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Papo de homem

O que ninguém conta sobre morar junto

Apesar de apresentar muitos detalhes similares – pelo simples fato de se desvincular dos cuidados dos pais – juntar as escovas de dentes tem algumas particularidades que só começamos a entender depois que vivemos essa transição.

Infelizmente, muitas pessoas ficam com medo de abrir alguns detalhes, com medo de estar jogando um balde de água fria num momento importante na vida das pessoas. Conviver é difícil e choques vão acontecer por muito tempo até acostumarem-se.

Eu, dentro da incrível jornada que é a vida, já morei junto, já me separei, já morei junto de novo (até com a mesma pessoa) e assim fui colecionando alguns aprendizados que, sim, adoraria que alguém tivesse me contado quando tomei a decisão pela primeira vez.

O fato é que quando esse dia chega, e os dois lados estão com o julgamento extremamente comprometido pela paixão. Você só consegue pensar naquela pessoa, tudo o que quer é morar junto e acordar sentindo aquele calor na nuca, todas as manhãs. Os pontos negativos são negligenciados e a emoção acaba falando bem mais alto do que a razão.

1. Morar junto é como abrir uma empresa
Este é o ponto que o amor oculta logo de início. Morar junto (casando ou não) é como abrir uma empresa e tocar um negócio. A paixão ajuda a manter as coisas mais leves e com um peso menor, mas existem burocracias e pormenores que acabam criando incômodos muitas vezes inevitáveis.

Pode ser uma empresa ou uma rebelião.... dá tudo na mesma.
Pode ser uma empresa ou uma rebelião…. dá tudo na mesma.
Tudo isso inclui transparência financeira, cronograma de planos e direcionamentos que o casal pretende tomar. Levei muito tempo para aprender que, sem estes pontos, é muito difícil se guiar em dupla sem medo. Seu parceiro é como um sócio, que apesar de já ter confiado um passo inicial muito importante, precisa e busca por algumas certezas que amenizem o medo de caminhar no escuro.

Por isso, é normal ver conflitos acontecerem quando um membro da relação não entende claramente para onde o outro está caminhando. A comunicação sobre mudança de planos, imprevistos e o andamento do caixa deve ser frequente e sempre bem honesta.

Este é o ponto no qual muita gente se exalta e clama por liberdade, mas é só medo de sentar e lidar com as coisas de forma adulta.

2. Seu parceiro só mostra a versão melhorada de quem é
Uma das coisas mais marcantes nesta transição é o choque entre o idealizado e o modelo real.

Quando passamos apenas uma fatia limitada de tempo com uma pessoa, é muito comum ver apenas a parte boa. Sua namorada é doce, sensível e compreensiva porque você normalmente não está perto quando ela perde a cabeça, fica sem paciência e quer ficar deitada na cama, com preguiça de tomar banho e pentear o cabelo. Seu namorado não a visita quando está com aquele calção de goleiro, que já completa o sexto jogo sem lavar. Você acredita que ele é incrivelmente organizado porque ele sempre arruma o apartamento quando você avisa que vai chegar, mas nunca contou que deixou uma fatia de pizza por 2 semanas em cima da mesa da cozinha.

E você pode dizer que passa muitos dias seguidos na casa dela e que nunca viu nada disso acontecer, mas acredite, se tem algo que você não está mostrando, do outro lado acontece a mesma coisa. Ao longo do tempo a resistência cai e tudo se mostra, abrindo espaço para o choque de realidade.

3. A relação muda no primeiro dia
Apesar do ponto anterior ser até esperado pelos mais observadores, este me pegou inteiramente de surpresa. É comum ver casais que passam de 3 semanas a 1 mês juntos, um na casa do outro ou em viagens, acreditarem que esta experiência mostra como seria morar junto. Puro engano.

