O mundo precisa de amor, mas da forma antiga sabe?
Daqueles que vem do fundo da alma.
***
Como vinha distraída, parecia que sua mão estava pedindo ajuda ao atravessar o vão das portas do elevador. Com a outra, dividia as tarefas de segurar o saco de pães e responder ao marido que já estava de volta, no saguão do prédio, e que não daria para comprar a geleia que ele havia rogado tardiamente. "Bom, se não tem outro jeito...", ele respondeu. Enfiou o telefone no bolso e, quando foi apertar o doze, viu que a luz já estava acesa e que o vizinho do mesmo andar se encontrava lá dentro com ela.
Ele segurava umas sacolas de mercado. Deu bom dia, perguntou como ela conseguia já estar ligada em tantas tarefas ao mesmo tempo logo cedo. Ela comentou que gostava da surpresa matinal de sair ainda no escuro e voltar, dez minutos depois, já no claro. Ele sorriu. "Realmente, nada como uma boa surpresa logo cedo". Ela colocou os olhos no chão e parte dos cabelos atrás da orelha enquanto notava que ele reparava nela pelo reflexo do espelho. Tornou a olhar para ele, colocando a coluna no lugar e fechando um dos olhos, como se pedisse sigilo: "sabe qual é o meu segredo? Depois eu volto pra cama e me dou mais vinte minutinhos. Só depois vou fazer minhas coisas para ir trabalhar. É a melhor parte do meu dia", e terminou ameaçando colocar o dedo indicador na frente dos lábios em sinal de discrição, mas freando o movimento pouco antes, demonstrando confiança no rapaz. E para quebrar o tom de brincadeira seguiu conversa, se estava tudo bem com ele, e ouviu um sim como resposta, que ele entraria mais tarde no trabalho por conta de uma reunião e queria aproveitar para tomar um bom café da manhã, reforçado e com calma. Levantou com uma das mãos a sacola que indicou conter um pacote de café especial e a convidou para experimentar, caso ela quisesse melhorar o despertar. Ela agradeceu e disse que, quem sabe, num outro dia.
Chegando em casa, deixou os pães na mesa da cozinha e foi encontrar o marido que terminava de fazer a barba no banheiro. Passou as mãos no rosto liso dele e ressaltou nunca enjoar do cheiro daquela loção. Pediu um beijo e foi tirar a roupa para colocar de novo o shortinho que usou para dormir. Olhou-se no espelho, ainda com a roupa da rua, depois só de calcinha, e novamente com o pijama. Descalça, foi espreguiçando-se no corredor, esticando os braços no alto e pendendo as costas para um lado e para o outro. Na cozinha, encostou-se na pia e observou seu esposo fazendo coisas, abrir o pão, checar e-mails no celular, misturar o leite e o café no copo. Coçou a nuca, escutou-o falar de umas contas, reprovar a demora deles em decidir como farão com a festa de família no natal, perguntou se ele olhou pela janela para ver o dia nascer e ele olhou para trás, para a porta da cozinha, como se atravessasse o apartamento e enxergasse o cesto de roupas sujas, e comentou ter se lembrado que esqueceu de botar para lavar a camisa que julgava importante para usar naquele dia.
Sentou-se de frente para ele buscando palavras para convidá-lo a deixar as coisas do cotidiano de lado por três minutos e falar com ela com outra postura, mais aberta, mais atenta. Queria apenas falar de sensações, do gosto da comida, do ar gelado da janela batendo no ombro. Apanhou na cabeça essas frases, mas guardou para si. Procurou sorrir e saber se ele tinha gostado dos pães. "Se tivesse aquela geleia, ia ficar ainda melhor", ele comentou ao se levantar e dar um beijo nela. Se despediram na sala e, ao vê-lo sair, colocou a cara pra fora da porta para desejar-lhe bom dia. "Amanhã, sem falta, vai ter geleia", sussurrou depois que as portas do elevador já haviam se fechado.
Do outro lado do corredor, de dentro do outro apartamento, o cheiro do café recém-preparado veio correndo avisar que tinha alguém atrás dela. "E aí? Vai dormir como sempre ou quer tentar alguma coisa nova?", inquiriu o vizinho. Ela virou o pescoço para o elevador fechado, voltou a rotação para o apartamento aberto. Recolheu a cabeça de volta para a sala, olhando para o seu "eu" de regatinha e descalça. Cogitou pegar a roupa que estava usando quando se encontraram, mas seus pés não saíram do lugar. "Quer saber? Foda-se, né", soprou baixinho para nem ela mesma escutar. E foi. Sem calçado e sem tédio. Ergueu a mão, como se pedisse para ser puxada, e os dois entraram.
