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Crônica do dia


Mateus, Drummond e o leiteiro que morreu
Mateus  Batista Rodrigues, de Goiânia, subiu ao telhado com a agilidade de seus 22 anos, para instalar um aparelho de ar condicionado, destes de “unidade externa”, na casa de uma senhora, que, caprichosa, na certa não queria o monstrengo na fachada.
Como o moço de Drummond, que era  leiteiro, acordava bem cedinho para distribuir leite bom para gente ruim, Mateus levava ar fresco para gente de cabeça quente, como há tanta neste país.
Tinha um ano apenas a mais que o leiteiro do poeta, moço morador na Rua Namur, empregado no entreposto, com 21 anos de idade, e decerto não sabia bem quanto bem faria,  pondo talvez amores onde antes haveria suores e maus humores.
Também não sabia, como o leiteiro, que havia um vizinho assustado, daqueles que, diz o mestre,  logo faz saltar da gaveta para a mão o revólver, porque ladrão se pega com tiro.
Ainda mais, porque era guarda, e guarda sempre ele tinha razão.
E Mateus, do mesmo jeito, estatelou-se no chão. Em lugar do leite e sangue com que Drummond fez a cor da aurora, talvez os canos de cobre que emendava tenham cintilado como o sol que seus olhos viram sumir, devagar, num reverso de amanhecer.
Deu mais sorte o goiano que o mineiro, está brigando num hospital para, de pulmão perfurado, respirar por sua, quem sabe, longa vida, porque a dona do telhado impediu o segundo tiro.
O vizinho assustadiço, no poema de Drummond, foge pra rua: “Meu Deus, matei um inocente./Bala que mata gatuno/também serve pra furtar/a vida de nosso irmão.”
Este outro vizinho também fugiu, mas talvez sem doer-lhe sequer a consciência: “Quem manda andar lá por cima/onde só os gatos vão/Menino apanhando pipa/é aprendiz de ladrão.”
E acabou a poesia, porque o seu juiz mandou: susto, medo, emoção ou surpresa perdoam o furo em Mateus, que não mais galgará telhados para trazer o ar fresco, tão bom quanto o leite fresquinho do leiteiro.
Fernando Brito - Tijolaço
Vida que segue...



O escrete de loucos, por Nelson Rodrigues



"Repito: o brasileiro é uma nova experiência humana. O homem do Brasil entra na história com um elemento inédito, revolucionário e criador: a molecagem."

Amigos, a bola foi atirada no fogo como uma Joana d’Arc. Garrincha apanha e dispara. Já em plena corrida, vai driblando o inimigo. São cortes límpidos, exatos, fatais. E, de repente, estaca. Soa o riso da multidão — riso aberto, escancarado, quase ginecológico. Há, em torno do Mané, um marulho de tchecos. Novamente, ele começa a cortar um, outro, mais outro. Iluminado de molecagem, Garrincha tem nos pés uma bola encantada, ou melhor, uma bola amestrada. O adversário para também. O Mané, com quarenta graus de febre, prende ainda o couro.
A partida está no fim. O juiz russo espia o relógio. E o Brasil não precisa vencer um vencido. A Tchecoslováquia está derrotada, de alto a baixo, da cabeça aos sapatos. Mas Garrincha levou até a última gota o seu “olé” solitário e formidável. Para o adversário, pior e mais humilhante do que a derrota, é a batalha desigual de um só contra onze. A derrota deixa de ser sóbria, severa, dura como um claustro. Garrincha ateava gargalhadas por todo o estádio. E, então, os tchecos não perseguiram mais a bola. Na sua desesperadora impotência, estão quietos. Tão imóveis que pareceram empalhados.