Pensa que dá pra manter essa pose toda por muito tempo?
Pensa que dá pra manter essa pose toda por muito tempo?
A partir do momento que entram na casa onde vão morar, não importando se um mudou pra casa do outro ou mudaram juntos para um lugar novo, aquele passa a ser um problema dos dois. Já no primeiro dia, quando os dois sentam e observam todas as caixas e coisas espalhadas pela casa nova, fazendo a lista do que falta comprar e quanto dinheiro ainda tem no banco, as atitudes começam a mudar.

É difícil dizer exatamente o que muda, dada a complexidade de cada relação. Mas é comum comentar sobre esta súbita mudança com casais de amigos que passaram a morar junto e receber uma confirmação de que foi parecido.

Os motivos vão variar bastante. O medo de não conseguir pagar as contas, de estar dando um passo maior que a perna, de ter tomado uma atitude precipitada. E se aquela não for a pessoa certa? E se eu quiser ir para praia com meus amigos sem ela? Será que eu estava pronto? Os medos são muitos e começam a assombrar muito rápido, surge a realização de que qualquer decisão, por menor que seja, terá alguém a ser consultado e essa pessoa possui um altíssimo poder de veto.

Essa pressão, se observada com bastante antecedência pode ser reduzida e transformada em motivo de maior companheirismo entre os dois. É comum, para quem viveu sozinho por muito tempo, se retrair e assumir seus medos como um problema individual, ao invés de dividir os medos e encarar a situação em dupla, como um inimigo comum.

4. A individualidade existe e deve ser preservada
Eu sei, falei um monte sobre como o casal se torna uma entidade e que divide todas as decisões sobre o andamento do time, mas existe um problema:

Você não se apaixonou por uma cópia de você e isso pode ficar evidente o tempo todo.

Ao morar junto, vários traços da nossa personalidade passam a ser omitidos em detrimento da vida conjugada. Você gosta de jogar futebol nas terças à noite, mas não gosta de deixar sua namorada sozinha em casa. Você gostava de treinar Muay Thai, mas agora seu namorado fica em casa vendo TV e você prefere ficar esse tempo com ele.

No começo, tudo isso parece atitude de um casal unido, sacrificando seus passatempos preferidos para ficar mais tempo um com o outro. Parece funcionar, até o momento em que ambos perdem suas características mais marcantes.

O casal vai se tornando cada vez mais dependente da presença do outro, o que antes era um cessão voluntária passa a se tornar uma obrigação. Esse comportamento vai se estendendo até o momento em que nenhum dos dois faz mais nada sozinho, a não ser trabalhar. E se algum dos dois trabalha em casa, é pior ainda. Daí em diante um vira uma cópia do outro e começa a se perceber num caminho bem entendiante, praticamente sem saída.

Evitar este ciclo é um exercício constante. Saber quando exigir, e também respeitar a individualidade ajuda não apenas a movimentar o cotidiano, mas a manter o assuntos variados.

Caso contrário, a pessoa interessante que você conheceu pode estar com os dias contados.

5. Saiba existir em silêncio
Existe algo muito ruim e que afeta demais a forma que o casal interage diariamente. Por muito tempo sofri do que acredito ser um mal e em conversas vejo amigos reclamarem com bastante frequência. Existe uma dificuldade em estar junto, no mesmo cômodo sem interagir.

Há uma inquietude em ver a outra pessoa calada, focada em alguma atividade. A insegurança bate, o medo e as aflições começam a falar mais alto. “Sera que fiz algo?”, “Por que ele está tão calado?”, “Será que está chateado com alguma coisa?”.

Da faísca surgem os questionamentos: “Está tudo bem?”, “Por que você está tão calado?”.

Assim, o casal desaprende que ficar em silêncio e cuidar das coisas da vida faz parte, que não precisam conversar o tempo todo, retomando a fagulha de atenção. Que este tipo de situação vai ficar cada vez mais comum, e a ausência de toque e fala, não significa que estão se distanciando. Apenas que estão cada vez mais à vontade na presença do outro.




