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Rubem Alves - Se é bom ou se é mau?...

Quero contar para vocês a estória que mais tenho contado - não aconteceu nunca, acontece sempre. Um homem muito rico, ao morrer, deixou suas terras para os seus filhos. Todos eles receberam terras férteis e belas, com a exceção do mais novo, para quem sobrou um charco inútil para a agricultura. Seus amigos se entristeceram com isso e o visitaram, lamentando a injustiça que lhe havia sido feita. Mas ele só lhes disse uma coisa: "Se é bom ou se é mau, só o futuro dirá."

No ano seguinte, uma seca terrível se abateu sobre o país, e as terras dos seus irmãos foram devastadas: as fontes secaram, os pastos ficaram esturricados, o gado morreu. Mas o charco do irmão mais novo se transformou num oásis fértil e belo. Ele ficou rico e comprou um lindo cavalo branco por um preço altíssimo. Seus amigos organizaram uma festa porque coisa tão maravilhosa lhe tinha acontecido. Mas dele só ouviram uma coisa: "Se é bom ou se é mau, só o futuro dirá." No dia seguinte seu cavalo de raça fugiu e foi grande a tristeza. Seus amigos vieram e lamentaram o acontecido. Mas o que o homem lhes disse foi: "Se é bom ou se é mau, só o futuro dirá." Passados sete dias o cavalo voltou trazendo consigo dez lindos cavalos selvagens. Vieram os amigos para celebrar esta nova riqueza, mas o que ouviram foram as palavras de sempre: "Se é bom ou se é mau, só o futuro dirá." No dia seguinte o seu filho, sem juízo, montou um cavalo selvagem. O cavalo corcoveou e o lançou longe. O moço quebrou uma perna. Voltaram os amigos para lamentar a desgraça. "Se é bom ou se é mau, só o futuro dirá", o pai repetiu. Passados poucos dias vieram os soldados do rei para levar os jovens para a guerra. Todos os moços tiveram de partir, menos o seu filho de perna quebrada. Os amigos se alegraram e vieram festejar. O pai viu tudo e só disse uma coisa: "Se é bom ou se é mau, só o futuro dirá..."




Assim termina a estória, sem um fim, com reticências... Ela poderá ser continuada, indefinidamente. E ao contá-la é como se contasse a estória de minha vida. Tanto os meus fracassos quanto as minhas vitórias duraram pouco. Não há nenhuma vitória profissional ou amorosa que garanta que a vida finalmente se arranjou e nenhuma derrota que seja uma condenação final. As vitórias se desfazem como castelos de areia atingidos pelas ondas, e as derrotas se transformam em momentos que prenunciam um começo novo. Enquanto a morte não nos tocar, pois só ela é definitiva, a sabedoria nos diz que vivemos sempre à mercê do imprevisível dos acidentes. "Se é bom ou se é mau, sé o futuro dirá."


Rubem Alves - cartas de amor

Leio e releio o poema de Álvaro de Campos. Oscilo. Não sei se devo acreditar ou duvidar. Se acredito, duvido. Duvido porque acredito. Pois foi ele mesmo quem disse – ou melhor, o seu outro, o Fernando Pessoa – que ele era um fingidor. "Todas as cartas de amor são ridículas. Não seriam cartas de amor se não fossem ridículas..."
Tenho no meu escritório a reprodução de uma das telas mais delicadas que conheço, Mulher lendo uma carta, de Johannes Vermeer (1632-1675). Uma mulher, de pé, lê uma carta. O seu rosto está iluminado pela luz da janela. Seus olhos lêem o que está escrito naquela folha de papel que suas mãos seguram, a boca ligeiramente entreaberta, quase num sorriso. De tão absorta, ela nem se dá conta da cadeira, ao seu lado. Lê de pé. Penso ser capaz de reconstituir os momentos que antecedem este que o pintor fixou. Pancadas na porta interromperam as rotinas domésticas que a ocupavam. Ela vai abrir e lá estava o carteiro, com uma carta na mão. Pela simples leitura do seu nome, no envelope, ela identifica o remetente. Ela toma a carta e, com este gesto, toca uma mão muito distante. Para isto se escrevem as cartas de amor. Não para dar notícias, não para contar nada, não para repetir as coisas por demais sabidas, mas para que mãos separadas se toquem, ao tocarem a mesma folha de papel. Barthes cita estas palavras de Goethe:

Por que me vejo novamente compelido a escrever? Não é preciso, querida, fazer pergunta tão evidente, porque, na verdade, nada tenho para te dizer. Entretanto tuas mãos queridas receberão este papel...

Volto ao Álvaro de Campos. Será esta a razão do ridículo das cartas de amor – o descompasso entre o que elas dizem e aquilo que elas realmente querem fazer? Pois o propósito explícito de uma carta é dar notícias, e é por isto que elas são feitas de palavras. Mas o que elas realmente desejam realizar está sempre antes e depois da palavra escrita: elas querem realizar aquilo que a separação proíbe: o abraço. Quem quer que tente entender uma carta de amor pela análise da escritura estará sempre fora de lugar, pois o que ela contém é o que não está ali, o que está ausente. Qualquer carta de amor, não importa o que se encontre nela escrito, só fala do desejo, a dor da ausência, a nostalgia pelo reencontro.
Aquela carta fez tudo parar. A mulher fecha a porta e caminha pela casa sem nada ver, buscando uma coisa apenas, a luz, o lugar onde as palavras ficarão luminosas. Que lhe importa a cadeira? Esqueceu-se de que está grávida. Seus olhos caminham pelas palavras que saíram das mesmas mãos que a abraçaram. Seu corpo está suspenso naquele momento mágico de carinho impossível que aquele pequeno pedaço de papel abriu no tempo do seu cotidiano.
Uma carta de amor é um papel que liga duas solidões. A mulher está só. Se há outras pessoas na casa, ela as deixou. Bem pode ser que as coisas que estão nela escritas não sejam nenhum segredo, que possam ser contadas a todos. Mas, para que a carta seja de amor, ela tem de ser lida em solidão. Como se o amante estivesse dizendo: "Escrevo para que você fique sozinha...". É este ato de leitura solitária que estabelece a cumplicidade. Pois foi da solidão que a carta nasceu. A carta de amor é o objeto que o amante faz para tornar suportável o seu abandono.
Olho para o céu. Vejo a Alfa Centauro. Os astrônomos me dizem que a estrela que agora vejo é a estrela que foi, há dois anos. Pois foi este o tempo que sua luz levou para chegar até os meus olhos. O que eu vejo é o que não mais existe. E será inútil que eu me pergunte: "Como será ela agora? Existirá ainda?". Respostas a estas perguntas eu só vou conseguir daqui a dois anos, quando a sua luz chegar até mim. A sua luz está sempre atrasada. Vejo sempre aquilo que já foi... Nisto as cartas se parecem com as estrelas. A carta que a mulher tem nas mãos, que marca o seu momento de solidão, pertence a um momento que não existe mais. Ela nada diz sobre o presente do amante distante. Daí a sua dor. O amante que escreve alonga os seus braços para um momento que ainda não existe. A amante que lê alonga os seus braços para um momento que não mais existe. A carta de amor é um abraçar do vazio...
"Ainda bem que o telefone existe", retrucarão os namorados modernos, que não mais têm de viver o amor no espaço das ausências. Engano. Um telefonema não é uma carta falada. Pois lhe falta o essencial: o silêncio da solidão, a calma da caneta pousada sobre a mesa que espera e escolhe pensamentos e palavras. O telefone põe a solidão a perder. Num telefonema a gente nunca diz aquilo que se diria numa carta. Por exemplo: "Eu ia andando pela rua quando, de repente, vi um ipê-rosa florido que me fez lembrar aquela vez...". Ou: "Relendo os poemas de Neruda encontrei este que, imagino, você gostará de ler...".
A diferença entre a carta e o telefone é simples. O telefone é impositivo. A conversa tem de acontecer naquele momento. Falta-lhe o ingrediente essencial da palavra que é dita sem esperar resposta. E, uma vez terminado, os dois amantes estão de mãos vazias.
Mas a mulher tem nas mãos uma carta. A carta é um objeto. Se não tivesse podido recolher-se à sua solidão, ela poderia tê-la guardado no bolso, na deliciosa espera do momento oportuno. O telefonema não pode esperar. A carta é paciente. Guarda as suas palavras. E, depois de lida, poderá ser relida. Ou simplesmente acariciada. Uma carta contra o rosto – poderá haver coisa mais terna? Uma carta é mais que uma mensagem. Mesmo antes de ser lida, ainda dentro do envelope fechado, tem a qualidade de um sacramento: presença sensível de uma felicidade invisível...