»Confira a íntegra do livro

Garrincha também não se mexe. É de arrepiar a cena. De um lado, uns quatro ou cinco europeus, de pele rósea como nádega de anjo; de outro lado, feio e torto, o Mané. Por fim, o marcador do brasileiro, como única reação, põe as mãos nos quadris como uma briosa lavadeira. O juiz não precisava apitar. O jogo acabava ali. Garrincha arrasara a Tchecoslováquia, não deixando pedra sobre pedra. Se aparecesse, na hora, um grande poeta, havia de se arremessar, gritando: — “O homem só é verdadeiramente homem quando brinca!” Num simples lance isolado, está todo o Garrincha, está todo o brasileiro, está todo o Brasil. E jamais Garrincha foi tão Garrincha, ou tão homem, como ao imobilizar, pela magia pessoal, os onze latagões tchecos, tão mais sólidos, tão mais belos, tão mais louros do que os nossos. Mas vejam vocês: de repente, o Mané põe, num jogo de alto patético, um traço decisivo do caráter brasileiro: — a molecagem.
O Hélio Pellegrino, que é poeta e psicanalista, dizia-me, outro dia: — “O brinquedo é a liberdade!” E para Garrincha, o brinquedo, no fim da batalha, foi a molecagem livre, inesperada, ágil e criadora. Varou os pés adversários, as canelas, os peitos. Não tinha nenhum efeito prático a sua jogada arrebatadora e inútil. Mas o doce na molecagem é a alegria insopitável e gratuita. E não houve, em toda a Copa, um momento tão lírico e tão doce.
Amigos, ninguém pode imaginar a frustração dos times europeus. Eles trouxeram, para 62, a enorme experiência de 58. Jogaram contra o Brasil na Suécia, trataram de desmontar o nosso futebol, peça por peça. Toda a nossa técnica e toda a nossa tática foram estudadas com sombrio élan. Sobre Garrincha, eis o que diziam os técnicos do Velho Mundo: — “Só dribla para a direita!” Era a falsa verdade que se tornaria universal. O próprio Pelé parecia um mistério dominado.
Após quatro anos de meditação sobre o nosso futebol, o europeu desembarca no Chile. Vinha certo, certo, da vitória. Havia, porém, em todos os seus cálculos, um equívoco pequenino e fatal. De fato, ele viria a apurar que o forte do Brasil não é tanto o futebol, mas o homem. Jogado por outro homem o mesmíssimo futebol, seria o desastre. Eis o patético da questão: — a Europa podia imitar o nosso jogo e nunca a nossa qualidade humana. Jamais, em toda a experiência do Chile, o tcheco ou o inglês entendeu os nossos patrícios. Para nos vencer, o alemão ou o suíço teria de passar várias encarnações aqui. Teria que nascer em Vila Isabel, ou Vaz Lobo. Precisaria ser camelô no largo da Carioca. Precisaria de toda uma vivência de botecos, de gafieira, de cachaça, de malandragem geral.
Aí está: — no Velho Mundo os sujeitos se parecem, como soldadinhos de chumbo. A dessemelhança que possa existir de um tcheco para um belga, ou um suíço, é de feitio do terno ou do nariz. Mas o brasileiro não se parece com ninguém, nem com os sul-americanos. Repito: o brasileiro é uma nova experiência humana. O homem do Brasil entra na história com um elemento inédito, revolucionário e criador: a molecagem. Citei a brincadeira de Garrincha num final dramático de jogo. Era a molecagem. Aqueles quatro ou cinco tchecos, parados diante de Mané, magnetizados, representavam a Europa. Diante de um valor humano insuspeitado e deslumbrante, a Europa emudecia, com os seus túmulos, as suas torres, os seus claustros, os seus rios.
Vocês assistiam, pelo videoteipe, todos os jogos. O europeu aparecia com uma seca, exata objetividade, sem uma concessão ao delírio. Ele próprio se engradava dentro de um esquema irredutível. Ao passo que o Brasil faz um futebol delirante. Numa simples ginga de Didi, há toda uma nostalgia de gafieiras eternas. O nosso escrete era vidência, iluminação, irresponsabilidade criadora. Só a Espanha é que chegou a lembrar o Brasil. Seu escrete parecia passional também. Mas logo se percebeu a falsa semelhança. Os espanhóis têm uma paixão sem gênio, uma paixão burra. Chegaram a nos ameaçar, por vezes. Veio, porém, um sopro da praça Sete, do Ponto de 100 Réis1, e Amarildo, o Possesso, encampou dois.
Contra a Inglaterra foi uma vitória linda. Não tínhamos rainhas, nem Câmara de Comuns, nem lordes Nelsons. Mas tínhamos Garrincha. E tínhamos Zagalo, o de canelas finíssimas e espectrais. E Nilton Santos, com a sua salubérrima eternidade. E negros ornamentais, folclóricos, como Didi, Zózimo e Djalma Santos. Logo se viu, entre o nosso craque e o inglês, todo um abismo voraz. O inglês apenas joga futebol, ao passo que o brasileiro “vive” cada lance e sofre cada bola na carne e na alma. Djalma Santos põe, no seu arremesso lateral, toda a paixão de um Cristo negro.
E mesmo fora do futebol, o europeu faz uma imitação da vida, enquanto que o brasileiro vive de verdade e ferozmente. Ninguém compreenderá que foi a nossa qualidade humana que nos deu esta Copa tão alta, tão erguida, de fronte de ouro. E mais: — foi o mistério de nossos botecos, e a graça das nossas esquinas, e o soluço dos nossos cachaças, e a euforia dos nossos cafajestes. Jogamos no Chile com ardente seriedade. Mas a última jogada de Mané, no adeus os Andes, foi uma piada, tão linda e tão plástica. No mais patético das batalhas, o escrete soube brincar. Esse toque de molecagem brasileira é que deu à vitória uma inconcebível luz.
Fatos & Fotos, Edição histórica, junho de 1962
(1) O Ponto de Cem Réis é como ficou conhecida a Praça Vidal de Negreiros, localizada em João Pessoa (PB)
Vida que segue...

Crônica do dia: a bunda


Qual o mistério do encanto da bunda? Uma conjugação de abundantes e harmônicos traços curvilíneos, relevo altiplano, textura sedosa e volume macio definem essa organização arquitetônica primorosa que resulta na obra prima maior da natureza, concedida por Deus ao homem. Ou melhor dito, à mulher, porquanto é exclusivamente a feminina que detém os primorosos atributos. A vitória definitiva da curva sobre a reta. Da dualidade sobre a ‘monotonia’. A negação do caos e da entropia. O ápice da criação divina. Afirmação inequívoca da existência de Deus e do Diabo, aqui pactuados e configurados numa mesma concepção temporal. Mistura de pureza com profanação. De carnalidade com divindade.

Ateu, não: agnóstico


- Te dou quinhentos reais se tu souber o que quer dizer esta palavra.

- Ora, pra começo de conversa tu num tem quinhentos reais. Tô falando sério e te vem com molecagem. Acho que Deus é uma coisa, padre, pastor, monje outra. O ranço, o cheiro de mofo das igrejas me embrulham o estomago, dá nojo. tenho horror ao bafo clerical dos confessionários! O bem que a confissão pode nos fazer é o de uma catarse, um extravasamento, que a psicanálise também faz, e com mais sucesso. Estou mesmo com vontade de me especializar em psiquiatria.