Tudo o que falei até aqui não quer dizer que a experiência de compartilhar um lar seja intrinsecamente negativa, mas são pontos que, acredito, devem ser observados e contornados sem pânico.

Importante aceitar que cada um vem de um lugar diferente, com costumes, hábitos e preocupação que às vezes podem ser conflitantes. Seu marido pode lavar louça de uma forma que não é costumeira pra você, assim como sua esposa pode guardar coisas com uma lógica que você não compreende.

O choque de pequenas diferenças vai se tornando um problema com o tempo e a convivência, caso não entendam – e aceitem – que as diferenças fazem parte do que torna a parceria tão interessante.

ALBERTO BRANDÃO
Também escreve sobre Parkour no Decimadomuro, conta sua jornada falando sobre empreendeorismo no QG Secreto. Treina Taekwondo, Jiu-jitsu, Parkour e MMA. Escreve sobre treinamento físico em seu blog. Recentemente largou tudo para buscar um caminho mais feliz.



Papo de homem

E se a gente direcionasse a nossa atenção para conteúdos realmente importantes?...

Já deu de euforia por saber que estamos a seis graus de separação de qualquer pessoa e disseminar inspiração e risadas e ideias e uaus e indignações e boatos e selfies apenas por disseminar.
Deu de “curtir” histericamente, de bater no peito com orgulho por ser da zoeira, desse papo sacal de você é o que você compartilha.

Papo de homem

Jovens, lindos, sortudos e fodidos
Bem aventurados são os jovens e suas tardes. Depois do episódio que aconteceu comigo e com o amigo Fred Fagundes, meus olhos nunca mais foram os mesmos para esse período do dia da molecada.

Juntos, estávamos indo ver um apartamento que ele — ainda residente em São Paulo — queria ver para alugar. O cara que ia mostrar o imóvel se demorou e então ficamos esperando na portaria do edifício. Do outro lado da rua, um prédio bonito, cheio dos vidros e dos luxos, porteiro na porta, sacadas enormes, pastilhas brancas e limpas. Lindo, assim, asséptico.

Lá, em uma das varandas, um casal de idade universitária apareceu. Era mais um menos duas da tarde, pouco mais que isso quando eles despontaram em um dos balcões rindo e conversando. Sentaram-se em umas cadeiras de madeira e trocavam ideias. Lá embaixo, debaixo de sol, com trabalho atrasado e esperando o cara que iria mostrar o apartamento pro amigo Fred Fagundes, estávamos nós só a observar.

Aquele pedaço de área construída sobressalente à estrutura da construção era que nem um oásis que nunca alcançaríamos. Dava para escutar uma música tocando lá dentro, o casal batendo papo despretensiosamente lá fora, a garota entrou e voltou com dois copos na mão, sentados em cadeiras e completamente despreocupados. Um gole de bebida aqui, uma risadinha acolá e eles se aproximaram. E quem poderia impedir?

Um beijo, mais um aconchego, outras bitocas, bebericadas nos copos e acenderam um cigarrinho de artista.




BUM! Estouraram. O cheiro tardava, mas chegava até nossas narinas. O bálsamo da vagabundice. Era uma delícia de ver, assistíamos com olhos prósperos. As risadas aumentavam, os toques também e os beijos idem. Duas e meia da tarde. Já em pé, entraram. Foi só depois de alguns segundos de certeza de que não haveria retorno e muito menos um bis, eu olhei pro Fred e ele olhou pra mim. Conjecturamos:

– Bah — esse era o Fred falando, por supuesto — olha isso. Agora eles entraram, vão ver Quero ser Grande na Sessão da Tarde, dar umazinha, comer um lanche que a mãe dela vai fazer enquanto assistem Malhação. E daí ele ou ela vai embora e tudo mais.

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Criamos, nesse dia, um padrão.