Estes pensamentos me vieram depois de ler as cartas de um jovem cientista, Albert Einstein, à sua amada, Mileva Maric'. Foram elas que me fizeram ir ao poema do Álvaro de Campos: ridículas. Todas as cartas de amor são ridículas. Acho que os editores pensaram o mesmo. E como desculpa para o seu gesto indiscreto de tornar público o ridículo que era segredo de dois amantes, escreveram uma longa e erudita introdução que transformou as ridículas cartas de amor em documentos da história da ciência. Valem porque, misturadas ao ridículo de que os amantes se alimentam, se encontram pistas que dão aos historiadores as chaves para a compreensão das "fontes do desenvolvimento emocional e intelectual dos correspondentes". Não sabendo o que fazer com o amor (ridículo), colocaram-nas na arqueologia da ciência.
Foi então que o quadro de Vermeer me fez ver a cena que as cartas escondem. E a mulher com a carta na mão e uma criança na barriga? Ela bem que poderia ser Mileva, grávida de uma filha ilegítima, que foi dada para adoção, e sobre quem nada se sabe. A criança foi dada. Mas as cartas foram guardadas. E que razões poderia ter uma pessoa para guardar cartas ridículas? O seu rosto absorto e os lábios entreabertos nos dão a resposta: para aqueles que amam as ridículas cartas de amor são sempre sublimes.
Volto ao poema do Álvaro de Campos e encontro lá o que faltava para fechar a cena: "Afinal, só as criaturas que nunca escreveram cartas de amor são ridículas".



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A crônica mais lida de Rubem Alves

A pipoca

A culinária me fascina. De vez em quando eu até me até atrevo a cozinhar. Mas o fato é que sou mais competente com as palavras que com as panelas. Por isso tenho mais escrito sobre comidas que cozinhado. Dedico-mo a algo que poderia ter o nome de "culinária literária". Já escrevi sobre as mais variadas entidades do mundo da cozinha: cebolas, ora-pro-nobis, picadinho de carne com tomate feijão e arroz, bacalhoada, suflês, sopas, churrascos. Cheguei mesmo a dedicar metade de um livro poético-filosófico a uma meditação sobre o filme A festa de Babette, que é uma celebração da comida como ritual de feitiçaria. Sabedor das minhas limitações e competências, nunca escrevi como chef. Escrevi como filósofo, poeta, psicanalista e teólogo - porque a culinária estimula todas essas funções do pensamento.

As comidas, para mim, são entidades oníricas. Provocam a minha capacidade de sonhar. Nunca imaginei, entretanto, que chegaria um dia em que a pipoca iria me fazer sonhar. Pois foi precisamente isso que aconteceu. A pipoca, milho mirrado, grãos redondos e duros, me pareceu uma simples molecagem, brincadeira deliciosa, sem dimensões metafísicas ou psicanalíticas. Entretanto, dias atrás, conversando com uma paciente, ela mencionou a pipoca. E algo inesperado na minha mente aconteceu. Minhas idéias começaram a estourar como pipoca. Percebi, então, a relação metafórica entre a pipoca e o ato de pensar. Um bom pensamento nasce como uma pipoca que estoura, de forma inesperada e imprevisível. A pipoca se revelou a mim, então, como um extraordinário objeto poético. Poético porque, ao pensar nelas, as pipocas, meu pensamento se pôs a dar estouros e pulos como aqueles das pipocas dentro de uma panela.

Lembrei-me do sentido religioso da pipoca. A pipoca tem sentido religioso? Pois tem. Para os cristãos, religiosos são o pão e o vinho, que simbolizam o corpo e o sangue de Cristo, a mistura de vida e alegria (porque vida, só vida, sem alegria, não é vida...). Pão e vinho devem ser bebidos juntos. Vida e alegria devem existir juntas. Lembrei-me, então, de lição que aprendi com a Mãe Stella, sábia poderosa do candomblé baiano: que a pipoca é a comida sagrada do candomblé...




A pipoca é um milho mirrado, subdesenvolvido. Fosse eu agricultor ignorante, e se no meio dos meus milhos graúdos aparecessem aquelas espigas nanicas, eu ficaria bravo e trataria de me livrar delas. Pois o fato é que, sob o ponto de vista do tamanho, os milhos da pipoca não podem competir com os milhos normais. Não sei como isso aconteceu, mas o fato é que houve alguém que teve a idéia de debulhar as espigas e colocá-las numa panela sobre o fogo, esperando que assim os grãos amolecessem e pudessem ser comidos. Havendo fracassado a experiência com água, tentou a gordura. O que aconteceu, ninguém jamais poderia ter imaginado. Repentinamente os grãos começaram a estourar, saltavam da panela com uma enorme barulheira. Mas o extraordinário era o que acontecia com eles: os grãos duros quebra-dentes se transformavam em flores brancas e macias que até as crianças podiam comer. O estouro das pipocas se transformou, então, de uma simples operação culinária, em uma festa, brincadeira, molecagem, para os risos de todos, especialmente as crianças. É muito divertido ver o estouro das pipocas!

E o que é que isso tem a ver com o candomblé? É que a transformação do milho duro em pipoca macia é símbolo da grande transformação porque devem passar os homens para que eles venham a ser o que devem ser. O milho da pipoca não é o que deve ser. Ele deve ser aquilo que acontece depois do estouro. O milho da pipoca somos nós: duros, quebra-dentes, impróprios para comer, pelo poder do fogo podemos, repentinamente, nos transformar em outra coisa - voltar a ser crianças!

Mas a transformação só acontece pelo poder do fogo. Milho de pipoca que não passa pelo fogo continua a ser milho de pipoca, para sempre. Assim acontece com a gente. As grandes transformações acontecem quando passamos pelo fogo. Quem não passa pelo fogo fica do mesmo jeito, a vida inteira. São pessoas de uma mesmice e dureza assombrosas. Só que elas não percebem. Acham que o seu jeito de ser é o melhor jeito de ser. Mas, de repente, vem o fogo. O fogo é quando a vida nos lança numa situação que nunca imaginamos. Dor. Pode ser fogo de fora: perder um amor, perder um filho, ficar doente, perder um emprego, ficar pobre. Pode ser fogo de dentro. Pânico, medo, ansiedade, depressão - sofrimentos cujas causas ignoramos. Há sempre o recurso aos remédios. Apagar o fogo. Sem fogo o sofrimento diminui. E com isso a possibilidade da grande transformação.




Imagino que a pobre pipoca, fechada dentro da panela, lá dentro ficando cada vez mais quente, pense que sua hora chegou: vai morrer. De dentro de sua casca dura, fechada em si mesma, ela não pode imaginar destino diferente. Não pode imaginar a transformação que está sendo preparada. A pipoca não imagina aquilo de que ela é capaz. Aí, sem aviso prévio, pelo poder do fogo, a grande transformação acontece: pum! - e ela aparece como uma outra coisa, completamente diferente, que ela mesma nunca havia sonhado. É a lagarta rastejante e feia que surge do casulo como borboleta voante.
Na simbologia cristã o milagre do milho de pipoca está representado pela morte e ressurreição de Cristo: a ressurreição é o estouro do milho de pipoca. É preciso deixar de ser de um jeito para ser de outro. "Morre e transforma-te!" - dizia Goethe.