- Só mesmo um doido te procuraria. Maur não pôde deixar de rir. Eduardo acrescentou:

- Você vai ter de se curar para depois curar os outros.

- É isso mesmo - concordo o outro, sério - Estou exatamente preocupado com o meu próprio caso. Já iniciei o que eu chamo de "a minha libertação".

- E o que eu chamo de "a sua imbecilização".

- Vista pela sua, que já é completa. O que eu chamo de libertação é a possibilidade de me afirmar integralmente, como homem. O homem é que interessa. Se Deus existe, posso vir a me entender com ele, mas há de ser de homem para homem.


Fernando Sabino - cronistas, escritor, jornalista e cineasta brasileiro. Nasceu em Mnas Gerais em 14 de outubro de 1923 e faleceu no Rio de Janeiro em 11 de outubro de 2004

Vida que segue...

A princesa empoderada

Esta quem me contou foi um vizinho da minha irmã Lelé. Disse ela que sua amiga Marileide, uma linda mulher, independente, empoderada e de autoestima nas alturas apreciava a natureza numa reserva ecológica, quando de repente...uma rã pulou no seu colo e disse:

- Linda princesa, eu era um lindo e rico princípe. Uma bruxa feia e má  lançou-me um feitiço e transformei-me nesta rã asquerosa. Um beijo teu, no entanto, há de me transformar de novo num belo príncipe e poderemos casar e constituir lar feliz no teu lindo castelo. A tua mãe poderia vir morar conosco e tu poderias preparar o meu jantar, lavar as minhas roupas, criar os nossos filhos e seríamos felizes para sempre...

Naquela noite, enquanto saboreava pernas de rã sautée, acompanhadas de um cremoso molho acebolado e de um finíssimo vinho branco, a princesa sorria, pensando consigo mesma: 
- Eu, hein? Nem morta!

Luis Fenando Veríssimo


A última crônica



A caminho de casa, entro num botequim da Gávea para tomar um café junto ao balcão. Na realidade estou adiando o momento de escrever. A perspectiva me assusta. Gostaria de estar inspirado, de coroar com êxito mais um ano nesta busca do pitoresco ou do irrisório no cotidiano de cada um. Eu pretendia apenas recolher da vida diária algo de seu disperso conteúdo humano, fruto da convivência, que a faz mais digna de ser vivida. Visava ao circunstancial, ao episódico. Nesta perseguição do acidental, quer num flagrante de esquina, quer nas palavras de uma criança ou num acidente doméstico, torno-me simples espectador e perco a noção do essencial. Sem mais nada para contar, curvo a cabeça e tomo meu café, enquanto o verso do poeta se repete na lembrança: "assim eu quereria o meu último poema". Não sou poeta e estou sem assunto. Lanço então um último olhar fora de mim, onde vivem os assuntos que merecem uma crônica. 

Ao fundo do botequim um casal de pretos acaba de sentar-se, numa das últimas mesas de mármore ao longo da parede de espelhos. A compostura da humildade, na contenção de gestos e palavras, deixa-se acrescentar pela presença de uma negrinha de seus três anos, laço na cabeça, toda arrumadinha no vestido pobre, que se instalou também à mesa: mal ousa balançar as perninhas curtas ou correr os olhos grandes de curiosidade ao redor. Três seres esquivos que compõem em torno à mesa a instituição tradicional da família, célula da sociedade. Vejo, porém, que se preparam para algo mais que matar a fome. 

Passo a observá-los. O pai, depois de contar o dinheiro que discretamente retirou do bolso, aborda o garçom, inclinando-se para trás na cadeira, e aponta no balcão um pedaço de bolo sob a redoma. A mãe limita-se a ficar olhando imóvel, vagamente ansiosa, como se aguardasse a aprovação do garçom. Este ouve, concentrado, o pedido do homem e depois se afasta para atendê-lo. A mulher suspira, olhando para os lados, a reassegurar-se da naturalidade de sua presença ali. A meu lado o garçom encaminha a ordem do freguês. 

O homem atrás do balcão apanha a porção do bolo com a mão, larga-o no pratinho - um bolo simples, amarelo-escuro, apenas uma pequena fatia triangular. A negrinha, contida na sua expectativa, olha a garrafa de Coca-Cola e o pratinho que o garçom deixou à sua frente. Por que não começa a comer? Vejo que os três, pai, mãe e filha, obedecem em torno à mesa um discreto ritual. A mãe remexe na bolsa de plástico preto e brilhante, retira qualquer coisa. O pai se mune de uma caixa de fósforos, e espera. A filha aguarda também, atenta como um animalzinho. Ninguém mais os observa além de mim. 




São três velinhas brancas, minúsculas, que a mãe espeta caprichosamente na fatia do bolo. E enquanto ela serve a Coca-Cola, o pai risca o fósforo e acende as velas. Como a um gesto ensaiado, a menininha repousa o queixo no mármore e sopra com força, apagando as chamas. Imediatamente põe-se a bater palmas, muito compenetrada, cantando num balbucio, a que os pais se juntam, discretos: "Parabéns pra você, parabéns pra você..." Depois a mãe recolhe as velas, torna a guardá-las na bolsa. A negrinha agarra finalmente o bolo com as duas mãos sôfregas e põe-se a comê-lo. A mulher está olhando para ela com ternura - ajeita-lhe a fitinha no cabelo crespo, limpa o farelo de bolo que lhe cai ao colo. O pai corre os olhos pelo botequim, satisfeito, como a se convencer intimamente do sucesso da celebração. Dá comigo de súbito, a observá-lo, nossos olhos se encontram, ele se perturba, constrangido - vacila, ameaça abaixar a cabeça, mas acaba sustentando o olhar e enfim se abre num sorriso. 

