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Crônica semanal de Luis Fernando Veríssimo

Recebo outra carta da ravissante Dora Avante. Dorinha, como se sabe, não revela sua idade para ninguém, só diz que não é verdade que já viu o Cometa Halley passar duas vezes.
À frente do seu grupo de pressão política e carteado, as Socialaites Socialistas, que lutam pela implantação no Brasil do comunismo soviético na sua ultima etapa, a da volta ao tzarismo, Dorinha se mantém ocupada o ano inteiro, o que não a impede de fazer a coisa que mais gosta, pelo menos entre as publicáveis: viajar.
Ela ainda se lembra do tempo em que mandava fazer vestido especialmente para andar de avião, e todos os seus maridos só viajavam de paletó e gravata, e em viagem você só encontrava contribuintes da mesma categoria tributária que você, ou pelo menos do mesmo grau de sonegação, enquanto hoje...
Mas deixemos que a própria Dorinha faça a sua queixa. Sua carta veio, como sempre, escrita com tinta turquesa em papel lilás, cheirando a “Mange moi”, um perfume recentemente denunciado pelo Papa Francisco para agradar à ala conservadora da Igreja.
Caríssimo! Roto-beijos! Bons tempos em que a gente viajava não para alargar nossos horizontes culturais, mas para, na volta, dar inveja nos que não podiam. Me lembro do tempo em que não se encontrava brasileiros nem em Miami. Encontrava-se muitos cubanos, é verdade. Se por alguma razão você exclamasse ‘Jesus!’ na rua, sempre tinha um por perto que respondia ‘Sí?’
Mas os cubanos eram simpáticos, e todos anticastristas, o que me enternecia a ponto de levar vários para a cama. Hoje Miami é um subúrbio do Brasil, e Orlando sua colônia de férias. Já tive a experiência de viajar para a Flórida num avião cheio de ruidosas crianças brasileiras a caminho da Disneyworld, o que só reforçou minha convicção de que Herodes foi um incompreendido.
Na Europa também era raro se encontrar alguém falando português, inclusive em Portugal. Lembro que um dos meus maridos brasileiros, cujo nome me escapa no momento, insistiu em visitar sua conta na Suíça (era um sentimental) e descobriu que o banco o identificava como ‘El mexicano’. Na época, nem corrupto nacional era reconhecido. Hoje você não pode andar na rua em Paris ou Londres sem ouvir português por todos os lados.
Você não pode, principalmente, falar mal do grupo na mesa ao seu lado porque é quase certo que sejam de Presidente Prudente e estejam entendendo tudo. Você sabe que eu sou uma democrata e até já dei jantar pro Lula — não com a louça boa, claro — mas é preciso haver um limite! Que graça tem chegar de viagem e contar o que eu vi para minha diarista e ela dizer que a catedral de Chartres é bonita, mas não se compara ao Taj Mahal? Assim, decididamente, não dá. Da tua lamurienta Dorinha.

2014 azul




2014 começou com borboletas azuis, gigantes e brilhantes. Daquelas maravilhosas, meio turquesa, meio royal, que frequentam listas de extinção. As que decoram, ao lado de ágatas, pratinhos de paredes – cafonas, mas vendidos até hoje para gringos em nossas lojas de souvenir. Empalhadas, essas mesmas: elas me saudaram nas primeiras manhãs do ano.
Pensando bem, nem sei se posso usar o plural. Vai ver que era uma só, a mesma, todo dia: afinal, continuam raras. E nunca vi mais de uma ao mesmo tempo. Várias ou única, a verdade é essa: sua Majestade Azul borboleteou à minha frente durante preciosos minutos, muitas vezes, quase sempre no mesmo horário.
O que eu bebi ou consumi? Nadica de nada. Sem alucinação; é tudo real, há testemunhas. Apenas visitei um modesto paraíso particular – na forma de jardim-caipira. No fundo, há uma pequena mata ciliar – e Madame Butterfly sai de lá avançando, serelepe, pelo quintal. Depois some rapidamente, de volta para casa.
 É claro que não há provas materiais. Não fui capaz de fotografá-la. Na verdade, nem tentei; seria imprudente. Tomava o café na escadinha que desce serpenteando no meio da grama para esperar, imóvel, a encantadora aparição de Sua Alteza.
Imagino que, como eu, muita gente goste de borboletas. Na juventude, na fase natureba-esotérica, admirei o significado de sua metamorfose: mudança e renascimento, o eterno ciclo vital. E até estampei borboletas azuis em camisetas. Mas confesso que não me lembrei disso: queria simplesmente ver o bicho, ponto final.
Como ela não se confundia com o céu? É que suas asas são iridescentes, têm um efeito madrepérola. Que privilégio: bela, mais que bela. Deve ter sido neste momento que pensei: vai ver que o melhor de 2014 já passou diante dos meus olhos! Calma: haverá muito (de bom) para ver e viver.
Será? Como a maioria dos jornalistas, tenho dificuldade para controlar o pessimismo. Com ele, são maiores as chances de acertarmos os prognósticos na política, na economia, na vida em sociedade. Sem ele ficamos desguarnecidos. Controlemo-nos: que venha o altíssimo verão, a Copa, a eleição, entremeados pelos rolês e rolés do rolex. Mas é janeiro-azul e ainda se pode dizer: Feliz 2014!