Em Minas, todo mundo sabe o que é piruá. Falando sobre os piruás com os paulistas descobri que eles ignoram o que seja. Alguns, inclusive, acharam que era gozação minha, que piruá é palavra inexistente. Cheguei a ser forçado a me valer do Aurélio para confirmar o meu conhecimento da língua. Piruá é o milho de pipoca que se recusa a estourar. Meu amigo William, extraordinário professor-pesquisador da Unicamp, especializou-se em milhos, e desvendou cientificamente o assombro do estouro da pipoca. Com certeza ele tem uma explicação científica para os piruás. Mas, no mundo da poesia as explicações científicas não valem. Por exemplo: em Minas "piruá" é o nome que se dá às mulheres que não conseguiram casar. Minha prima, passada dos quarenta, lamentava: "Fiquei piruá!" Mas acho que o poder metafórico dos piruás é muito maior. Piruás são aquelas pessoas que, por mais que o fogo esquente, se recusam a mudar. Elas acham que não pode existir coisa mais maravilhosa do que o jeito delas serem. Ignoram o dito de Jesus: "Quem preservar a sua vida perde-la-á." A sua presunção e o seu medo são a dura casca do milho que não estoura. O destino delas é triste. Vão ficar duras a vida inteira. Não vão se transformar na flor branca macia. Não vão dar alegria para ninguém. Terminado o estouro alegre da pipoca, no fundo a panela ficam os piruás que não servem para nada. Seu destino é o lixo.
Quanto às pipocas que estouraram, são adultos que voltaram a ser crianças e que sabem que a vida é uma grande brincadeira...

A última crônica de João Ubaldo Ribeiro

O correto uso do papel higiênico

O título acima é meio enganoso, porque não posso considerar-me uma autoridade no uso de papel higiênico, nem o leitor encontrará aqui alguma dica imperdível sobre o assunto. Mas é que estive pensando nos tempos que vivemos e me ocorreu que, dentro em breve, por iniciativa do Executivo ou de algum legislador, podemos esperar que sejam baixadas normas para, em banheiros públicos ou domésticos, ter certeza de que estamos levando em conta não só o que é melhor para nós como para a coletividade e o ambiente.

Por exemplo, imagino que a escolha da posição do rolo do papel higiênico pode ser regulamentada, depois que um estudo científico comprovar que, se a saída do papel for pelo lado de cima, haverá um desperdício geral de 3,28%, com a consequência de que mais lixo será gerado e mais árvores serão derrubadas para fazer mais papel. E a maneira certa de passar o papel higiênico também precisa ter suas regras, notadamente no caso das damas, segundo aprendi outro dia, num programa de TV.

Tudo simples, como em todas as medidas que agora vivem tomando, para nos proteger dos muitos perigos que nos rondam, inclusive nossos próprios hábitos e preferências pessoais. Nos banheiros públicos, como os de aeroportos e rodoviárias, instalarão câmeras de monitoramento, com aplicação de multas imediatas aos infratores.

Nos banheiros domésticos, enquanto não passa no Congresso um projeto obrigando todo mundo a instalar uma câmera por banheiro, as recém-criadas Brigadas Sanitárias (milhares de novos empregos em todo o Brasil) farão uma fiscalização por escolha aleatória.

Nos casos de reincidência em delitos como esfregada ilegal, colocação imprópria do rolo e usos não autorizados, tais como assoar o nariz ou enrolar um pedacinho para limpar o ouvido, os culpados serão encaminhados para um curso de educação sanitária. Nova reincidência, aí, paciência, só cadeia mesmo.

Agora me contam que, não sei se em algum estado ou no país todo, estão planejando proibir que os fabricantes de gulodices para crianças ofereçam brinquedinhos de brinde, porque isso estimula o consumo de várias substâncias pouco sadias e pode levar a obesidade, diabetes e muitos outros males. Justíssimo, mas vejo um defeito.

Por que os brasileiros adultos ficam excluídos dessa proteção? O certo será, para quem, insensata e desorientadamente, quiser comprar e consumir alimentos industrializados, apresentar atestado médico do SUS, comprovando que não se trata de diabético ou hipertenso e não tem taxas de colesterol altas.

O mesmo aconteceria com restaurantes, botecos e similares. Depois de algum debate, em que alguns radicais terão proposto o Cardápio Único Nacional, a lei estabelecerá que, em todos os menus, constem, em letras vermelhas e destacadas, as necessárias advertências quanto a possíveis efeitos deletérios dos ingredientes, bem como fotos coloridas de gente passando mal, depois de exagerar em comidas excessivamente calóricas ou bebidas indigestas. O que nós fazemos nesse terreno é um absurdo e, se o Estado não nos tomar providências, não sei onde vamos parar.




Ainda é cedo para avaliar a chamada lei da palmada, mas tenho certeza de que, protegendo as nossas crianças, ela se tornará um exemplo para o mundo. Pelo que eu sei, se o pai der umas palmadas no filho, pode ser denunciado à polícia e até preso. Mas, antes disso, é intimado a fazer uma consulta ou tratamento psicológico.

Se, ainda assim, persistir em seu comportamento delituoso, não só vai preso mesmo, como a criança é entregue aos cuidados de uma instituição que cuidará dela exemplarmente, livre de um pai cruel e de uma mãe cúmplice. Pai na cadeia e mãe proibida de vê-la, educada por profissionais especializados e dedicados, a criança crescerá para tornar-se um cidadão modelo. E a lei certamente se aperfeiçoará com a prática, tornando-se mais abrangente.

Para citar uma circunstância em que o aperfeiçoamento é indispensável, lembremos que a tortura física, seja lá em que hedionda forma — chinelada, cascudo, beliscão, puxão de orelha, quiçá um piparote —, muitas vezes não é tão séria quanto a tortura psicológica.

Que terríveis sensações não terá a criança, ao ver o pai de cara amarrada ou irritado? E os pais discutindo e até brigando? O egoísmo dos pais, prejudicando a criança dessa maneira desumana, tem que ser coibido, nada de aborrecimentos ou brigas em casa, a criança não tem nada a ver com os problemas dos adultos, polícia neles.

Sei que esta descrição do funcionamento da lei da palmada é exagerada, e o que inventei aí não deve ocorrer na prática. Mas é seu resultado lógico e faz parte do espírito desmiolado, arrogante, pretensioso, inconsequente, desrespeitoso, irresponsável e ignorante com que esse tipo de coisa vem prosperando entre nós, com gente estabelecendo regras para o que nos permitem ver nos balcões das farmácias, policiando o que dizemos em voz alta ou publicamos e podendo punir até uma risada que alguém considere hostil ou desrespeitosa para com alguma categoria social.

Não parece estar longe o dia em que a maioria das piadas será clandestina e quem contar piadas vai virar uma espécie de conspirador, reunido com amigos pelos cantos e suspeitando de estranhos. Temos que ser protegidos até da leitura desavisada de livros.

Cada livro será acompanhado de um texto especial, uma espécie de bula, que dirá do que devemos gostar e do que devemos discordar e como o livro deverá ser comentado na perspectiva adequada, para não mencionar as ocasiões em que precisará ser reescrito, a fim de garantir o indispensável acesso de pessoas de vocabulário neandertaloide.

Por enquanto, não baixaram normas para os relacionamentos sexuais, mas é prudente verificar se o que vocês andam aprontando está correto e não resultará na cassação de seus direitos de cama, precatem-se.