Assim eu quereria minha última crônica: que fosse pura como esse sorriso.


FernandoTavares Sabino - um dos maiores e melhores crônistas brasileiro, também era jornalista. Nasceu em Belo Horizonte -MG em 12 de outubro de 1923 e morreu em 11 de outubro de 2004, deixando muitas saudades e uma imensa lacuna na literatura.
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O brasileiro perplexo


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A arte de ser Avós

Netos são como heranças: você os ganha sem merecer. Sem ter feito nada para isso, de repente lhe caem do céu. É, como dizem os ingleses, um ato de Deus. Sem se passarem as penas do amor, sem os compromissos do matrimônio, sem as dores da maternidade. E não se trata de um filho apenas suposto, como o filho adotado: o neto é realmente o sangue do seu sangue, filho de filho, mais filho que o filho mesmo...

Quarenta anos, quarenta e cinco... Você sente, obscuramente, nos seus ossos, que o tempo passou mais depressa do que esperava. Não lhe incomoda envelhecer, é claro. A velhice tem as suas alegrias, as suas compensações - todos dizem isso embora você, pessoalmente, ainda não as tenha descoberto - mas acredita.

Todavia, também obscuramente, também sentida nos seus ossos, às vezes lhe dá aquela nostalgia da mocidade. Não de amores nem de paixões: a doçura da meia-idade não lhe exige essas efervescências. A saudade é de alguma coisa que você tinha e lhe fugiu sutilmente junto com a mocidade. Bracinhos de criança no seu pescoço. Choro de criança. O tumulto da presença infantil ao seu redor. Meu Deus, para onde foram as suas crianças? Naqueles adultos cheios de problemas que hoje são os filhos, que têm sogro e sogra, cônjuge, emprego, apartamento a prestações, você não encontra de modo nenhum as suas crianças perdidas. São homens e mulheres - não são mais aqueles que você recorda.

E então, um belo dia, sem que lhe fosse imposta nenhuma das agonias da gestação ou do parto, o doutor lhe põe nos braços um menino. Completamente grátis - nisso é que está a maravilha. Sem dores, sem choro, aquela criancinha da sua raça, da qual você morria de saudades, símbolo ou penhor da mocidade perdida. Pois aquela criancinha, longe de ser um estranho, é um menino seu que lhe é "devolvido". E o espantoso é que todos lhe reconhecem o seu direito de o amar com extravagância; ao contrário, causaria escândalo e decepção se você não o acolhesse imediatamente com todo aquele amor recalcado que há anos se acumulava, desdenhado, no seu coração.

Crônica dominical


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Aos meus netos, por Sérgio Geia
Era um pedaço de papel com uma mensagem de afeto escrita à mão: “Aos meus netos: Que eu envelheça. Que na minha pele possam surgir rugas. Mas que meu coração jamais fique indiferente ao amor. Que eu jamais perca o poder de demonstrar um gesto de ternura”. E a mensagem de um avô que se dirige aos seus netos termina aí. O texto é datado de 20 de março de 2013, quatro meses antes de seu falecimento. Sua filha o encontrou e o postou. E hoje, somente hoje, mais de três anos depois, eu o encontrei.

Sua filha, a propósito, é prima do Geia; pois ele, o avô, o autor de tão singelo gesto, é tio. E o pensamento que ele escreveu quatro meses antes de morrer é de uma autora chamada Rachel Free.

Pois consigo imaginar a cena: quarta-feira, 20 de março de 2013, uma bela manhã de sol, passarinhos voando, cigarras chiando, Claudio em seu apartamento na frente do computador, lendo coisas, pesquisando um assunto, lendo as notícias do jornal, vendo a sua caixa de mensagens, quando se depara, depois de muito navegar, com um texto leve de uma autora de nome Rachel, numa página de pensamentos; um pensamento que o cativa, que o emociona, e tão forte revela-se essa emoção, a delicadeza de palavras tão honestas, e verdadeiras, que tem vontade de copiar; pega um papel, um simples pedaço de papel e uma caneta; mas não quer apenas copiar e deixar a anotação perdida no fundo de uma gaveta; quer passar adiante, despertar alguém sobre a singularidade de palavras tão fortes, e logo deita no pensamento a imagem inocente dos netos mergulhando numa piscina; então, começa a escrever: “Aos meus netos...”.

Imagino também que seus netos já tenham lido com carinho e certa curiosidade a mensagem que o avô lhes deixou; até algumas lágrimas já devem ter rolado; sim, porque até no Geia, que não é neto, mas apenas sobrinho, espelhos de água se formaram nos olhos, e um pequeno filete desceu até o queixo. Alguns, pela tenra idade, não devem ter compreendido nada, mas gostado de saber que o vô, que não está mais entre eles, deixou uma mensagem, e devem sorrir ao ler o bilhete.