Mara Bergamaschi - jornalista e escritora. Foi repórter de política do Estadão e da Folha em Brasília. Hoje trabalha no Rio, onde publicou pela 7Letras “Acabamento” (contos,2009) e “O Primeiro Dia da Segunda Morte” (romance,2012). É co-autora de “Brasília aos 50 anos, que cidade é essa?” (ensaios,Tema Editorial,2010). 

Crônica semanal de Luis Fernando Veríssimo


Esse horror na penitenciária do Maranhão é apenas um exemplo extremo do descaso com que são tratados os apenados no Brasil. Em geral as prisões brasileiras são sucursais do inferno, e tem sido sempre assim, não importa quem governe. O que leva a pensar se não existe, por trás da insensibilidade hereditária, outra razão para o horror. Verbas para o sistema penitenciário estão tradicionalmente entre as últimas prioridades do país, o aumento da criminalidade lota prisões inadequadas, esquecidas pelo poder público, mas não é só isso.

Haveria outra lógica, inconsciente mas não menos culpada, justificando o descaso. Chamar as prisões de infernos, como é comum, nos dá uma pista do que seja essa outra lógica. De acordo com a cosmogonia cristã, o inferno é para onde vão os pecadores — para sempre. Pecadores não merecem perdão nem compaixão, seu sofrimento é contínuo e eterno.
Existiria a convicção, nunca reconhecida mas prevalente, de que bandido tem que sofrer mesmo, que deveria ter pensado no que o esperava no inferno da prisão antes de cometer seu pecado, e que a sociedade não lhe deve a consideração que daria a um animal.


Qualquer discussão sobre direitos humanos sempre empaca na questão dos limites de consideração que merece um criminoso. É comum acusarem os que se preocupam com os direitos humanos de qualquer humano, mesmo os criminosos, de ignorarem os direitos humanos das suas vítimas. O que é um falso silogismo.
Todo humano é humano antes de ser qualquer outra coisa, inclusive um monstro. Na questão de como castigar o criminoso é que seguidamente se sente, disfarçada ou não, a nostalgia da velha e boa, e acima de tudo simples, cosmogonia: o céu para os bons, o inferno e todas as suas agonias para os maus. Presos amontoados, matando-se uns aos outros — é pena, mas quem mandou serem maus?
Penitenciárias superlotadas e violentas não são vergonhas só brasileiras, claro. O problema de como alojar apenados, tratá-los como gente e se possível reabilitá-los é internacional. Mas as cenas da barbárie no Maranhão mostraram um grau de selvageria provocado pelos anos de indiferença que espantou o mundo. Chegamos a isto. Somos os campeões do descaso e das suas consequências.

Uma bandeira de paz em tempo de guerra


Cada dia na vida de uma pessoa é uma existência em miniatura e sempre cheia de surpresas. A vida não avisa. A vida acontece até o dia que não acontece. São bem poucos os que saem da vida por vontade própria e em momentos de extremado desespero. Muitos já se desesperançaram e chegaram a cogitar abreviar o compromisso de viver, mas depois, por algum detalhe ou uma dessas mesmas surpresas, determinam a mudança brusca da caminhada sem rumo daquele que tateia na aparente e oportuna estrada do desespero. Cada dia na vida de uma pessoa proporciona oportunidades de serem boas, gentis, solidárias, mas existem aquelas que se alimentam do fel ou de veneno, como aquele das piores cobras, que escorrem pelo canto das bocas curvadas para baixo. Nunca tive medo de alma, de fantasmas ou daqueles que me olham nos olhos e dizem lá as suas verdades ou me dão ciência dos seus queixumes, suas preferências, e falam de seus deuses, da sua fé, das suas crenças. Dia 3 passado, fiquei mais velho. Já percorri um grande caminho, vivi um monte, tentei ser bom na maioria das vezes e em muitas me enganei ou fui mau mesmo. Guardo pouco rancor e ódio mesmo sinto por bem poucos. Não perdoo punhalada pelas costas ou agressões igualmente oportunas pela facilidade que proporciona a ausência do "bola da vez". Qual a razão desse intróito?

Zuenir Ventura - podia ser pior

Não peço muito para 2014, até porque no ano passado, por essa mesma época, fiz uma lista de doze desejos e vejam abaixo algumas de minhas frustrações. Eu dizia, por exemplo, que ficaria feliz em 2013...
  • “Se o tricolor repetir o brilhante desempenho de 2012.” Não repetiu e ainda teve que apelar para o tapetão.