Manchetes, por Luiz Fernando Veríssimo

Há noticias de primeira página que nunca chegam à primeira página. Ou por falta de espaço — caso do Brasil no ultimo mês, quando o futebol dominou as primeiras páginas de todos os jornais — ou por decisão editorial.

Entre as notícias de primeira página que não viraram manchete durante a Copa está a declaração formal das Forças Armadas brasileiras que nada de anormal, como tortura e mortes, aconteceu em qualquer dependência militar no Brasil no período da ditadura. E pronto.

Notícia paralela que também ficou nas páginas internas, ou só com chamada na capa, foi a da prescrição do caso da bomba no Riocentro, que não será mais investigado. Também: assunto encerrado.

Quem insistir que houve tortura e morte nos quartéis durante a ditadura, segundo o relato de sobreviventes e averiguações criteriosas já feitas, estará chamando a instituição militar brasileira de mentirosa. Sobre a ação criminosa abortada pela explosão prematura daquela bomba no Puma jamais se saberá mais nada.

Outra noticia que merecia manchetes, mas não passou do bloqueio da Copa, foi a de que, dos 32 países que participaram do campeonato, o Brasil foi o que apresentou maior queda nos índices de mortalidade de crianças de até 5 anos de idade nas últimas décadas.

Maior do que ocorreu na Alemanha, na Holanda e na Argentina, para ficar só nos quatro finalistas da Copa. Os dados são da Parceria Para a Saúde Materna e Recém-Nascidos e Crianças, entidade coordenada pela Organização Mundial da Saúde.

A divulgação destes números com o destaque merecido talvez diminuísse os insultos à presidente, que, estes sim, sempre saem na primeira página. Ou talvez aumentassem, vá entender.


POR QUÊ?

O terremoto que arrasou Lisboa também sacudiu a intelectualidade europeia da época, que se dividiu entre os que consideravam a catástrofe um ato de Deus para punir a pecaminosa capital portuguesa e os que diziam que a natureza, e não um Deus cruel, era responsável pelo cataclismo.

Voltaire manteve que o terremoto provava a inexistência de Deus e fez pouco dos que defendiam que era um castigo divino, num famoso poema em que perguntava: se o objetivo era acabar com o pecado, por que escolher logo Lisboa e não Paris, onde havia muito mais pecadores, “mergulhados nas delicias”, do que em Lisboa?

“Lisboa está arruinada”, escreveu, “e dança-se em Paris.” Exatamente o que sentimos depois dos 7 a 1, guardadas todas as gigantescas proporções. Nosso futebol está arruinado, e dança-se em países que não têm metade das nossas taças e glórias. E por que nós?!

O único dedo que aponto é para mim mesmo. Sempre.

Quando escrevo denunciando um tipo de comportamento, quando escrevo sobre ser prisioneiro do padrão de beleza da mídia, sobre narcisismo e autocentramento, sobre patriotismo e preconceito, não estou nunca escrevendo de cima para baixo, como um guru intocável que conseguiu atingir um comportamento ilibado falando para as pobres coitadas lá embaixo que ainda não chegaram ao seu nível de iluminação. Pelo contrário, estou falando a partir dos subterrâneos, do meio da multidão, como mais uma rota entre tantas esfarrapadas; estou falando justamente da batalha diária que travo comigo mesmo, todo dia, o tempo todo, para ser uma pessoa menos escrota, menos conformista, menos egoísta, menos superficial, menos vaidosa. O único dedo que aponto é para mim mesmo. Sempre. Se a carapuça que escrevi para mim também servir em vocês, melhor ainda. Quem sabe não conseguimos juntos virar pessoas humanas menos desagradáveis? Não sou guru, não sou perfeito, não sou generoso. Sou profundamente egoísta, patologicamente vaidoso, intrinsecamente autocentrado, fundamentalmente preguiçoso. Mas, e essa é minha esperança, talvez não para sempre. by Alex Castro Leia Também: A vida tem um sentido coletivo

Crônica do A. Capibaribe Neto

Presságios e pressentimentos

Pressentimento é um sentimento vago ou instintivo do que há de suceder. Ouvir ou perceber ao longe, ou antes, de ver. Tem por sinônimo geral, antessentir. Presságio pode ser também um sinônimo, mas soa como algo mais que é um sinal pelo qual se ajuíza ou se conjectura do futuro, algo que está prestes a acontecer; pode ser também agouro ou augúrio. Uma coisa é certa: ninguém pode alimentar um sentimento vago de que vai morrer. Sim, porque vai mesmo, a data e a hora já estão definidas, só que não se sabe... Já o presságio é aquela sensação, espécie de aviso de que não se deve ir ou voltar. Os melhores pressentimentos são aqueles que alimentamos com a ilusão de que os números que jogamos na loto serão sorteados naquele dia. É bom pressentir coisas assim embora semana após semana a frustração bata à porta. Quando viajei sozinho para um lugar distante, perto do Polo Norte, não tive pressentimento de que iria morrer no meio do nada, debaixo de um frio de menos 26 graus, ao aventurar-me em uma floresta, sozinho, em Pyhätunturi, além de Rovaniemi, na Finlândia. Aventurei-me por ali de atrevido, de maluco, de qualquer que seja o adjetivo para qualificar a empreitada. Já caminhei sozinho pelas dunas intermináveis do Saara, e por lá deixei meus rastros. Não provei de medo do sol escaldante ou do frio cortante das noites do deserto. Faz pouco, foi outra vez à beira do fim do mundo: Akureiry, norte da Islândia...! 
Perdi-me em caminhada solitária no meio da montanha quando nuvens pesadas baixaram, o vento começou a assobiar levantando neve e não havia nenhum ponto de referência para o qual me dirigir, até que vislumbrei, depois de quase uma hora, uma luz acanhada no meio daquele imenso nada, no único poste que havia naquilo que seria a minha salvação. Lembro que não tive nenhum pressentimento que iria morrer, mas não sei explicar porque achei graça da situação enquanto olhava para a placa metálica presa ao pescoço com meu nome e embaixo dele, Brazilian Press. Loucura? Tendência ao suicídio? Idiotice? Não sei... Que digam, que pensem, que falem... Mesmo quando me aventurei no Afeganistão e fui soltar uma pipa em Cabul, e escapei de sumir do mapa quatro vezes ou sei lá quantas mais, que não me dei conta, não pressenti que iria chegar a minha hora. Talvez esteja em busca de alguma coisa que ainda não sei o que seja... Sempre defendi que, em momentos de confusão emocional, as pessoas devem marcar um encontro consigo mesmas. E serem pontuais. É importante que sejam pontuais, seja onde for esse encontro. No deserto, na montanha, às margens de um rio ou de um lago de águas serenas, onde possam refletir ao som de uma brisa de fim de tarde, ou noite adentro, escutando um cricrilar intermitente. 
Às vezes, as consequências de um arrependimento batem forte, e geralmente não é pelas costas, porque arrependimento mesmo é quando as pessoas descobrem no momento da ação ou atitude, que tinham consciência de uma segunda alternativa. 
Interessante, é que nos dias atuais, ao me aventurar pelas ruas hoje covardes e traiçoeiras da cidade onde nasci, sempre tenho um pressentimento de que talvez não volte, que me acidente por conta de um maluco irresponsável e mal educado ou que não sabe quem é o pai, se me faço entender. Loucura é sair à noite. Tendência ao suicídio é se revoltar contra a impunidade ou denunciar falcatruas. Loucura é participar de demonstrações que vestem fantasias de interesse do povo e não passam de armadilhas de mascarados com interesses escusos. Tenho um pressentimento de que ir outra vez ao meu encontro do alto do Tibet, no Deserto de Gobi ou descansar nas areias de Vanuatu não é simplesmente uma aventura ou a busca de imagens que sempre me esperam por onde ando, mas uma forma de ter esperança de que a vida só vale à pena quando se vive sem limites de horizontes ou expectativas de paz.