Talvez lá na frente, quando forem pais, ou também forem avós, quando os netos estiverem a correr um atrás do outro, a pular numa piscina ou a jogar bola, eles se lembrem das palavras do vô “Aos meus netos...”, ou não se lembrem (nem é mais preciso), porque dia a dia nessa confusa vida, seus passos seguiram firmes na direção desse oceano chamado amor, não economizando sequer um simples gesto ou palavra de carinho, de ternura, e se tornaram pessoas de bem, amorosas, solidárias, preocupadas com o semelhante, atentas às necessidades do outro e às vicissitudes da vida, semeando amor, paz, compaixão, guiadas por um despretensioso bilhete escrito à mão, com traços elegantes e firmes, numa manhã clara de março de 2013. 
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Mudam os nomes dos avós e netos, mas o sentimento permanece o mesmo...Amor 
Vida que segue... 

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Provocações, por Luis Fernando Veríssimo


Aceitar provocações é para os fracos, forte é aquele que faz da provocação algo que provoca quem te provocou.... Frase de Danilo Morais.



A primeira provocação ele não aguentou calado, na verdade chorou, gritou e esperneou. Porém quase todos os bebês agem assim, mesmos os que nascem em maternidades particulares, assistidos por pediatras e demais especialistas. E não como ele, numa palhoça, amparado apenas pelo chão, sequer tinha um médico cubano.

Outra provocação foi perder a metade dos seus dez irmãos, por doença e falta de atendimento. Não gostou nada daquilo. Mas ficou firme. Era de boa paz.
Foram lhe provocando por toda a vida.
Não pode ir a escola porque tinha que ajudar na roça. Tudo bem, gostava da roça. Mas aí lhe tiraram a roça.
Na cidade, para aonde teve que ir com a família, era provocação de tudo que era lado. Resistiu a todas. Morar em barraco. Depois perder o barraco, que estava onde não podia estar. Ir para um barraco pior. Ficou firme.
Queria um emprego, só conseguiu um subemprego. Queria casar, conseguiu uma submulher. Tiveram subfilhos. Subnutridos. Para conseguir ajuda, só entrando em fila. E a ajuda não ajudava.
Estavam lhe provocando.
Gostava da roça. O negócio dele era a roça. Queria voltar pra roça.
Ouvira falar de uma tal reforma agrária. Não sabia bem o que era. Parece que a idéia era lhe dar uma terrinha. Se não era outra provocação, era uma boa.
Terra era o que não faltava.
Passou anos ouvindo falar em reforma agrária. Em voltar à terra. Em ter a terra que nunca tivera. Amanhã. No próximo ano. No próximo governo. Concluiu que era provocação. Mais uma.
Finalmente ouviu dizer que desta vez a reforma agrária vinha mesmo. Para valer. Garantida. Se animou. Se mobilizou. Pegou a enxada e foi brigar pelo que pudesse conseguir. Estava disposto a aceitar qualquer coisa. Só não estava mais disposto a aceitar provocação.
Aí ouviu que a reforma agrária não era bem assim. Talvez amanhã. Talvez no próximo ano… Então protestou.
Na décima milésima provocação, reagiu. E ouviu espantado, as pessoas dizerem, horrorizadas com ele:
– "Violência, não!”
***
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Simplicidade e felicidade

- Ser feliz é simples, as crianças nos ensinam isso. O problema é que os adultos tem a mania de complicar a vida - 

"Bem! Já tive a oportunidade de comprar alguns bons e caros brinquedos pra ele ( Deus me proporcionou isso). Mas nenhum fez com que ele estampasse em seu rosto esse sorriso...
Que ninguém roube dele essa simplicidade, de andar de pés descalço, correr livre por aí, de passar por debaixo da cerca, correr depois de assanhar um enxame de abelhas, de correr com o seu cavalo preferido (o cavalo de pau), de furar os pés, de comer terra depois de um queda desastrosa, de brincar com o carrinho que o papai fez e deu de presente. 
Seja livre filho, ame a simplicidade, ame sua história, ame acima de tudo viver."
Rosa Teixeira (Mãe do João)
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Caderno 3

Citado nas redes sociais como autor de muitos textos e frases que não são dele, o escritor lançou o livro de crônicas "Ironias do tempo"

"Já fui muito elogiado pelo que nunca escrevi", afirma Luis Fernando Veríssimo

"Há uma maneira fácil de detectar se a autoria do texto é falsa ou não:
Se o Luiz da assinatura for com Z, o texto não é meu.
Se for contra o Bolsonaro, É."

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Crônica dominical

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O último da classe
Recém-chegado da Polônia, em 1958, com nove anos, eu estranhei algumas coisas aqui do Brasil. Não entrava na minha cabeça, por exemplo, o fato de "pois não" significar "sim" e "pois sim"!, "não". Não fazia sentido para mim. Certa vez vi uma aglomeração em volta de um bonde parado numa esquina. Todos olhavam para debaixo dele. "O que aconteceu"? perguntei a um rapaz. "Morreu o boi" ele respondeu.
Me agachei e enfiei minha cabeça o mais que pude próximo aos trilhos para ver o boi atropelado. Não tinha boi algum. Nem caberia, é claro, nesse espaço. Fui embora sem entender nada.

Muito mais tarde me contaram que "morreu o boi" queria dizer mais ou menos "até aqui morreu o Neves", ou seja, "não aconteceu nada tão importante assim".

Eu estudava, aos 11, na terceira série do Grupo Escolar Pereira Barreto. Ficava na esquina da Clélia com a Pio XI, na Lapa. Minha mãe me matriculou ali porque ficava a poucas quadras da nossa casa. E era uma escola pública.