  • “Se os mensalões do PSDB e do DEM forem julgados pelo Supremo Tribunal Federal com o mesmo critério e rigor com que foram tratados os aloprados do PT. Não por represália, como querem alguns, mas por uma questão de equidade e justiça.” Continuo aguardando.
  • “Se eu não precisar embarcar (ou desembarcar) no aeroporto Galeão-Tom Jobim ou no Santos Dumont num dia de calor.” Sem comentários.
  • “Se as autoridades conseguirem impor a ordem no caos do nosso trânsito de cada dia — inclusive das bicicletas que em geral não respeitam as calçadas nem o sinal vermelho.” Piorou.
  • “Se o Rio continuar lindo e adorável — só que um pouco menos quente.” Como se sabe, ficou mais quente ainda.
  • “Se Alice superar a sua crise existencial por causa do ciúme do irmãozinho Eric.” Nem nisso fui atendido.

  • Se no próximo réveillon houver menos confusão do que neste que passou, com arrastões, roubos em frente ao palco principal e até troca de tiros, com doze pessoas feridas. A cena dos documentos roubados ou perdidos espalhados pelo chão de uma delegacia foi patética (ainda bem que o delegado foi exonerado). Saudades do tempo em que os turistas estrangeiros se extasiavam com o espetáculo e pediam explicação, como um francês me pediu uma vez: “Como é que vocês conseguem juntar 2 milhões de pessoas sem tumulto e violência?”

De qualquer maneira, em matéria de violência, o destaque não foi daqui, mas do eterno feudo dos Sarney, que já disputava o título de mais pobre. Agora, ostenta o de campeão no quesito barbárie. O que aconteceu em 2013 no Complexo Penitenciário de Pedrinhas, em São Luís, chocou os juízes do Conselho Nacional de Justiça: mais de 60 presos foram selvagemente assassinados dentro da prisão (alguns tiveram a cabeça decepada), onde também chefes de facção criminosa promoviam espetáculos de estupros de mulheres e irmãs de bandidos rivais à vista de todos.
O estarrecedor relatório do CNJ ao presidente do STF levou o governo do estado a ocupar o presídio com a PM. Parece que não adiantou muito. Logo nos primeiros dias deste ano, mais dois detentos foram encontrados mortos dentro de celas. Portanto, na hora de lamentar as mazelas do Rio, devemos nos lembrar de um consolo: é que podia ser pior, muito pior.
Podia ser o Maranhão.

Crônica semanal de Luis Fernando Veríssimo

Há muitas maneiras de se medir progresso, ou pelo menos mudanças históricas, além dos frios números de uma economia ou além da sociologia convencional. Muitas vezes o detalhe que não é notado é o mais revelador.
O Marshall McLuhan (lembra dele?) construiu uma tese inteira em cima da importância da invenção do estribo de cavalo na história do Ocidente. O estribo significou que o aristocrata também passasse a participar das batalhas junto com o pobre soldado a pé, com tudo que isso implicava de novo em questões como relações hierárquicas — e de mortandade entre aristocratas.
A história das armas de guerra, que no fim é a história da civilização, pode ser medida em detalhes como o aumento da distância possível para se matar um inimigo, começando com o olho no olho e o tacape na mão do tempo das cavernas, passando pela espada, a lança, o arco e flecha, a catapulta, o mosquete, o fuzil, o canhão, o bombardeio aéreo, etc. e culminando no drone teleguiado, o mais longe que se pode chegar do inimigo sem precisar olhar no seu olho.
Ainda não foi tema de nenhum tratado sociológico, que eu saiba, mas a diferença entre o status do negro nas sociedades americana e brasileira, uma evidentemente racista e outra pretensamente não, pode ser encontrada em um detalhe, a quantidade de pianistas negros nos Estados Unidos em contraste com quase nenhum no Brasil.
jazz teve duas vertentes, três se você contar os blues: as bandas de rua, que desfilavam, obviamente, sem pianos, e o ragtime, que era jazz exclusivamente de piano, já tocado, lá nas origens, por músicos negros como Jelly Roll Morton.
Pianistas negros pressupõem piano em casa, dinheiro para pagar as aulas, tempo para praticar — ou seja, pressupõem uma classe média. Em Nova Orleans e em outras capitais do Sul dos Estados Unidos, em meio ao apartheid oficial, à discriminação aberta, aos linchamentos e outros horrores, desenvolveu-se uma classe média negra, paralela à branca, com identidade e poder econômico próprios.
No Brasil do racismo que não se reconhece como tal, e talvez por causa disto, não aconteceu nada parecido.
Claro, a história econômica dos dois países explica o contraste, mais do que racismo declarado ou disfarçado, mas neste detalhe a diferença fica clara. No Brasil, como nos Estados Unidos, existem grandes músicos saídos de todas as classes sociais. Mas ainda não produzimos pianistas negros em número suficiente para desmentir a nossa hipocrisia racial.

O que tevai fazer sofrer em 2014?