Crônica do A. Capibaribe Netp

Explicando a roedeira

Na mesa do bar ao lado da minha, um grupo de amigos escarnecia um dos presentes dizendo que o mesmo estava sofrendo de "roedeira". O "sofredor da roedeira" tentava disfarçar o incômodo pelo deboche que evidenciava a pletora nas laterais da sua fronte com um riso compulsoriamente cúmplice para não esticar o chiste. Explicando pletora e chiste: o primeiro é a elevação do volume de sangue no organismo provocado pela dilatação dos vasos sanguíneos, e o segundo, é o mesmo que facécia, coisa engraçada ou vista por um ângulo alegre, piada. Aos poucos, a facécia (já explicado), deu lugar a outros chistes e atravessou o clima desconfortável para um assunto sério: a Copa 2014 e o deboche constrangedor de uma vaia deselegante.
O termo era-me familiar, mas fiquei curioso em saber o significado de roedeira. E fui ao Google. Estava lá: trata-se de um regionalismo nordestino, é a epizontia do gado bovino, que determina a queda dos chifres; mal-dos-chifres. Ou seja, um conceito utilizado em veterinária e ecologia para qualificar uma enfermidade contagiosa que atinge grande número de animais em um mesmo lugar, ou, no popular, CIUME! A maioria dos homens já sofreu de roedeira, seja com relação aos chifres que lhes caíram com o tempo que cura tudo ou, mais comumente, com o ciúme.
Para os provectos sibaritas, a roedeira passou a ser de pouca importância e a roedeira deve ser levada na brincadeira, embora cause alguma dor principalmente quando uma ferida ainda mal curada é estocada pelo encontro casual do comborço. Explicando tudo: provecto é o homem adiantado na idade, respeitável, experiente, abalizado: e sibarita é aquele que é dado aos prazeres físicos mesmo que para a evidência prazerosa da pletora necessite do adjutório de recursos azuis. Quanto a comborço, é o atual marido da ex-mulher. A palavra para designar aquele que assumiu a sorte de ser o novo "meu amorzinho" ou tratado como outros adjetivos diminuitivos carinhosos similares por merecimento bem que podia soar melhor aos ouvidos ou parecer mais agradável aos olhos de quem lê essa designação. Tudo explicado. Pois bem, soube depois, que a ingênua vítima do chiste havia, num rasgo de infantil confidenciado aos "amigos" do bar, falado sobre as fotografias do casamento da ex-companheira e de havê-la encontrado, casualmente, na companhia do comborço. Ora, ora, ora, foi falar pra quê? Certas coisas se deve guardar para si, principalmente mesmo sabendo que existe uma enorme diferença entre "roedeira" e confissões de arrependimento. Arroubos de coragem para sair de um relacionamento uma vez, duas, três e o exagero quebrar a chave da porta e jogá-la fora, como demonstração de um "nunca mais" precipitado tem lá consequências, principalmente quando mesmo sem uma outra cópia da chave que partiu em dois e, pior, quem ficou do lado de dentro tomou a providência imediata de trocar a fechadura e colocar uma tranca. Na porta e no coração.
Tudo na vida tem um limite, chega a um fim. O que estava escrito foi cumprido. À risca. O alvo do chiste assimilou a troça e aproveitou a companhia de Baco para ir embora num cambalear inventado disfarçando a mágoa. E sumiu dentro de um táxi, noite cedo afora. Tive vontade de procurar saber o endereço do "chiesteado", mas deixei pra lá. Eu também já senti nas frontes a pletora por raiva e por prazer, e também já fui comborço, não oficial.
Ainda me sobra alguma margem para continuar sibarita, embora provecto. Esta uma explicação percuciente encerra as demonstrações de "roedeira", de arrependimento inócuo, de ciúme tardio, etc. E tal com unilateral humor. Rsrs...!

Crônica dominical de A. Capibaribe Neto

O fantasma das vaias guardadas

Reis cruzaram o Atlântico em suas caravelas aladas, trazendo suas comidas especiais e fazendo suas exigências exóticas. Esnobaram as paisagens, torceram o nariz para a periferia e posaram de superiores.
Estufaram o peito, cheios de orgulho com o tocar de seus hinos cheios de lanças, guerras, guerreiros, batalhas, vitórias, etc. Até aqui, diga-se de passagem. Times da Copa do Mundo. No dia em que escrevo esta crônica, quarta-feira, um rei laranja sofreu esfalfado para vencer um time canguru. Logo a seguir, os toureiros, cheios de bossa selvagem ainda lambiam suas feridas profundas; cinco, mais precisamente, quando entraram na arena luxuosa e contestada pelos protestos inócuos de meia dúzia de oportunistas arruaceiros, que abriram espaço para marginais, ladrões de galinha e bandidos de periferia darem o ar da graça do lado de fora.
Não "adentraram ao gramado", com a costumeira empáfia, mas ainda eram elegantes e esperavam furar as costas dos índios andinos para arrancar os "olés" de seus iguais. Não deu. Pelo contrário, eles é que ficaram na outra ponta do "olé" em desenvolvimento. Mais duas feridas profundas e como foram letais moralmente, eles agora eram o touro avacalhado, com o rabo entre as pernas, voltando para o hotel para o derradeiro check in e tomar o rumo de casa, sem espaço para desculpas esfarrapadas porque agora a terra selvagem pode se mostrar, via satélite, em tempo real, que o rei estava nu e era feio, magro, só fez um gol.
Neste capítulo, encerra-se uma guerra particular. E nem existe mais um Dom Quixote para enfrentar os moinhos de vento que sopraram um verdadeiro furacão sobre eles. "Que pasó?" Perguntavam entre si. Talvez culpem Diego Costa, porque é brasileiro. É, talvez façam isso, mas quem vai engolir, se nem mesmo a sua famosa paella agora é palatável.
O time do Brasil está cheio de europeus tupiniquins que deixaram suas origens humildes nos bairros pobres de lugares que preferem esquecer. David Luis, até agora, é uma grata exceção. Talvez porque teve berço e deve ter lido alguma coisa sobre humildade. Tirante ele e o Tiago Silva, fica difícil encontrar outro exemplo que não exagere nas plumas do pavão.
Hoje mesmo, quarta-feira, o time deve estar roendo as unhas para ver o que vai acontecer entre Camarões e Croácia. Tristes expectativas para um time de milionários empavonados sobre cujas costas começam a pesar os fantasmas de sonoras vaias se não souberem o significado de EQUIPE! Fred já foi motivo de gozação. Fez nada! Neymar ainda chorou, mas não conseguiu ser mais agressivo que o goleiro que pareceu jogar com um sombrero enorme.
Se pudéssemos viajar no tempo já saberíamos quem ganhou a Copa 2014, mas como isso é impossível, o negócio é contar com uma mãe de santo, preparar uma galinha preta e outras mandingas e torcer muito para que os fantasmas das vaias não atormentem suas cabeças coloridas e acabem com a esperança de milhões de fanáticos, com a reeleição da presidenta e encham a bola, por enquanto murcha, de meia dúzia de mascarados que continuam protestando sem bandeira definida e fazendo molecagens sem sentido pelas ruas, onde os esperam muitas balas de borracha, spray de pimenta e muita truculência orientada. Por enquanto.