Eu detestava o uniforme – um avental branco. Tinha vergonha. Dizia pra minha mãe que era uniforme de menina. Detestava principalmente andar com esse avental na rua. Dentro da escola, vá lá, mas na rua?

A professora gostava de mim. Eu não atrapalhava a aula, fazia as lições direitinho, sabia as matérias de cor, não zoava com meus coleguinhas, respeitava a professora. Muitas vezes ela pedia que eu fosse ao quadro negro ensinar aos meus colegas problemas que eles não conseguiam resolver. Ou deixava que eu corrigisse as provas deles. Eu tirava ótimas notas. Quase sempre as melhores.

No dia em que ganhei a medalha Carvalho Pinto, que premiava os melhores alunos do curso primário do estado de São Paulo, minha mãe ficou tão orgulhosa que me levou para tirar uma fotografia especial, num estúdio, com aquele avental que eu detestava e a medalha pendurada na altura da lapela. Gastou o que não podia para registrar aquele momento inesquecível.

Mas o que me intrigava era que com meus colegas eu não fazia o mesmo sucesso que com a minha professora e a minha mãe. Ao contrário. Me chamavam de "CDF", o pior xingamento que havia entre nós.

O aluno mais popular, aquele de quem todos queriam ser amigos, não era eu – o primeiro da classe – mas aquele que sentava na última fileira, chegava atrasado, copiava a lição de alguém na última hora, colava na prova, falava alto, fazia piadinhas sem graça nas horas mais impróprias, jogava giz nas costas da professora, rasgava o boletim para não mostrar aos pais, mentia para faltar à aula, bagunçava para não deixar os outros aprender, toda hora ia pra diretoria, dedurava quem não ia com a cara dele, tirava as piores notas. O mau caráter. O sem-vergonha. Aquele que a professora sempre punha de castigo. Aquele que não aprende e não deixa os outros aprenderem. Aquele que despreza os livros.

O mais popular não era o primeiro, mas o último da classe.

Com meu filho maior aconteceu a mesma coisa, mais ou menos cinquenta anos depois: "para ter amigos não posso tirar 10", se queixava. Viajou à Noruega, onde se formou em norueguês. E onde era admirado por tirar 10. Depois mudou-se para a Alemanha. Também por lá gostam de bons alunos.

Não sei se nas escolas brasileiras os melhores alunos continuam sendo chamados pelos colegas de "CDF", mas os piores, pelo visto, continuam em alta.

Entre um ótimo professor e o último aluno da classe, os brasileiros escolheram a segunda opção para presidente da República nas últimas eleições.

Alex Solnik - jornalista. Trabalho no Jornal da Tarde, IstoÉ, Senhor, Interview e Manchete. Escreveu 13 livros, dentre os quais: O cofre da Adhemar, Porque não deu certo, A guerra do apagão e O domador de sonhos.

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Uma nova janela em Iguatu, por Robespierre Amarante

Iguatu começou a mudar hábitos, após fincarem a torre de transmissão de microondas em Cruz de Pedras, pouco além do distrito de Alencar.
Veio então a melhora na telefonia e também a maior novidade: a captação da imagem ainda em preto e branco, da TV Ceará canal 2, emissora dos Diários Associados, da capital Fortaleza.
Em pouco tempo a televisão influenciou costumes. 
Os cinemas sentiram, o movimento na pracinha diminuiu. Enquanto no Prado, Tabuleiro, rua 12 de outubro, rua Sete de Setembro e mais outros locais, a TV comunitária atraia o povo.
O sonho de consumo passou a ser um aparelho de televisão em casa, na sala e com antena sobre o telhado, em sinal de status.
Quem conseguia, também teria que lidar com um novo tipo, o televizinho.
Afinal ninguém queria perder o Noticiário Relâmpago, as novelas Antonio Maria e Beto Rockfeller, Um Instante Maestro e a Grande Chance, dois programas comandados por Flavio Cavalcante e seu cast de jurados; Sergio Bittencourt, Mariozinho Rocha, Carlos Renato, Mister Eco, Zé Fernandes, Fernando Lobo e a exuberância feminina de Márcia de Windsor, que só dava nota 10.
No domingo, O Show sem Limite, sob o comando de J Silvestre, com suas atrações musicais e no final as perguntas do "Absolutamente Certo".
E assim, Iguatu foi mudando hábitos, os cinemas cada vez mais vazios, os rodeios na pracinha também, afora o modo de vestir, em suma uma reviravolta no comportamento.
Lembro de Juvenal, o pipoqueiro, reclamando da queda nas vendas de suas pipocas de saquinhos em cores variadas.
A turma do futebol, uma vez por semana via o jogo em vídeo-tape das partidas realizadas no Maracanã depois de passados sete dias.
Os que dormiam mais tarde, viam o Telejornal Crasa, e após, uma sessão de cinema.
Encerrava-se a programação com o slide do indiozinho tupi, sob o som de Acalanto de Dorival Caymmi.

Robespierre Amarante

Medos, por Silvia Mendonça

Quando eu era criança tinha medo do escuro e do "bicho papão"; Embora eu queira negar, em cada etapa da vida eu cultivei alguns medos, que, aos poucos superei. Os psicólogos dizem que o medo tem um fator positivo, pois nos faz analisar com cuidado as situações em que nos metemos. O medo só não pode nos engessar, nos impedir de viver.