O ano, como as pessoas, têm seu momento de senilidade, quando o futuro é curto e o fim é inevitável.
2013 está nessa fase.
Seus últimos dias se aproximando e o hábito de fazer checagens ficando cada vez mais urgente. É quando a gente olha pra trás e começa a perceber que não emagreceu os quilos que prometeu, que a academia foi ficando pra depois, que não produziu os textos que queria, não conseguiu ler mais, nem ver filmes, muito menos viajar.
O tempo, esse danado, foi passando e não deu a mínima aos planos. Enquanto seguimos fazendo o que de mais urgente aparece na nossa frente, nossas ambições de melhoria da vida vão sendo deixadas de lado.
Além de mim e de você, quantas outras pessoas não devem ter passado pelo mesmo?
Talvez, o chefe escroto tenha prometido pegar mais leve. Talvez, alguém próximo tenha prometido assumir a responsabilidade sobre as próprias falhas, ao invés de colocar a culpa em alguém. Talvez, o casamento tenha sido foco da promessa de alguma das partes: “agora vai”!
Mas nem tudo é desastre, nem tudo é catástrofe. Às vezes as coisas dão certo.
Um filho pode ter nascido. Um casamento pode ter se feito com uma bela cerimônia. Muitos amigos podem ter sido visitados. Ou, quem sabe, até aquelas promessas mais bobas que a gente nunca cumpre podem ter sido levadas a cabo, até o fim. Empregos, carros, casas novas, mudanças. Você pode ter conhecido alguém que fez esse coraçãozinho bobo sacolejar no peito. Sim, bons desfechos podem ter ocorrido.
Mas, também devemos lançar um olhar mais sincero a essas histórias que vamos contar sobre o ano que vai nos deixando. Sabemos que cada felicidadezinha, cada pequena vitória, cada suspiro de alívio vem acompanhado de algumas gotas de suor escorrendo pela testa. A gente sofre tentando ser feliz.
É aí que a gente começa a se ver repetindo aquilo que fez no começo do ano e as promessas de 2013 se transformam nas promessas de 2014. Afinal, é uma nova chance que surge.
Nada mais justo do que tentar outra vez.
Mas, aqui, queria propor um lembrete, para antes de girarmos novamente a roda do tempo.
Já parou pra pensar que as suas apostas e promessas serão as razões pelas quais você vai sofrer em 2014?
Luciano Ribeiro

Editor do PapodeHomem, ex-designer de produtos, apaixonado por ilustração, fotografia e música. Ex-vocalista da banda Tranze (rock’n roll). Volta e meia grava músicas pelo Na Casa de Ana. Escreve, canta, compõe e twitta pelo @lucianoandolini.

Outros artigos escritos por 

As personalidades de 2013, por Luis Fernando Veríssimo

Como descobridor da Léa Seydoux — ela fazia uma ponta como mulher do rei no “Robin Hood” do Ridley Scott, antes de trabalhar com o Woody Allen e outros (até como bandida no último “Missão Impossível”), coisa que ninguém fora eu, em todo o mundo, notou — não tenho desculpa para não ter visto o seu “Azul é a cor mais quente”, em 2013.
Dizem que foi o grande filme do ano. Mas não fui muito ao cinema em 2013. Gostei daquele brasileiro “O som ao redor” ou coisa parecida. E sofri muito com a coitadinha da Sandra Bullock perdida no espaço em “Gravidade”, um filme fascinante, não só pelo malabarismo técnico. Ótima também a Cate Blanchett no “Blue Jasmine”, sofrendo tanto quanto a Sandrinha, mas com os pés no chão.
Personalidade do ano? Vamos ver. O Papa Francisco. Está certo, é bom ter um Papa do Hemisfério Sul, para variar, mas precisava ser argentino? Alguém já disse que humildade demais é uma forma de soberba. No caso do Francisco, simplicidade demais pode ser diversionismo, ainda mais que as principais posições retrógradas da Igreja não parecem correr muito perigo, no seu papado. Vamos ver. 
No segundo lugar na lista das personalidades de 2013 dá empate: Joaquim Barbosa e Neymar. O presidente do STF é visto por uns como herói, por outros como um Grande Inquisidor fora de época. A maioria vai esperar para ver como o STF se comporta no julgamento do mensalão de Minas e dos cartéis de São Paulo — se é que haverá julgamentos.
Há quem diga que só será possível confiar na Justiça brasileira cem por cento quando, numa pelada entre times de presos no pátio da Papuda, o PT e o PMDB joguem cada um com 11. Quanto ao Neymar, não é verdade que o Messi se machucou providencialmente, para sair do time e não ser comparado com ele. Mas é certo que Neymar foi o brasileiro com melhor atuação no ano, em qualquer atividade.
Nas outras posições entre personalidades destacadas de 2013 vêm o Marco Feliciano como o mais lamentável do ano, o filho do príncipe William e da Kate como a pessoa com a melhor perspectiva para o futuro do ano e o Eike Batista com a pior.