Mauro Beting sobre "barrigão" do colunista Mario Sergio Conti

Contem outra

Em 1998, uma cara colega que achava que tudo era ironia nessa história do jornalista que confundiu Felipão com um sósia – e, ainda pior, também o “Neymar” na poltrona próxima… – mais se divertia com Paris que com a Copa que, a princípio, estava escalada para cobrir para mostrar o “outro lado” do Mundial. Sim, ela podia não ver alguns jogos. Mas não deixar de ver quase todos como fez. Como outro caro colega que adorava dizer que não via jogos ruins da Copa. Justamente os que são mais Copa. Justamente os que o levaram a ser pago para executar a função. E com o privilégio que muita gente pagaria para fazer enquanto ele dormia no Mundial.
A cara colega tinha como fazer o que escrevia do Leblon, do Barra Shopping, da estátua do Borga Gato, sei lá eu. Mas ela fazia o seu bom serviço ocupando lugares que seriam de jornalistas esportivos. Essa gente menor e limitada. Alienada. Essa subespécie da imprensa.Esse pessoal da editoria do esporte que não sabe qual é a capa da Época. Da Veja. Da Isto é. Da GQ. Essas revistas de pouca circulação que se confundiram e postaram também capas e reportagens com sósias do Felipão e do Neymar que trabalham no Zorra Total.
Não conheço jornalista esportivo que tenha confundido ministro com sósia.
Mas conheço muito colunista premiado por chefia padrão Fifa que ganha credencial de Copa como se fosse promoção de patrocinador da entidade. Do tipo:
- Escreva mal do governo (qualquer um) por 4 anos e ganhe um mês no centro de imprensa da Copa do Mundo! Não requer prática nem habilidade! Chupe algum artigo do El País, cite Eduardo Galeano, escreva sobre um bistrô fantástico que você foi com alguns jornalistas da antiga até de madrugada, e esteja na final da Copa do mundo vendo o jogo. Se o Brasil perder, diga que torce pelo Barcelona e que perdeu o encanto com o futebol no Sarriá; se o Brasil for hexa, diga que isso não pode jamais reeleger a Dilma.
É isso. É simples.
Tão fácil quanto imaginar que Neymar seria um pouco mais assediado se realmente estivesse no voo, e não o sósia do Zorra Total  (?!).
Tão fácil quanto imaginar que o treinador da Seleção não falaria o que falou a um desconhecido que o desconhecia além do aceitável para qualquer jornalista. Para não dizer para qualquer brasileiro.
Mas, isso, só os limitados jornalistas esportivos sabem. Os doutos colegas-doutores que vão dar um outro enfoque na cobertura esportiva jamais seriam tão focas de publicar uma entrevista com sósia de treinador pentacampeão flanando de avião pelo pais da Copa.
Um culto e letrado colega que tudo sabe dos bastidores da notícia não erraria jamais! Onde já se leu?!!!
Ele, como outros, abusaria da ironia. Sentado numa posição de jornalista em estádio da Copa escrevendo a respeito da mensagem subliminar comunista da bola vermelha da bandeira do Japão… Ou qualquer outra constatação intestina constantina.
Foram os fatos que desandaram. Não a versão publicada no jornal e sumida na internet.
Afinal, é mais fácil nessa condição profissional do nobre colega saber quem é sócio do patrão que reconhecer um sósia do Felipão.
Conte outra.
Nós, limitados jornalistas esportivos, vamos continuar contando nossas tacanhas historinhas.
Nos vemos na Rússia 2018, colegas colunistas.
Ou, provavelmente, não.
Lá só vai colunista para fazer paralelo com a Revolução de 17, Glasnost, queda da URSS, Putin.
É muito areia pro nosso aviãozinho da Ponte Aérea.
por Mauro Beting - www.lancenet.com.br

Crônica dominical de A. Capibaribe Neto

Manifestações fora de foco

Afinal de contas, qual o objetivo dessas manifestações que grassam pelo Brasil? Que tal se juntos procurarmos uma resposta inteligente? Vamos lá... 

Manifestação contra a corrupção; quem são os corruptos? Vamos tomar como exemplo alguns políticos, esses mesmos, sem um mínimo de vergonha na cara, sem escrúpulos, frios e indiferentes à miséria alheia, principalmente quando se trata do descaso com a educação de crianças de quem se lhes rouba a miséria de uma merenda escolar. 

Ninguém se posta diante da casa deles chamando-os de ladrões, exigindo sua cassação ou vai à Câmara dos Deputados ou ao Senado, mostrar indignidade, pedir providência. Não, não vão. Preferem prejudicar os que já estão prejudicados, dificultando-lhe os ir e vir do trabalho, queimando ônibus, depredando ruas, praças, patrimônio alheio, afugentando investidores e, consequentemente, diminuindo oferta de emprego. Qual é o foco então? 
  • Serão cegos os manifestantes de plantão ou obedecem a alguma diretriz para instalar o caos no que já está ruim? 
  • O que é que os jogadores da seleção têm a ver com a ladroagem, com os superfaturamentos de obras ou a roubalheira das merendas escolares? 
Os turistas são circunstantes; veem e vão embora e suas opiniões serão de pouca valia lá fora. Ninguém tem nada a ver com as nossas mazelas. 

A maioria dos que roubam, desviam verbas, superfaturam vão se candidatar com a maior cara de pau e vão ganhar. Quem vai votar neles? Os que estão aí, empunhando bandeiras e faixas de indignação com frases pouco criativas, repetitivas, como os pedidos de "justiça!" a cada violência que extrapola os limites do que já é uma prática diária. Justiça? Que justiça? A que vende habeas corpus para bandidos? Quem vende? Os que vendem são incomodados? Alguém sai por aí, empunhando faixas com os seus nomes, exigindo providência? Não. Embora os nomes dos cafajestes aparentemente estejam protegidos por "segredo de justiça", todo mundo sabe quem são os desembargadores, advogados de "meu cliente" importante e não se faz absolutamente nada. O foco é sempre um ônibus, uma praça, uma placa, a vitrina de uma loja que não tem nada a ver com a história, um carro que é virado em nome de nada, um grito moleque, anônimo. Qual é mesmo, o foco dessas manifestações? Aparar uma grama é motivo de manifestação e aí, tome bagunça, tome bandeira, tome grito e depois, silêncio total. "Ninguém mexe no Cocó" - e o viaduto está aí. As manifestações só serviram para dar visão a políticos oportunistas, a líderes de torcida que gosta e aplaude violência, baderna molecagem. 

Agora, o foco é a Praça Portugal... De repente, arquitetos salvadores da pátria com projetos mirabolantes carentes de fundamento lógico e técnico, sem visão de futuro, condenando uma cidade que recebe mais de dois mil carros por mês a se espremer pelas ruas cheias de moleques, - sempre moleques, mal educados, que como se não bastasse, ainda ligam seus pisca-alerta para mostrar que possuem carteirinha de moleque profissional. E ninguém se insurge contra eles. O negócio é queimar ônibus, virar carro, sujar as ruas, partir para a violência patrocinada e que esconde interesses escusos dos que ficam na sombra, só se divertindo... 

Qual é mesmo o foco dessas demonstrações? Hem, hem?

Alex Castro

Comprar menos identidades

Antes, antigamente quando alguém me dizia “o livro tal mudou a minha vida!!”, eu, que adoro histórias de mudança de vida, perguntava, empolgado:

“Mudou? puxa, que legal. exatamente o quê você mudou? Como você está vivendo de forma diferente?”
Para minha surpresa, as pessoas reagiam com horror ao meu questionamento. Não tinham resposta. Ficavam constrangidas. algumas se sentiam atacadas. Claramente, eu estava quebrando um script muito bem ensaiadinho.
Hoje em dia, para não causar constrangimento, não faço mais essa pergunta. Já sei a resposta.
* * *
Leia o texto completo: vou mudar de vida... mas não hoje!

Claudias Cardinales, por Luis Fernando Veríssimo

Não é que o futebol não tenha lógica. É que a lógica do futebol é itinerante. Muda com o tempo e as circunstâncias. Como o amor no poema do Vinicius, a lógica é eterna enquanto dura — e nunca dura muito, pelo menos no mesmo lugar.