Hoje, mulher madura, "casca grossa", curtida pela vida, deixei escorrer entre os dedos todos os meus medos. Não tenho medo de olhar nos olhos das pessoas e falar das minhas verdades. Não tenho medo dos seres abjetos, rastejando atrás de mim, querendo me prejudicar. E deixei "escorrer" um medo que temos desde que nascemos: o medo da morte! Nesse caso, posso seguir em frente, sem medo de nada, pois venci o pior deles.


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Fernando Brito: porque jamais nos vencerão

Se o Brasil tivesse uma imprensa digna da sua missão de informar, o Brasil não estaria à beira de cair sob o tacão do fascismo.
Se o Brasil tivesse instituições dignas de sua missão constitucional, não estaria na iminência de viver sob uma ditadura.
Se o Brasil tivesse liberais dignos de princípios e não amantes da velhacaria e de interesses eleitoreiros não estaria ao ponto de descer para a treva do autoritarismo.
Se Brasil tivesse uma elite econômica que amasse o país que sustenta sua fartura não estaria a um passo de regressarmos a escravatura.
Mas este país não os tem e por isso assistimos, indefesos, vê-lo atirado no lixo, submetido a um governante tosco, primário, imbecil, capaz de negar o direito mais básico que tem cada ser humano que aqui vive: o direito de ser brasileiro.
Quem assistir ao vídeo onde o Sr. Jair Bolsonaro despeja, com um discurso gutural o seu desejo de expulsar do país todos aqueles que não concordarem ou se submeterem a sua vontade fascista não pode deixar de perceber quão escura é a treva em que ele lançará esse país.
Desde Médici ninguém ameaçava um brasileiro com o exílio.
Mesmo os "bem-postos" – juízes, promotores, deputados, empresários, "mercadistas" – que odeiam o povo simples e humilde desse país não podem deixar de ver que vamos ser mergulhados na selva da violência estatal, numa situação em que as grandes maiorias da população serão submetidas à alternativa entre a vassalagem ou a insurreição.
As altas patentes militares, que aderem e se submetem a um capitãozinho "bunda-suja", que há 30 anos garatujava no papel  planos de explodir bombas em quartéis para obter salário melhor –  se não sabem, deveriam saber  – enfiaram as forças armadas na idolatria da indisciplina, da conspiração, da deformação de só ter coragem de apontar as armas para seu próprio povo, o que as decai à condição que Caxias rejeitou, a de capitães do mato.
Errem. Suicidem-se. Escondam numa votação escandalosamente manipulada, onde a boa-fé do povo brasileiro aceita ver como "corruptos" os que nem de longe, mesmo na sua vileza, os que praticam a mais vil das corrupções: a de vender o Brasil, a de vender os direitos do nosso povo, a de vender o sagrado bem da liberdade para instaurar um governo de pústulas, de tatibitatis, de gente microcéfala e, pior, genuflexa ao ponto de bater continência para a bandeira norte-americana.
É de repetir Castro Alves e gritar para que Andrada arranque dos ares seu pendão para que não sirva de mortalha às liberdades.
O nazismo teve seu ápice, teve multidões, teve seus braços erguidos no "heil" de milhares encantados, hipnotizados.
Os que ousaram resistir teriam passado anos como ratos em suas tocas não fosse o fato de que eram homens e mulheres cercados pelos ratos.
Quis-se avançar como um Brasil de todos. Ninguém foi perseguido, nenhuma bolsa foi saqueada, nem mesmo os salões foram violados. Apenas – e muito timidamente entreabriu-se suas portas para que outros pudessem entrar.
Será que é ofensa demais ver o rosto cafuzo, mulato, crestado do sol ao seu lado no shopping, no avião, na loja? É tanto o desprezo à carne da qual se nutrem ao sangue do qual bebem, aos pobres que os fazem ricos?
Eis, senhores, numa palavra, a torpeza de seu crime. Querem a morte de quem os nutre, de quem lhes constrói as casas de luxo, as mansões, de quem compra seus produtos, de quem é escorchado por seus bancos, de quem consome as porcarias que colocam no mercado? Querem o sangue de quem nunca lhes tirou uma gota de seu champanhe?
Há, porém, uma arma mortal e sem defesa, apontada contra os senhores.
Chama-se história, responde pelo nome de marcha incontível dos povos pelos seus direitos e liberdades. Neguem-na, persigam-na, prendam-na, exilem-na: nada adiantará.
Ela triunfa. Sempre haverá festa quando ela voltar e vocês se forem. É certo que haverá dores, haverá filhos separados dos pais, haverá vidas interrompidas, algumas perdidas.
Ainda há tempo para um difícil acesso de lucidez, tão mais difícil quanto mais covardes são aqueles que poderiam provoca-lo.
Mesmo assim, a causa de vocês é perdida, inviável, perversa. Há e haverá sempre brasileiros que não se vergarão que seja de onde for, estarão de pé, a enfrenta-los. Vocês não têm mais a censura e o silêncio que tiveram, há meio século para implantar uma ditadura.
Vocês são os zumbis do tempo que se foi e não adianta que avancem como hordas ameaçadoras.
Nós somos a vida e a humanidade, e a vida humana triunfará.