Ficou lá fora só o corredor, vazio, a porta fechada do elevador e o resto do mundo todinho.Porque a gente ama se provar. |
Quem melhor personifica o Canalha?
— Briguilino (@Briguilino) 1 de maio de 2017
Ninguém ama outra pessoa pelas qualidades que ela tem, caso contrário os honestos, simpáticos e não-fumantes teriam uma fila de pretendentes batendo à porta.O amor não é chegado a fazer contas, não obedece a razão. O verdadeiro amor acontece por empatia, por magnetismo.
Ninguém ama outra pessoa porque ela é educada, veste-se bem e é fã do Caetano. Isso são só referenciais. Ama-se pelo cheiro, pelo mistério, pela paz que o outro lhe dá, ou pelo tormento que provoca. Ama-se pelo tom de voz, pela maneira que os olhos piscam, pela fragilidade que se revela quando menos se espera.
Então que ela tem um jeito de sorrir que o deixa imobilizado, o beijo dela é mais viciante do que LSD, você adora brigar com ela e ela adora implicar com você. Isso tem nome.
Você ama aquele cafajeste. Ele diz que vai e não liga, ele veste o primeiro trapo que encontra no armário. Ele não tem a maior vocação para príncipe encantado, e ainda assim você não consegue despachá-lo. Quando a mão dele toca na sua nuca, você derrete feito manteiga. Ele toca gaita de boca, adora animais e escreve poemas. Por que você ama este cara? Não pergunte para mim.
Você é inteligente. Lê livros, revistas, jornais. Gosta dos filmes dos irmãos Coen e do Robert Altman, mas sabe que uma boa comédia romântica também tem o seu valor. É bonita. Seu cabelo nasceu para ser sacudido num comercial de xampu e seu corpo tem todas as curvas no lugar (ou quase). Independente, emprego fixo, bom saldo no banco. Gosta de viajar, de música, tem loucura por computador e seu fettucine ao pesto é imbatível. Você tem bom humor, não pega no pé de ninguém. Com um currículo desse, criatura, por que diabo está sem um amor?
Ah, o amor, essa raposa. Quem dera o amor não fosse um sentimento, mas uma equação matemática: eu linda + você inteligente = dois apaixonados. Não funciona assim. Amar não requer conhecimento prévio nem consulta ao SPC. Ama-se justamente pelo que o Amor tem de indefinível. Honestos existem aos milhares, generosos tem às pencas, bons motoristas e bons pais de família, tá assim, ó! Mas ninguém consegue ser do jeito do amor da sua vida!
Ele vai à feira e diz que não comprou o mamão papaia da amada porque estava os olhos da cara. Ela diz que sem o milagroso fruto não resolve uma das maiores questões da enfezada humanidade: a prisão de ventre. Ele vibra: o papel higiênico anda um horror de tão caro. Tudo pela economia no lar doce lar.no El País
É apenas um episódio do “Casal na crise”, tirinha de humor criada e publicada por Helder Santos e Camilla Loyolla nesta página do Facebook. Ele, pernambucano, é desenhista e escritor, autor do romance “Raiar”. Ela, paulistana, assistente de direção de filmes e programas de tv. Os pombinhos, ainda sem herdeiros, habitam a cidade de São Paulo, SP.
Sim, preocupado leitor, a reforma fiscal em casa são outros quinhentos. Falo em casa de classe média-média. A nova classe C, que entrou recentemente em novíssimos costumes nunca dantes, corta com mais facilidade, a memória da carência e da carestia ajuda a saber como a vida é e como a vida era antes de pegar o elevador social etc.
Se bem que é sacanagem, seu Quinca Levy, mal provaram o gostinho... Talvez seja mais difícil ainda, talvez. “Acontece com as melhores famílias do Morumbi”, pensará o Quinca mãos-de-tesoura. “I love Paraisópolis”, diria o amigo jornalista Paulo Francis, vivo fosse, com um Butantã inteiro escorrendo pelo canto da boca charmosamente torta.