De lá para cá — isso já faz uns três anos — pessoas relataram-me ter visto a mesma cena em outras circunstâncias, o mesmo paradigma envolvendo outros lugares, pessoas diferentes, contextos apartados. Mas, no final das contas, o script se repetia: jovens, situações gostosas em horários em que muita gente está voltando do almoço e entrando em alguma reunião de arrancar cabelos e a inveja latente.

Ai, como a inveja bate.

Minha invídia pela meninada livre para voar me intriga até os dias de hoje. Como eles podem ir e vir, sentar no quintal e estourar um baseado sem pressa alguma, ter como meta se manter acordado até o final do dia, receber a namoradinha com a casa vazia e a despensa cheia.

Dia desses, o Eduardo Amuri veio ter comigo. Queria uma conversa mais intimista, me chamou num canto:

– Cara, ontem eu estava trabalhando em um Starbucks, cheio de coisas para resolver, queria um lugar que não me atrapalhassem, e-mails caindo pelas tabelas com caráter de urgência distintos, uma loucura. Na mesa ao lado da minha, tinha um casal — desses de cursinho — fazendo exercícios juntos.

O Amuri é um cara muito concentrado e lúcido.

– Eles ficavam ali, rabiscavam metade de um exercício e se pegavam. “Não, não, a gente tem que fazer esse exercício”, ela dizia e rabiscavam mais um pouco. Riam e se atracavam. Aquele barulho de beijo, aquela coisa apetitosa e ridícula.

Eu sei bem qual é a ambientação da cena. E você também.

– E, sabe, eu tava lá e esses dois estavam lá. Cara, eu fiquei com uma inveja danada.

Claro que ficou. Todos ficamos.

Bem aventuradas as cabeças presentes juvenis. Não há real preocupação como as que temos, não há planos complexos como os que costuramos com o nosso cotidiano atribulado. Eles não são, só estão. E, por essa mazela da língua portuguesa, eles apenas aproveitam o estar com amassos e maconha e as tramas rocambolescas da Malhação.

Eu tenho uma inveja genuína de vocês, jovens despreocupados. Aproveitem bem por vocês e por mim, antes que venha a próxima página. A vida despreocupada do jovem começa a acabar quando chega em casa a primeira conta de celular em seu nome. Ora, em algum instante, por alguma cagada, o pai dessa galera vai mandar tudo às favas e trocar o nomezinho que vem na conta do plano de celular. Com isso, o jovem vai ter de começar a se virar e rebolar para bancar os minutos que perdura convidando a menininha pra fumar unzinho ou pra ver qual bróder tá afim de fazer aquele rolê no começo da noite.

Celular, a gasolina do carro, o primeiro emprego, pegar busão para chegar de terno mal cortado no estágio, tomar esporro do chefe, molhar os sapatos na chuva, não conseguir bancar a viagem com os amigos no feriado, a namoradinha vai com a molecada pra praia e, lá, pega outro cara, aluguel do apartamento, a diarista pra limpar a lambança que os amigos escrotos fazem quando vão lá encher a cara e jogar videogame, planejamento financeiro, brochar diversas vezes, comprar os presentes de dia das mães e de dia dos pais, pagar a fiança do amigo bêbado cagado, chorar sozinho em casa que é, de fato, lugar quente.

Cacete, se essa molecada conseguisse imaginar o quão fodidas elas estarão em breve, a quantidade de sofrimento que elas enfrentarão e que moldarão seus próximos atos, a descida vertiginosa de suas expectativas…

Aproveitem a liberdade. Aproveitem a mamata.

JADER PIRES
É escritor e editor do Papo de Homem. Lançou, nesse ano, seu primeiro livro de contos, o Ela Prefere as Uvas Verdes e outras histórias de perdas e encontros.