Crônica semanal de Luis Fernando Veríssimo

Há dias, na sua coluna, num texto exemplar como sempre, o Zuenir Ventura lembrava que há 45 anos era assinado o Ato Institucional n° 5, que instaurava a ditadura sem disfarces no Brasil. Congresso fechado, fim dos direitos constitucionais, censura e repressão a valer, poderes absolutos para o governo militar, e que se danassem os escrúpulos.
Os escrúpulos não tinham sido suficientes para deter o golpe de 64, mas alguns ainda sobreviveram por quatro anos. O AI-5 acabou com todos. Também é bom e saudável não esquecer o clima de antiesquerdismo furioso que justificou o golpe de 64 e o golpe dentro do golpe de 68. Ser “de esquerda” era um risco, durante o recesso dos escrúpulos.
Pode-se imaginar que a renúncia aos escrúpulos entre os que assinaram o AI-5 significasse um drama de consciência para alguns, mas foi a desobrigação com qualquer escrúpulo que liberou a mão do torturador. Com a “abertura” foram restituídos os escrúpulos.
Hoje quem é — ou pretende ser — “de esquerda” só se arrisca a ouvir o rosnar da direita, que não parece ser preâmbulo de nada parecido com o que já houve. Mas não custa ficar de sobreaviso, né, Zuenir?

Luis Fernando Veríssimo - embrutecimento

Sabe qual foi a primeira coisa que eu pensei vendo aqueles animais trocando socos e pontapés no estádio, chutando a cabeça de “inimigos” caídos e só não se matando por falta de armas, salvo pedaços de pau? As lutas de “ultimate fighting” na TV. Nada a ver, eu sei.
Uma coisa é um espasmo coletivo de irracionalidade, a outra o enfrentamento de dois lutadores preparados, com força equivalente e regras estabelecidas. O que aproxima as duas coisas é a estupidez.
A mesma estupidez que parece dominar essa assustadora arena de insultos e ameaças que é a internet e que, cada vez mais, no Brasil, também domina o debate político e jornalístico, em que termos como “idiota” são muitas vezes os mais suaves que se ouve ou que se lê. O clima é de embrutecimento generalizado. Chutes na cabeça, reais ou figurados, são legitimados pelo clima.
Falemos, pois, das amenidades restantes. Da Fernanda Lima no sorteio das chaves para a Copa, por exemplo. Da sua simpatia, da sua competência, do seu inglês perfeito, do seu decote. 
Não sei se já nasceu o movimento “Fernanda Lima 2014”,

crônica semanal de Luis Fernando Veríssimo

Tudo é vaidade.
Tem aquela do cara que invade uma delegacia de polícia e exige falar com o desenhista.
— Com quem?
— Com o desenhista. O que faz retratos falados. Quero falar com ele agora!
— Espera aí. Você não pode entrar aqui assim e...
— Não interessa. Quero falar, imediatamente, com quem fez isto.
E o homem mostra um cartaz em que aparece o desenho de um rosto e escrito, em cima, “Procura-se”. Insiste:
— Se ele não aparecer logo, eu quebro esta joça!
— Calma, cidadão. Calma.
Tantas o homem faz que o desenhista é localizado e trazido à sua presença. O homem mostra o cartaz e pergunta:
— Isto se parece comigo?
— Bom, eu...
— Não. Me diga. Esta cara se parece vagamente com a minha?
— É que eu...
— Olha o meu nariz e olha o nariz do desenho. Desde quando eu tenho um nariz assim? E a boca?
— É que eu me guiei pela descrição da testemunha...
— Não. Não tente transferir sua culpa. O desenho é seu. É a minha cara falsificada que está por aí, colada em tudo que é poste da cidade. E eu exijo retratação. Ou, no caso, rerretratação.
Um policial de plantão interfere:
— Você está preso.
— Eu sei — diz o homem. E, para o desenhista:
— Assim você terá o tempo que quiser para refazer meu retrato, usando o original como modelo.
— Está bem — diz o desenhista.
— Certo, desta vez!

