UMA DAS COISAS BOAS da vida é entrar numa livraria num aeroporto. Você está prestes a subir num avião e vai ter a chance rara de ler sossegado. Como alguém sabiamente já escreveu, a melhor maneira de afastar um conversador inoportuno num vôo é com um livro.
E então.
Eu estava indo para Zurique, na Suíça, para cobrir o Fórum Econômico Mundial em Davos. Numa das várias livrarias de Heathrow, entrei e procurei alguma coisa simples, embora tivesse já alguns livros na bagagem de mão. É uma viagem curta, pouco mais de duas horas, mas sou paranóico sobre leitura a bordo.
Gosto da diversidade e da quantidade.
Vi um título que me chamou a atenção: 50 Pessoas Que Sodomizaram A Grã-Bretanha, de Quentin Letts. (50 People Who Buggered Up Britain.) Um livro indicado para uma viagem. Você pode ler um, dois, três capítulos, quantos quiser ou puder: são, como acontece com toda lista, independentes.
Comprei.
Passei os olhos. Vi o dono da Starbucks, Howard Schultz, que nem britânico é. Ele estava ali porque acabou com o café barato e informal no Reino Unido. Até a missão da Starbucks é vítima de uma bordoada por dar um ar solene a uma banalidade como vender café e capuccino. Um texto ferino, bom de ler, conciso.
Humor inglês.
Mas quem mais me surpreendeu ali, entre os coveiros, foi Margaret Thatcher, a primeira-ministra que entre 1979 e 1990 chacoalhou os britânicos. Thatcher aparece numa ilustração com o cabelo armado, um sorriso ambíguo e uma picareta nas mãos. Ela está na lista porque, segundo o autor, dividiu dramaticamente os britânicos. Foi, diz ele, mais dura do que precisava com os sindicatos, sobretudo o dos mineiros, e ergueu um muro entre pobres e ricos.
Thatcher é um caso exemplar de transitoriedade da glória. Nos aos 80 e em parte dos 90, parecia um colosso eterno. Sua pregação pelo livre mercado, pela desregulamentação e pela privatização encontrou tanto eco que percorreu o mundo. No Brasil, Fernando Collor de Mello, ao assumir a presidência em 1990, anunciou um projeto de governo copiado e colado do thatcherismo. Isso aconteceu em muitos lugares.
OS ANOS 2000 diminuíram Thatcher. A crise econômica mundial mostrou o quanto mercados sem regulamentação podem ser perigosos. Grandes bancos internacionais, sem rédea nenhuma, se deixaram levar pela ganância e só não quebraram porque os governos os socorreram com muitos bilhões de dólares.
A ação dos governos, imperiosa porque quebradeira de bancos arruina a economia e provoca um caos na vida dos cidadãos, também machucou o legado de Thatcher. Governo bom é governo que não intervém, que não socorre ninguém em apuros no mundo dos negócios. Era o credo de Thatcher, e foi destruído pelas circunstâncias.
Nada é definitivo. Essa é a maior lição que se extrai das reviravoltas em relação ao prestígio de Margaret Thatcher. Hoje, aos 85 anos, tornada baronesa, ela está recolhida, em sua mansãoo londrina, e sofre de demência. Pergunta pelo marido morto e está longe do seu filho favorito, Mark, o homem imprestável que lhe deu dois netos para os quais ela jamais foi uma avó tal como concebemos uma.Os conservadores que ela levou ao poder depois de muitos anos sob os trabalhistas não falam dela. Mantêm distância de seu nome e de suas idéias.
Mais ou menos como Serra, em 2002, em relação a Fernando Henrique. Numa escala maior, talvez.
Os primeiros sinais de desgaste de sua imagem apareceram na cúpula do partido de Thatcher e logo em seguida em seu gabinete. Era o final da década de 80. Thatcher já estava há dez anos no poder e queria mais. Seus ministros foram vitais em sua queda. Traíram a mulher que os pusera onde estavam, mas que batia duro. Segundo relatos do círculo do poder, um dos ministros, o único remanescente da equipe original montada em 1979, era tratado como uma mistura de saco de pancada e capacho.
A BELEZA DA DEMOCRACIA é que Thatcher simplesmente foi embora da Downing 10, a casa e escritório do primeiro-ministro em Londres. Numa ditadura, ela teria sido assassinada. Béria, o chefe da polícia soviética, queria suceder Stálin. Morto Stálin, em 1953, Béria se apressou em beijar o defunto antes que qualquer outro rival.
Era uma mensagem que ele queria transmitir. Sou eu, prestem atenção, camaradas. Só que os camaradas se uniram e executaram sumariamente Béria 100 dias depois da morte de Stálin. Em ditaduras, quase sempre, chefe que cai é chefe morto. Ministros e demais autoridades poderosas também.
Churchill, o homem que comandou os britânicos na guerra feroz travada contra os nazistas, disse que a democracia é o pior dos regimes, exceto todos os outros.
O caso de Thatcher, derrubada em perfeito estado de saúde e pronta para ganhar um dinheiro monstruoso em palestras, como acontece hoje com tantos ex-chefes de Estado influentes, é uma demonstração do acerto da frase clássica de Churchill.
POR PAULO NOGUEIRA