Crônica do dia

Desgraça pouca é bobagem, por Sebastião Nunes
Joãozinho acompanhou de longe o golpe militar de 1964 desde os primeiros vagidos em 1960, quando Jânio Quadros foi eleito presidente da república.
Ele tinha 18 anos na época e, para tomar um chope, precisava exibir a carteira de identidade, pois sua cara de menino deixava cabreiros os garçons.
Sem entender patavina, lia as manchetes dos jornais nas bancas, procurando decifrar o fuzuê que se armou entre a renúncia de Jânio e a posse de João Goulart.
Militares, latifundiários e ricaços arreganhavam os dentes contra os comunistas, que ameaçavam fazer churrasco das criancinhas brasileiras.
Quando terminou o ensino médio, no início de 1964, o Brasil estava mergulhado no caos e ele continuou se informando pelas manchetes das bancas de jornal.
Mulheres bem vestidas desfilavam pelas ruas em nome de Deus, da família e da propriedade. Não havia pretos ou pobres.
Os “Diários Associados”, reacionários como eles só, lançaram uma campanha para a doação de ouro pela salvação do país. Salvação do país contra os comunistas é claro, imaginou ele, lendo e relendo as manchetes.
Lá se foram os bondosos pais de família, ingênuos mas remediados, entregar as alianças de casamento e, para não passar aperto, armazenaram arroz, feijão, óleo, açúcar e papel higiênico para os tempos bicudos que diziam se aproximar.
Um tanto retardado para sua idade, Joãozinho era apenas um aluno medíocre e um completo analfabeto político. E não tinha dinheiro para armazenar nada.
Quando a ditadura militar acabou, mais de 20 anos depois, Joãozinho continuou sem entender nada, mas havia progredido e era balconista numa loja de ferragens.
Casado com uma balconista de loja de roupas das redondezas, tinha dois filhos e morava nos cafundós. Havia televisão em casa e toda noite acompanhava o noticiário pela TV. As notícias agora chegavam quase instantaneamente.
Aos 40 anos, tendo passado das manchetes de jornais nas bancas para a tela da televisão na sala, continuou um analfabeto político, só que ao vivo e em cores.
REPETIÇÃO COMO FARSA
Em 2018, Joãozinho e a mulher estavam aposentados e continuavam vivendo na mesma casinha alugada nos cafundós, pois recebiam pouco do INSS.
O filho de Joãozinho, que também se chamava Joãozinho, tinha 18 anos e estava no primeiro ano do ensino médio numa escola pública dos cafundós.
Tinha uma irmã chamada Maria que, aos 14 anos, cursava o ensino fundamental na mesma escola que Joãozinho.
Seus pais, babosos, insistiam para que eles terminassem pelo menos o ensino médio ou não conseguiriam bons empregos como eles haviam conseguido.
Pela televisão acompanhavam os acontecimentos do país e, como bons cidadãos, votavam de acordo com o que os noticiários sugeriam.
Era difícil decidir, mas os apresentadores dos telejornais diziam quem eram os corruptos, os acusados de roubar dinheiro público e os honestos em que podiam confiar. Nesses, como sugeriam toda noite os mesmos apresentadores, eles podiam votar.
Joãozinho filho também ia votar, só que pela primeira vez.
Joãozinho filho estava de acordo com os pais, porque boa parte dos professores e amigos também assistia o noticiário da televisão e tinha a mesma opinião. Eles sabiam quem eram os honestos, os acusados de roubar dinheiro público e os corruptos. Nesses não votariam de jeito nenhum.
Maria não ia votar, pois ainda não tinha idade, mas concordava com os pais e o irmão. Como ainda era menor, toda noite via as mesmas novelas e o mesmo noticiário com os pais e, às vezes, também com o irmão, cujas opiniões respeitava.
Ela não sabia que os pais e o irmão não tinham opiniões.
Ela não sabia que as opiniões dos pais e dos irmãos eram as opiniões que os apresentadores da televisão diziam serem as certas.
Ela não sabia que os apresentadores da televisão também não tinham opiniões e só mantinham aquelas opiniões porque eram as opiniões dos donos da televisão.
Ela não sabia que se os apresentadores tivessem opiniões diferentes das opiniões dos donos da televisão eles seriam mandados embora com um chute na bunda.
Maria, Joãozinho filho, a mãe, que também se chamava Maria, e Joãozinho pai eram analfabetos políticos.
Mas eles não sabiam que eram analfabetos políticos.
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Como dizia meu pai

JÁ SE TORNOU HÁBITO MEU, em meio a uma conversa, preceder algum comentário por uma introdução:
— Como dizia meu pai…
Nem sempre me reporto a algo que ele realmente dizia, sendo apenas uma maneira coloquial de dar ênfase a alguma opinião.
De uns tempos para cá, porém, comecei a perceber que a opinião, sem ser de caso pensado, parece de fato corresponder a alguma coisa que Seu Domingos costumava dizer. Isso significará talvez — Deus queira — insensivelmente vou me tornando com o correr dos anos cada vez mais parecido com ele. Ou, pelo menos, me identificando com a herança espiritual que dele recebi.
Não raro me surpreendo, antes de agir, tentando descobrir como ele agiria em semelhantes circunstâncias, repetindo uma atitude sua, até mesmo esboçando um gesto seu. Ao formular uma idéia, percebo que estou concebendo, para nortear meu pensamento, um princípio que se não foi enunciado por ele, só pode ter sido inspirado por sua presença dentro de mim.
— No fim tudo dá certo…
Ainda ontem eu tranqüilizava um de meus filhos com esta frase, sem reparar que repetia literalmente o que ele costumava dizer, sempre concluindo com olhar travesso:
— Se não deu certo, é porque ainda não chegou no fim.