Crônica semanal de Fernando Veríssimo

Me lembro do meu pai treinando seu francês para o discurso que faria em saudação ao Albert Camus, que estava no Brasil e visitaria Porto Alegre. Era “Camus” com final “mus” como em “músculo” ou “Cami”?
Eu só sabia que era um francês importante. Depois ele falou mal da sua visita. Nunca ficou claro o que o desagradara tanto no Brasil. Seu desgosto foi com todo o país, não só com Porto Alegre. O que pelo menos livrou a pronúncia do meu pai.
Antes de ler qualquer coisa do Camus, eu já sabia da vida dele, instigado por aquela sua visita à minha cidade quando eu tinha 13 anos. Sua infância na Argélia, sua atuação na resistência durante a ocupação nazista da França, e — o que mais me interessava — o fato de ele ter sido goleiro na juventude.
Mais tarde, quando comecei a ler sua obra, me interessei pelo mito inteiro. Sua definição do absurdo da existência na figura de Sísifo, sua posição ambígua diante da guerra de independência da Argélia, seus desentendimentos com Sartre, seu Prêmio Nobel (que Sartre também ganhou, mas se recusou a receber) e sua crescente reputação entre os intelectuais da época como alternativa para o engajamento radical do Sartre, e entre as leitoras da época como a personificação do escritor enquanto galã.
Este ano comemora-se o centenário do nascimento de Camus, cujo nome e cuja influência, acho eu, duraram mais do que as do Sartre. O dele ainda é um modelo de engajamento a ser seguido.
Numa entrevista publicada na “Les Nouvelles Littéraires” em 1951, ele qualifica a conclusão, representada no mito de Sísifo e o eterno retorno da sua pedra, de que a condição humana é um absurdo inescapável. Diz Camus: “Nada realmente tem sentido? Nunca acreditei nisso. Enquanto escrevia ‘O mito de Sísifo’ eu já pensava no ensaio sobre a revolta que escreveria em seguida.”
O ensaio citado pelo autor é o livro “O homem revoltado”, uma receita para que a vida faça sentido, na revolta contra a injustiça.

Menos perssuação

Acontece muito: Escrevo sobre monogamia e algumas pessoas acham que estou tentando convencê-las a abraçar o poliamor; escrevo sobre ateísmo e acham que estou tentando convencê-las a abdicar de seus deuses; etc etc.
Esse comentário é puro ego, um sintoma do narcissismo galopante do nosso tempo.
Nem tudo que alguém escreve, ainda mais se a pessoa nem te conhece, é sobre você, gira a sua volta, quer te convencer de alguma coisa. repita comigo:
Escrevo sobre estilos de vida alternativos não para convencer quem optou pela escolha da maioria (faz sentido tentar convencer alguém que deus não existe ou que a monogamia é castradora?) mas para mostrar às pessoas que já pensam como eu que a escolha da maioria é somente isso: uma escolha.
Que elas não precisam escolher o que todo mundo escolheu. que existem outras possibilidades, outros caminhos, outras opções.
Que elas não estão sozinhas. que não são as únicas que pensam como pensam. que não são loucas por rejeitar o caminho mais trilhado. que são livres. livres.
Se você está feliz com seus deuses e com sua monogamia e com as suas escolhas, então, eu fico sinceramente feliz por você. e te pergunto: por que veio se enfiar logo aqui, em plena conversa de uma pessoa insatisfeita com outras pessoas insatisfeitas? 
O assunto não é você. não é de você que estamos falando. não queremos te convencer de nada.
Fica em paz. e, se as suas escolhas algum dia começarem a te oprimir, você sabe onde estamos. sinta-se sempre livre para juntar-se a nós.
Se você é uma pessoa insatisfeita com as escolhas que nos foram impostas, dê uma olhada nos links abaixo:

8 vantagens de ter poucas coisas

  • organização: menos coisas são mais fáceis de serem organizadas
  • limpeza: mais fácil limpar um ambiente com menos coisas
  • espaço: você precisa de menos espaço para guardar coisas; com menos espaço você aprende a escolher o que entra e o que sai de sua vida
  • agilidade: maior facilidade de deslocamento. numa mudança ou numa viagem tudo fica mais fácil
  • prioridade: você aprende a escolher aquelas coisas que realmente importantes; isso é físico, mas acaba se transferindo para áreas emocionais e mentais da sua vida
  • economia: você precisa de menos dinheiro para manter e comprar coisas novas e, portanto, precisa vender menos de seu tempo (em troca de dinheiro) para adquiri-las; talvez você precise trabalhar apenas duas horas por dia em vez de oito; talvez você possa trabalhar 15 horas por dia em algo que não pague tão bem (em dinheiro), mas que seja mais significativo para você
  • qualidade: em vez de ter 10 camisas, você pode ter duas de excelente qualidade, de uma marca realmente boa; economizando em móveis, talvez você possa adquirir um computador cuja configuração dure mais que apenas dois anos ou um celular que possa servi-lo por mais tempo
  • tempo: gastando menos tempo em organização, limpeza e gerenciamento de coisas e na aquisição de coisas, sobra mais tempo para aquilo que você considera realmente importante, seja lá o que for
Tempo é o único bem realmente importante que você tem e, agora mesmo enquanto lê este texto, ele está acabando. Dar uma finalidade significativa a esse bem exige esforço (do tipo importante) e autoconhecimento. tenho a impressão que preenchemos esses dois itens com a quantidade enorme de coisas que possuímos. talvez por medo, talvez por ignorância, talvez por não saber direito para onde queremos ir. o motivo da troca de nosso tempo por coisas é, no entanto, razão para outro artigo.

Crônica semanal de Luis Fernando Veríssimo

Degenerados
Descobriram num apartamento da cidade de Augsburg, perto de Munique, Alemanha, mais de 1.400 quadros desaparecidos durante a Segunda Guerra Mundial. Os quadros incluem pinturas e desenhos de expressionistas alemães como Georg Grosz e Max Beckmann mas também de artistas como Matisse, Chagal, Renoir, Toulouse-Lautrec, Picasso e outros mestres europeus.

