamentos e outros horrores, desenvolveu-se uma classe média negra, paralela à branca, com identidade e poder econômico próprios.
No Brasil do racismo que não se reconhece como tal, e talvez por causa disto, não aconteceu nada parecido.
Claro, a história econômica dos dois países explica o contraste, mais do que racismo declarado ou disfarçado, mas neste detalhe a diferença fica clara. No Brasil, como nos Estados Unidos, existem grandes músicos saídos de todas as classes sociais. Mas ainda não produzimos pianistas negros em número suficiente para desmentir a nossa hipocrisia racial.