Era lógico, com os jogadores que tinha, que o Vasco da Gama fosse o grande clube brasileiro dos anos 50, base de qualquer seleção nacional. Anos mais tarde, a base de qualquer seleção nacional passou a ser, logicamente, jogadores do Santos e do Botafogo, os melhores da sua época.
Através dos anos, a lógica favoreceu outros grandes times brasileiros, como o Cruzeiro de Minas e ( bons tempos...) o Internacional de Porto Alegre. Times que caíam depois de alcançar a glória não caíam porque a lógica os abandonava arbitrariamente. Caíam porque é da natureza da lógica do futebol ser inconstante. Talvez tenha alguma coisa que ver com o fato de “lógica” ser do gênero feminino.
Por exemplo: a lógica do mundo do futebol nos últimos anos e até recentemente destacava dois times tão superiores aos outros que era difícil imaginá-los decadentes. Um pouco como a Claudia Cardinale no esplendor da juventude, tão mais bonita do que qualquer outra atriz do seu tempo que você não podia imaginá-la envelhecendo e tornando-se o que é hoje, uma senhora respeitável e simpática, ótima pessoa, não duvido, mas definitivamente não a Claudia Cardinale.
Tomamos seu envelhecimento como uma traição. O Barcelona de Messi, Xavi e Cia. e o Bayern Munich de Robben, Schweinsteiger e Cia. não estão tendo um bom ano e arriscam-se a, como a Claudia Cardinale, tornarem-se impostores de si mesmos. A lógica do futebol abandonou-os e concentrou em Madri, onde o Real Madrid foi buscar a Copa da UEFA na goela do Atlético de Madrid, que já se preparava para levá-la para casa, e em Lisboa, onde um improvável Sevilha derrotou o Benfica na decisão da liga europeia.
A decadência, passageira ou não, do Barcelona e do Bayern Munich deve nos alegrar. A seleção da Espanha é o Barcelona com alguns retoques e a da Alemanha é o Bayern Munich travestido. Como são duas das quatro favoritas na Copa que se aproxima (as outras duas, na minha opinião, são Argentina e Brasil), é bom que estejam mal. Má notícia é o que está jogando aquele argentino Di Maria do Real Madrid. Como se a Argentina precisasse de ainda mais força no ataque. Trememos.