Papo de homem

Virgindade, sexo na rua e na TV, patriotismo

O mês das férias, o mês do inverno, o mês em que acabou a melhor Copa que esse mundo já viu.
Os gringos foram embora e o frio ficou. Pelo menos em São Paulo, a friaca se instalou e julho, enfim, teve aquela cara invernal que a garoa fina traz. No PapodeHomem, tivemos uma safra de textos bem variados como mais acessados nesse mês. Tem crônicas de assuntos quentes e grandes artigos sobre as loucuras do mundo e o patriotismo brasileiro.
Vem cá ver:

1. “Beijo gay”, mamilo e cachaça: a televisão continua naqueles tempos de outrora, por Jader Pires (38.178)

Quanto mais fechada a nossa vida for, nossa visão for, nossa tolerância for, mais chata a programação da tevê vai ser. E dá-lhe Datenas e programas do Pânico e novelas do Maneco.
Quanto mais fechada a nossa vida for, nossa visão for, nossa tolerância for, mais chata a programação da tevê vai ser. E dá-lhe Datenas e programas do Pânico e novelas do Maneco.

2. Tenho 23 anos e sou virgem | ID #26, por Frederico Mattos (36.400)

Papo de homem

Como posso estar errado se sou justo? Uma visão do justiçamento no Brasil
Caro leitor, antes que se apresse em crer que este tema não é de sua conta por pensar que “já que não sou bandido e não bato em gente na rua, não preciso ler o texto”, peço que se atente à seguinte situação:
Imagine que, em um dia inspirado, você resolve engolir o cansaço e aderir às recomendações da sua nutricionista chata praticando a tão benéfica caminhada. Melhor, você resolve fazer uma corrida e veste sua armadura completa: o tênis adequado, o shorts, a camiseta própria para sua atividade e, para completar, seus fones de ouvido, a fim de curtir uma musiquinha estimulante para a admirável força de vontade.
Lá vão você e seus pensamentos rua afora. Tudo é lindo, até que algum transeunte grita as palavras “pega Ladrão!”.

Papo de homem

A autencidade e o exemplo imperfeito de Oscar Wilde

Dos três elementos de estética de que tratei (expressão, presença e horizonte), ligados aos três critérios éticos (caráter, virtude e felicidade), os primeiros (expressão e caráter) estão conectados com a ideia de autenticidade.

A autenticidade é, portanto, um pré-requisito para a formação das heurísticas da economia da atenção (os critérios e metacritérios que usamos para nos embrenhar no mundo dos fenômenos cognitivos internos e externos).

“Seja você mesmo, os outros já foram cooptados.”

– Oscar Wilde

Um movimento da virada de século XX, o esteticismo, de onde ainda batem hoje as ondas da “arte pela arte” e tantos outros conceitos mais ou menos claramente vinculados com a fonte, teve como grande expoente o gênio da ironia fina aforística, a elusiva wit (traduzida como “espirituosidade”), Oscar Wilde.

Wilde é uma figura interessante para nossa era “pós-pós” como típico da modernidade já se deparando com aspectos e tensões da pós-modernidade. Seu principal romance, O Retrato de Dorian Gray, lida com as questões estéticas da duplicidade, isto é, a falta de autenticidade.

O esteta, na sua qualidade quixotesca, já ridicularizada na época de Wilde, assume seus ideais como valores naturalmente acima e intocáveis pelas configurações sociais. A barganha faustiana aqui segue na mesma velha dicotomia céu/inferno, antevendo o “inferno são os outros”; e, também, “o céu são as minhas prerrogativas”, no caso de Wilde, “meu ideal de beleza”, não corrompido por qualquer moral.

Beleza desvinculada de ética que ganha, hoje, a dimensão além do pertencimento, a preocupação não só com aqueles que escolhemos (como próximos, como queridos), mas principalmente para com aqueles que desprezamos, desconhecemos ou aparentemente não têm “nada a ver conosco” — embora para o esteticista, os mores particulares da classe alta britânica fossem mais o alvo do que essa visão mais atemporal e neutra da ética.