A descoberta, segundo o “New York Times”, foi há algum tempo, mas as autoridades alemãs só a noticiaram agora porque temiam que a revelação aumentasse a grossa confusão sobre a propriedade das obras encontradas.
Elas são, obviamente, produto da pilhagem de museus e coleções privadas dos territórios invadidos pelos nazistas na guerra. Mas estavam no apartamento de um descendente de Hildebrand Gurlitt, que, apesar de ser judeu, foi o escolhido por Goebbels para avaliar e ajudar a vender os quadros e era, legalmente, o dono do tesouro.
As obras incluem o que Hitler chamava de arte “degenerada” — os expressionistas alemães, principalmente — que pela sua vontade deveria ser destruída, e as de grande valor comercial, cuja venda reforçaria os cofres do Terceiro Reich.
Mas na promiscuidade do achado não se distingue umas das outras, e não deixa de haver uma triste ironia no fato de os mestres do impressionismo francês, por exemplo, estarem de novo na companhia de “degenerados”, como no famoso Salão dos Rejeitados em Paris, que reuniu os enjeitados pelos acadêmicos da época, e de onde saiu a grande arte do século XIX.
Ainda existem milhares de obras de arte desaparecidas na guerra, das quais não se tem notícia. Mas aos poucos elas reaparecem. Arte é difícil de matar. Inclusive a “degenerada” . Há pouco estive num museu em Munique em que havia uma exposição dos expressionistas alemães. Todos mortos, e todos vivíssimos.

Não aguento mais esses cronistas que escrevem como se seu umbigo fosse o centro do Universo quando todo o mundo sabe que o MEU umbigo é que é o centro do universo

Ele é o centro constante das minhas atenções como o centro do meu corpo, e onde ele vai eu vou junto, e vice-versa, certo de que todos se interessarão pelas nossas venturas e desventuras. O assunto do cronista é sempre o próprio cronista. Ou seu próprio umbigo e suas circunstâncias.
Digressão: o umbigo foi sempre um problema para a arte religiosa. Era impossível retratar Adão e Eva no Paraíso sem seus respectivos e anacrônicos umbigos — prova física da existência de partos ortodoxos em algum momento da criação.
A solução foi chamar os primeiros umbigos de marcas do dedo de Deus, o lugar em que o Criador cutucou Adão e Eva e os instigou a viverem e se multiplicarem, aquela história.
Achei que gostaram de saber que eu e meu umbigo andamos pela Toscana nas férias, entre Montalcino, Montepulciano, San Quirico, Siena, Pienza e outras cidades mágicas, e que na praça principal de Pienza nos aproximamos de uma dupla que tocava chorinho — ela, com cara de brasileira mas italiana, na flauta, ele, com cara de europeu mas brasileiro, no violão.
Já tinha nos impressionado o número de brasileiros encontrados em toda parte. Em Pienza, quando a dupla começou a tocar “Carinhoso”, toda a praça cantou junto. Ou foi uma alucinação minha, fruto, quem sabe, do “Brunello” do almoço, ou havia mais brasileiros na Toscana do que imaginávamos.
por Luis Fernando Veríssimo


Era uma vez

...digamos asssim, um Mundão.

Mundão queria fazer X da sua vida. mas o pai, a mãe, a sociedade, a mídia, o professor, o zé do 502, etc, disseram que betão iria se fuder se fizesse X, não iria ganhar dinheiro, não iria ter vida sexual, etc. aí, moço de bom-senso que sempre foi, betão sacrificou sua vida, recalcou suas vontades, fez tudo exatamente como mandaram e viveu a vida que projetaram pra ele e não a vida que queria viver.
Um dia, apareceu o Claudio Gustavo.
claudio gustavo vivia exatamente a vida que o betão sempre quis viver e, pasmem, claudio gustavo não se fodeu, se sustentava, tinha uma vida sexual e amorosa, etc -- nenhum daqueles medos que colocaram na cabeça do betão se realizou.
betão poderia tomar o simples fato da existência do Claudio Gustavo como um exemplo positivo para mudar sua vida, recuperar o tempo perdido, tentar fazer o que sempre quis.
mas mudar a vida dá um trabalho danado. além disso, Mundão agora já estava muito investido vivendo a vida que tinham mandado ele viver. Na verdade, aconteceu o contrário: Mundão tomou o simples fato da existência do Claudio Gustavo como exemplo negativo.
Sem nem entender direito o motivo e de forma totalmente inconsciente, betão desenvolveu verdadeira ojeriza ao Claudio Gustavo.
Agora, quando betão se senta entre outros homens que também viveram as vidas que lhes mandaram viver, exaustos de tanto trabalhar, cheios de dívidas e bebendo muito, a ojeriza geral ao Claudio Gustavo é tão auto-evidente que não precisa nem mesmo ser articulada ou justificada.
Enquanto isso, o Claudio Gustavo continua lá, vivendo a vida que escolheu, sem nem se dar conta de estar agredindo tanta gente.