*Autodefinição do cubano Fabio Hernandez

A mulher da tatuagem de golfinho na virilha

“Você não mudou nada. Sempre com cara de criança. Sempre calado. Pensativo. Às vezes eu tinha que fazer a pergunta e a resposta para que nossas conversas não morressem.”
Fabio arregalou os olhos e encarou Lenira. Fazia cinco anos que não a via, mas parecia que estivera com ela na noite anterior. Fora a roupa, agora muito mais elegante, ela não mudara nada. Os cabelos pretos como uma noite siberiana de inverno continuavam a escorrer pelas suas costas como uma capa de super-herói.
Os óculos pretos de aro fino, antes sem marca, agora Armani, ainda lhe davam o ar ingenuamente sexy de professora. Os grossos lábios vermelhos sem batom – batom para quê? Um fêmur deslocado aos 15 anos deixara a perna direita de Lenira ligeiramente menor que a esquerda. Fabio adorava vê-la caminhar. Ninguém se movia com tanta graça, achava. O maior espetáculo da Terra. Lenira vestia um tailleur rosa de executiva.
Subitamente passou pela cabeça de Fabio a idéia absurda de dizer coisas assim: “Ei, você sabe que eu prefiro você de jeans e camiseta branca, como no passado? Você ainda fica com as bochechas vermelhas depois do amor? Você pode me deixar ver, pela última vez, aquela tatuagem de golfinho na virilha direita?”
Quantos anos ela já tinha? Trinta? Não, 31. Era quatro anos mais nova que ele. Pensou na Sofia de Machado de Assis. “O tempo, como um escultor vagaroso, a ia esculpindo ao correr dos longos dias.” Uma vez, no primeiro aniversário do dia em que alugaram um apartamento e foram morar juntos, escrevera isso no cartão em que lhe dera as obras completas de Machado em três volumes. Quando o deixou, ela não as levou. Os livros de Machado jaziam desprezados numa estante do pequeno apartamento em Pinheiros. Fabio se perguntou o que Lenira teria feito do cartão. Provavelmente o jogara fora, pensou. Ela jamais guardara nada, ao contrário dele.
“Você deve ter achado estranho eu aparecer depois de tanto tempo, não é, Fabio? Telefonar e marcar um almoço exatamente nesse restaurante.”
Esse restaurante. A cantina Speranza, na Bela Vista. Freqüentavam nos bons tempos. Um restaurante charmoso e barato, bom para gente de dinheiro contado como ele ontem e hoje e para ela ontem.
“Você nunca quis ir a outros restaurantes. Sempre a Speranza, sempre a lasanha à romanesca, sempre a Coca-Cola, sempre a musse de chocolate. A primeira coisa em que eu reparei hoje foi o seu pedido. Lasanha e Coca. Se pelo menos fosse Coca light. Quase que eu falei quando o garçom anotou o pedido: e musse de sobremesa para ele. Fabio, Fabio, você nunca vai mudar?”
Fabio achou no tom de voz de Lenira alguma coisa que sugeria que ela podia estar à beira de lágrimas ou gargalhadas. Não estava preparado para lágrimas. Preferia gargalhadas. Era mais fácil enfrentá-las.
“Eu precisava dizer certas coisas. Coisas que não foram ditas.”
Fabio fez um gesto com as mãos como dizendo que não, ela não tinha que lhe dar satisfação nenhuma. Algumas palavras talvez tivessem importância num passado já remoto, não agora.
“Quando eu decidi ir embora, sabia que não conseguiria falar com você. Olhar para você e dizer adeus. Mas imaginava escrever uma carta que explicasse tudo. Aí eu peguei a caneta e… e nada. A gente pensa que certas coisas são mais fáceis de escrever do que de dizer, mas isso é uma ilusão.”
Passou rápido por Fabio a lembrança de que Lenira jamais fora, mesmo, uma boa redatora. Estudara jornalismo, mas depois se fixara no departamento comercial de uma revista.
Ela tirou os óculos e os pôs na mesa. Era um sinal, Fabio sabia, de que estava emocionada. Era como se a vista turva a ajudasse a enfrentar melhor certas situações difíceis. Fabio sentiu uma súbita e absurda vontade de pedir a ela que caminhasse pelo restaurante, para ver aquele andar inigualável e majestoso em sua leve oscilação, mas tinha noção do ridículo de tal pedido e permaneceu calado.
“Não sei quantas vezes iniciei um bilhete de explicação e rabisquei tudo. No fim desisti. O silêncio era mais digno do que uma carta vulgar de despedida, cheia de lugares-comuns e de erros de português.”
Uma amiga de Lenira lhe telefonou, um dia, para dizer que ela decidira sumir um pouco para pensar na vida. Deixara o emprego, deixara o namorado, deixara a cidade, deixara tudo. A amiga disse que ela fora viajar para ninguém sabia onde. Fabio dormira depois, algumas vezes, com essa amiga de Lenira. Aprendeu ali que o sexo pode ser sinônimo de desespero. Naqueles dias, Fabio só se sentia vivo quando estava dentro de uma mulher.
Alguns meses depois da partida de Lenira, Fabio a viu numa coluna social, mulher de um homem 20 anos mais velho que ela, Miguel. Ele era um figurão do mundo publicitário. Conquistara leões de todas as espécies em Cannes e era sócio de americanos numa grande agência. Lenira era sua segunda mulher. Pouco mais de um ano depois, leu também numa coluna social que Lenira e Miguel tiveram um filho. Quase desesperara ao sabê-la perdida.
“Quando nós fomos morar juntos, eu pensei que era para sempre, Fabio. Mas tudo mudou, depois. Você, Fabio. Você mudou, cada vez mais monomaníaco. Primeiro ouvia músicas variadas, depois só o Nirvana, depois só o Acústico do Nirvana, depois só My Girl. Deus, às vezes passo dias sem conseguir tirar essa maldita música da cabeça.” Cantarolou um trecho, desafinada como sempre. Ninguém é perfeito, pensou Fabio.
Ocorreu a ele que não poderia haver prova de amor maior do que gostar de ouvir cantar uma mulher desafinada. E ele gostava de ouvi-la. “My girl, my girl / Don’t lie to me / Tell me where did you sleep last night.”
A história da música, sabia Fabio, era a história deles dois, a história de milhares, milhões de casais, aqui, ali, em todos os lugares. A falência de um romance, a tristeza, o desamparo, a perplexidade. Sempre a mesma história. Ridículo achar que um caso de amor possa ser especial, quimera vã e despropositada de amantes pretensiosos. Ocorreu a Fabio que Lenira entrara no restaurante acusando-o de não ter mudado em nada e agora o acusava de ter mudado em tudo. O que poderia se chamar de caso sem solução.
“Depois foram os livros. Você lia tudo, me fez ler até Guerra e Paz. Demorei seis meses, mas consegui. Depois só Machado de Assis, depois só um conto, sei o nome, Um Capitão de Voluntários. Quantas vezes você leu esse conto? Cento e oitenta, 320? E ainda dizia que era um conto menor do Machado de Assis. Menor! Eu comecei a ficar com medo. Eu tinha medo de você. Ainda tenho. Você pode imaginar o que é, de repente, descobrir que o homem com quem você dorme é um desconhecido? Um… um… um lunático?”
Lenira olhou para um jovem casal numa mesa ali perto. Estavam completamente entretidos um com o outro. Por baixo da mesa ela tocava os pés dele. De tempos em tempos ele se erguia parcialmente sobre a mesa para beijá-la.
“Parece que estou vendo a gente alguns anos atrás. Acho que um relacionamento começa a terminar quando as conversas começam a terminar. Aquele casal ali. Parece que eles poderiam conversar dias, anos sem parar. Sabe do que eu mais sinto saudade? Das nossas conversas do início. Eu gostava tanto do som da sua voz dizendo meu nome.”
Lenira fez uma pequena pausa como para se lembrar de alguma conversa que tivera, no começo, com Fabio. Depois prosseguiu. “Que coisa mais absurda ter 20 anos e acreditar em palavras tolas e sem sentido como amor. Ora, o amor. Devia estar escrito assim em todos os dicionários. Amor: o mesmo que ficção. E cuidado ao usar porque machuca.”
Lenira começou a chorar baixinho. Fabio pensou em abraçá-la, confortá-la, mas viu o absurdo de confortar quem vencera o embate entre os dois, a parte vitoriosa, a mulher que o abandonara para crescer na vida. Ele era, ali naquela mesa, o derrotado. Ao fim de alguns segundos, ela já se recuperara. Os olhos verdes estavam levemente avermelhados. E só.
“Não sei se isso tem importância, mas eu só comecei a namorar o Miguel depois que deixei você. Enquanto nós estávamos juntos, sempre fui fiel.”
Fiel. Que palavra mais ridícula, pensou Fabio. Ninguém é fiel a ninguém. As pessoas só são fiéis a si próprias. Às vezes, nem a elas mesmas. Fabio achou pelo tom de voz de Lenira que ela pronunciara a palavra fiel como se julgasse merecer uma condecoração.
“É verdade: nunca dormi com ninguém quando estávamos juntos. Eu… eu simplesmente não tinha a menor vontade.”
Era a Lenira de sempre, pensou Fabio. Usava “dormir” como sinônimo de copular. Podia ser pior, ele sabia. Lenira podia preferir “fazer amor”. Falava de Miguel como se fosse um velho conhecido de Fabio.
“Não podia terminar bem. Você parecia não gostar mais de nada, só de ler Machado de Assis e escutar o Nirvana. Eu tinha uma festa, você não ia. Queria ver um filme, você não ia. Pareço estar ouvindo o que você dizia de cinema. Cultura de preguiçoso. Quem não tem preguiça lê livro. Quem tem vê filmes. Você sempre foi tão cínico. Mesmo agora. Eu falo essas coisas todas, tão importantes para mim, tão duras que levei cinco anos para conseguir dizer, e você me olha impassível, com um sorriso pregado no canto dos lábios. Eu nunca atingi você, não é, Fabio? Me pergunto quantos dias você demorou para perceber que eu tinha ido embora.”
Fabio achou que não era o momento de falar no quanto sofrera. Não ia falar no dia em que pegara uma tesoura e, num acesso de fúria, rasgara as fotos dos dois. Como sempre, quem precisava falar era ela, não ele. Reparou que ela não tocara na comida, uma salada de salmão acompanhada de água sem gás. Tudo bem, Lenira não fora ali para comer.
“Ainda no dia anterior eu esperei alguma coisa, um gesto, um sinal que mostrasse que eu tinha alguma importância pra você. Que você me achava tão importante quanto My Girl e um Capitão de Voluntários. Mas nada. Você tinha se refugiado num mundo no qual eu não conseguia entrar.”
Fabio demorara algum tempo para entender que essa indiferença fingida era apenas uma autodefesa errada e inútil. Sabia que perderia Lenira, algum dia, para alguém mais adequado que ele. Um homem que a levasse para dançar, para viajar, que a fizesse sorrir. Alguém como Miguel. Fabio sempre olhara Lenira de cima para baixo, uma perspectiva que só poderia mesmo levar o casal ao colapso.
Lenira e Miguel parecem feitos um para o outro. Dois vitoriosos, que se olhavam de igual para igual. Pareciam tão felizes, os dois, nas fotos das colunas sociais. Por saber que a perderia, Fabio construíra um mundo ao qual Lenira não pertencia. Uma tolice, sabia agora, mas a vida é exatamente isso, uma sucessão interminável de tolices. E a gente só percebe que cometeu um erro grave num relacionamento depois que já é muito tarde para corrigi-lo.
“Fabio, Fabio. Você não vai falar nada?”
Fabio pensou em falar algo, mas se calou. Não falara nada quando falar poderia ter feito alguma diferença. Agora não fazia sentido falar nada.

“Fabio, Fabio, eu …”
Fabio percebeu que Lenira estava perto de perder o controle. Mas nunca houve nada que ele pudesse fazer a esse respeito.
“Eu te detesto, te detesto, te detesto. Você arruinou minha vida. Você me tornou uma mulher amarga, uma mulher que não consegue sonhar.”
Ele pensava que Miguel e ela fossem felizes. Era o que parecia nas colunas sociais.
“Você dizia que gente que não leu Sthendal não sabe nada da vida. Sthendal, não é isso? Não me lembro de ter passado uma noite só com você sem que você acendesse o abajur para ler um livro e …”

Lenira fez uma pausa breve, para recuperar ao mesmo tempo o fôlego e a raiva.
“… não consegui deixar de reparar que o Miguel nunca lia um livro antes de dormir. Mas ele é bom de sexo, entendeu? Muito bom, Fabio. Fabio, Fabio, eu te detesto.”

Ela foi subindo o tom de voz. Naquela altura todo o restaurante sabia que ela o detestava, e que Miguel era bom de cama.
Lenira levantou-se subitamente e foi embora. Fabio ficou na mesa. Admirou, uma última vez, o olhar torto e sublime de Lenira.
Depois olhou para o casalzinho que estava na mesma mesa em que eles gostavam de se acomodar. Estavam tão apaixonados.
Teve pena dos dois.