Também por isso, é extremamente complexo entender a vida de Wilde em nosso contexto atual. Eu, como ele mesmo, reconheço sua vida como uma tragédia e consigo admirar a obra, ainda que veja a arte e vida de forma diametralmente oposta a Wilde. Isso pode ser assim porque, a meu ver, um dos aspectos da “arte pela arte” do estetismo curiosamente se “purifica” da ausência explícita de visão ética, por um motivo bastante abstrato: a arte pela arte no seu ápice não venderia ou propagandearia a noção de “arte pela arte”; não ideologizando, deliberadamente evitaria a propaganda, até mesmo de si própria. Exporia o artista nu em sua contradição. Bom, quem dera.

A contradição em Wilde tem a ver com a autenticidade.

A homoafetividade muitas vezes foi (embora seja cada vez menos) uma das maiores fontes de duplicidade, obviamente porque surge em tensão com as expectativas da cultura. Ora, para qualquer tipo de outsider — deliberado ou não –, o inferno é, em grande medida, de fato os outros.

Porém, na cabeça vitoriana, e na cabeça de Wilde, moral e — seria adequado dizer aqui “opção sexual”? A configuração, digamos assim, do foco dos desejos do indivíduo (tendo ela uma dimensão deliberativa ou não) –, enfim, “esse segundo aspecto”, eram naturalmente conflagrados. Afinal, ética e os mores da sociedade britânica, como de praxe, eram aglomerados na perspectiva vitoriana — isto é, não havia noção de mores universais, ou valores éticos além dos costumes (o que etimologicamente soa um contrasenso mesmo).

Em certo sentido, há várias dimensões morais (éticas) na sexualidade: há o consentimento, há consequências biológicas (doenças, prole) e sociais (laços, contratos, expectativas) — mas na nossa cabeça pós-pós, homossexualidade simplesmente não é mais uma questão moral. Isso é coisa de moralidade prescritiva religiosa, tradicional, assim vemos.

Dois adultos consensuais fazem o que querem, tenham o gênero que tiverem: essa é nossa visão ética. Se ambos tiverem tesão, mas acreditarem na Bíblia, azar o deles — não temos nada a ver com as opções míticas das pessoas. Tire as patinhas daí, não venha me julgar de acordo com seus mores mórmons…

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Claro, há quem ainda mantenha que a homoafetividade é uma infração ética de algum tipo (como há gente em religiosidade medieval) — mas há duas categorias aí: os que acham que ela é imoral e são contra ela, e os que acreditam que ela é imoral e são contra noções de moral de qualquer tipo! Assim, teoricamente, era o esteta, o decadente, na era vitoriana. A dimensão moral permanecia, ela só era desafiada.

Pode parecer que tergiverso — podemos ser inautênticos ou dúplices de infinitas formas, e a homossexualidade na época vitoriana é apenas um exemplo dramático, e feito mais dramático ainda em se tratando de alguém tão preocupado com a autenticidade quanto Wilde. Poderíamos estar falando de alguém que segue uma carreira por pressão da família, ou do adolescente que finge gostar da música que o alvo de sua azaração admira.

Ou podemos falar do “desespero contido” das classes médias, do espalhafato do novo rico, da vergonha da pobreza, ou do falso contentamento do “dinheiro velho”… há duplicidade entre amigos, entre colegas e nos casais — e principalmente no Facebook dos momentos bem filtrados, e onde até os gritos por ajuda surgem como ironia.

Em qualquer âmbito, é possível perder o caráter, não estar ciente de si próprio e do outro, e resvalar para uma situação em que é difícil “escolher” (ou se aceitar em) uma forma de aparição.

Porque Oscar Wilde não é visto hoje exatamente como um mártir dos direitos civis homossexuais? Porque ele, por uma série de razões, muitas delas bastante compreensíveis, fracassou profundamente em ser autêntico. Como Dorian Gray, ele levava a vida de um esteta e um criminoso — por mais que nós entendamos que não era abominável em sua homoafetividade, para ele mesmo isso ainda não era claro, como o comportamento dele atesta.