Ajudar é muito difícil. Aceitar ajuda pode ser mais difícil ainda.

Ajudar é muito difícil.
É difícil se reconhecer em posição superior e, mesmo assim, se abaixar para socorrer outra pessoa sem demonstrar soberba ou arrogância, sem cobrar e sem humilhar.
Aceitar ajuda é muito difícil.
É difícil se reconhecer em situação precária e vulnerável, se admitir precisando de ajuda. É difícil aceitar essa ajuda de maneira não-humilhante e digna, mantendo intacto nosso respeito-próprio. É difícil às vezes engolir pequenas insensibilidades por parte das pessoas que nos ajudam – rudezas que ofendem mas não anulam o efeito positivo da ajuda.
Quando dividia minha sala de aula em pares, sempre fazia questão de juntar uma pessoa que tenha mais facilidade na matéria com uma outra que esteja passando por dificuldades.
Se você tem facilidade em uma matéria e está indo bem, é importante que aprenda que nem todas as pessoas têm essa mesma facilidade que você, que algumas colegas precisam de mais ajuda e que você pode ser a pessoa a oferecer essa ajuda, de igual para igual, com generosidade.
Se você tem dificuldade em uma matéria e está indo mal, é importante que aprenda a reconhecer a sua dificuldade, que saiba pedir e aceitar ajuda. E, mais importante ainda, que durante o laboratório de química, que você domina mas que outras pessoas não conseguem nem começar, que se lembre da colega que tinha facilidade em línguas e te ajudou com a conjugação dos verbos.
* * *
Eu ensinava espanhol, português e cultura brasileira em uma universidade norte-americana. Mas, se minha turma saísse do curso sabendo ajudar e aceitar ajuda, já teria sido bem mais importante do que saber diferenciar ser e estar.
Alex Castro

alex castro é. por enquanto. em breve, nem isso. // todos os meus textos são rigorosamente ficcionais. // se gostou, mande um email, me siga no facebook, compre meus livros, faça uma doação ou venha às minhas palestras. e eu te agradeço.

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Um homem ridículo pode mudar a vida da gente.

Estava eu sentado em uma mesa de calçada, tomando meu café da manhã, quando passa por mim um homem ridículo.
Andando pela rua de forma confiante e decidida. Completamente ignorante do fato de ser tão ridículo. De estar tão fora do padrão, da regra, do correto. De ser tão feio, tão mal-vestido, tão tosco. O homem ridículo estava todo errado.
ão vou descrever o homem ridículo. Seria impossível descrevê-lo sem ser cúmplice de sua ridicularização, sem fazer vocês também o acharem ridículo.
Porque, um segundo depois, bateu a culpa, caiu a ficha, estourou a consciência.
E pensei: para uma ou mais pessoas, esse homem ridículo é a pessoa mais amada da vida, a pessoa mais importante do mundo. Para algumas pessoas idosas, ele sempre vai ser o bebê lindo que foi um dia, a criança cheia de promessa, o adolescente vigoroso e energético.
Que apesar dele estar passando pela rua a vinte metros de mim, de eu só estar enxergando-o por breves segundos, de eu nunca ter ouvido sua voz ou interagido com ele de qualquer maneira, de ele ser para mim só um figurante sem fala no ó-tão-importante filme da minha vida, de ele ser apenas uma figura de cartolina exemplificando o total oposto do padrão de beleza vigente….
Que ele era uma pessoa.
Caralho, uma pessoa.
Vocês entendem a enormidade disso?
Uma pessoa igual a mim. A MIM! Com os mesmos sentimentos. Que dá tanta importância a si mesmo quanto eu me dou. Que sempre viu tudo pelos seus próprios olhos. Que sempre sentiu todas as suas dores. Uma pessoa plena. Um homo sapiens adulto. Um indivíduo da espécie dominante do único planeta habitado que conhecemos. Por tudo que se sabe, ele é o ápice da evolução do cosmos. Ali, passando por mim, já se afastando. Tão ridículo.
Se esse homem ridículo morresse hoje, agora, fulminado por meu implacável julgamento, haveria gente sofrendo dor profunda, chorando, trabalhando o luto, relembrando melhores momentos compartilhados. Aquele homem ridículo deixaria um vazio talvez insuperável em corações que nem conheço.
Então, ele sumiu atrás de uma esquina, mas apareceu uma senhora de vestido verde, depois, uma adolescente patinadora, um ruivo e seu beagle, um gari de laranja, e foi quase que como uma sobrecarga de informação: todos pessoas. Cada um. Nenhum deles figurantes do filme da minha vida. Todos protagonistas de seus próprios filmes. Pessoas plenas.
Aí, finalmente, me dei conta: o único homem ridículo ali era eu.
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Alex Castro

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