Maracanã X Cinema
Cortar na vida do casal é uma comédia. Seja mamão, papel higiênico ou a cesta básica do entretenimento. Outro dia, aqui em Copacabana (ai de mim, Copacabana), ouvi no bar e restaurante “Príncipe de Mônaco”, um papo firme sobre o mesmo tema:
“Você exagera com o Flamengo, esse Maraca está comprometendo o orçamento”, diz ele, cara de bom moço, tipo intelectual fofo, rapaz da geração Los Hermanos, 30 e poucos anos.
“Você não sai do cinema e muito menos da livraria, vamos rever essa parada!”, diz ela, vestida com uma camisa vintage do Zico.
Ele nem ai para futebol, apenas uma simpatia distante pelo Botafogo. “O Bota tem um certo existencialismo... Jean-Paul Sartre, o filósofo, era Botafogo”, juro que lembro do moço dizendo mais ou mesmo isso, mais ou menos.
Cortar na vida do casal é mais difícil que cortar no osso de retirante de quadro do Portinari. Tudo que tem amor no meio é mais doloroso. Este cronista economicamente inviável que vos escreve, por exemplo, jamais cortaria o luxo da namorada, mesmo ela ganhando muito mais que eu. Sou da escola do macho-jurubeba, aquele que sempre diz, diante de qualquer dificuldade: “O que você me pede chorando, eu faço sorrindo”.
Não há meta fiscal no amor.
Minha religião é o agrado. O agrado à mulher que amo. Mesmo aquela mulher que sequer sabe-se amada. Seu Quinca Levy, meu velho, nesse critério, sempre estouro o orçamento. Haja rombo. Lembro bem meu primeiro cheque sem fundo: ainda foca, morador de pensão no Recife, fiz a graça de levar uma paquera, até prove em contrário a mulher da minha vida àquela altura do devaneio, para almoçar no “Leite”, o mais antigo restaurante do Brasil, aberto desde 1882.
Até hoje lembro do lombo de bacalhau do Porto Imperial que sujou meu nome. Chique no último essa forma de entrar no SPC, o velho Serviço de Proteção ao Crédito, naquele governo Sarney de 80% de inflação na rabiola. E olhe que a musa do Bongi –bairro da deusa- nem era de se impressionar com essas frescuras, como descobriria depois –tão vida simples, meu Deus! Coisa de matuto do interior alucinado por mulher da capital. Pense na tristeza do Jeca!
O segundo sem fundo também foi por amor, já em SP, anos 1990, mas deixa pra lá, só lembro que o jantar com champanhe me levou meio contracheque (holerite para os paulistas) e a orquídea que mandei para a casa dela me inscreveu direto na lista dos inadimplentes do Serasa. “Eu vejo flores em você!” Dias depois, foi mais lindo ainda: o governo Collor sequestrou uma grana que eu havia recebido do Fundo de Garantia da editora Abril, lá se foi meu FGTS.
Último tango
Sou do tempo em que casal só existia na crise. Eliminava até pensamento com a serra de cortar pão e dedo de mão-de-vaca. Tudo sempre foi crise na tragédia brasileira. Depois de alguma bonança econômica, no entanto, aqui estamos de volta aos ajustes fiscais caseiros.
Sou do tempo em que casal só existia na crise. Tudo sempre foi crise na tragédia brasileira
Onde queres Paris, te darei o último forró ou rala-bucho no agreste –em vez de manteiga holandesa, como no filme com Marlon Brando, manteiga de garrafa derretidinha qual nosso amor mais gostoso. Onde queres Alpes Suíços, Garanhuns –é friozinho mesmo. E assim vamos nos acertando, quem sabe até com melhores opções no pacote para fugir do montanhoso dólar.
O importante é não deixar a crise contaminar o relacionamento amoroso. Aqui me posto como o Cupido permanente dessa causa. Donde, lembrando da tirinha genial do mamão papaia do casal Helder e Camilla, me recordo do que dizia um personagem-laxante do meu colega colunista do EL PAÍS Mario Vargas Llosa:
“Para dores de amor, nada melhor do que leite de magnésia (…). Na maior parte das vezes, os chamados males de amor, etcétera, são distúrbios digestivos, feijões duros que não digerem, peixe estragado, entupimento. Um bom purgante fulmina a loucura do amor.”
Está lá no romance “Tia Júlia e o escrevinhador”, como amo esse folhetim. Recomendo.
Na riqueza ou na pobreza, só o amor/humor é o veneno antimonotonia, o resto é desculpa dos fracos de alma que já estavam de partida –com ou sem crise!