Parte do problema é a confusão, própria da época, entre moralidade e esse sentido de sexualidade, sensualidade, estética, arte. Ora, Wilde e os outros estetas pregavam uma total separação entre ética e estética. O que se queria dizer com isso? Que a arte não servia para nos dizer como agir, não servia a um fim didático, não devia proselitisar, fazer propaganda. O que soa até muito bem. Mas ao que ela serve? Ela serve apenas para provocar sensações, de deleite ou de outros tipos. E talvez aí nisso haja certa limitação.

O seguinte trecho de transcrição do tribunal incriminou Wilde:

Charles Gill (advogado de acusação): O que é o “amor que não ousa dizer o próprio nome”?

Wilde: “O amor que não ousa dizer o próprio nome” neste século é um afeto de um um homem mais velho por um jovem, como o que existia entre Davi e Jonatas, como o que Platão tinha como a própria base da filosofia, e como o que está nos sonetos de Shakespeare e Michelangelo, e aquelas duas cartas de minha autoria, do jeito que são.

Neste século esse amor é incompreendido, tão incompreendido que pode ser descrito como o ‘amor que não ousa dizer o próprio nome’, e devido a ele que estou nessa situação aqui agora. É belo, é refinado, é a forma mais nobre de afeto. Com relação a ele não há nada que não seja natural.

É intelectual, e surge frequentemente entre um homem mais velho e um mais jovem, quando o mais velho tem intelecto, e o mais jovem tem tem toda a alegria, esperança e glamour da vida pela frente. Que ele seja assim, o mundo não entende. O mundo o ridiculariza, e algumas vezes nos coloca no pelourinho por causa dele.”

Sensação ou abstração? A quem pertence o eufemismo? Wilde disse tudo que era necessário para incriminá-lo. Se ele houvesse mentido de forma mais clara, até mesmo isso seria mais autêntico. Ele escolheu uma meia verdade que foi suficiente para a corte: não era nem bem verdade, nem foi prático.

Um mundo ideal como um balão desvinculado de tudo: das ignorâncias, dos sofrimentos, da própria verdade do quarto. Só algo com a aparência de sinceramente belo, mas que não diz nada a não ser o que, alas, a corte queria (e simultaneamente não queria!) ouvir. Pura sensação.

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O esteticismo também está associado, ou até pode ser mesclado com, o decadentismo e o simbolismo. O Retrato de Dorian Gray esfregava homoerotismo na cara do vitoriano — havia certa afetação sensacionalista em tratar do tema de uma forma simultaneamente tão direta e tão velada.

E não estou dizendo que a grande obra era isso, ou que isso sequer diminua seu valor: mas era também isso. Lorde Byron e seus excessos, Baudelaire e suas flores malvadas e paraísos artificiais, Aleister Crowley e o bad boy como sensação dos tabloides: mesma coisa. Esse é o nascimento do outsider como anti-herói, do rockstar.

Parte do estetismo era viver a arte, e isso incluía a afetação de ser uma celebridade, de causar comoção por não estar nem aí para o que os outros pensam, isto é, no fim se encontrando na verdade muito aí para o que os outros pensam.

Wilde foi, portanto, vítima (além de um tempo e espaço particular) do próprio jogo perigoso que jogava. Nunca admitiu (na época, publicamente) a própria homossexualidade como mais que platônica, mas definhou na cadeia por ela. Ora, se queria ser um mártir, começar uma causa que nem mesmo publicamente existia ainda, se é que a figura do gay (ou instância qualquer LGBT) ativista moderno pudesse existir na época, ele não teria cometido perjúrio, apenas escancarado que o amor dele era puro e físico.

Mas não, ele não queria essas coisas, preferiu mentir que praticava a veadagem dos anjos, sem genitais. Confessou amar homens, mas só lá no santuário platônico: não quis entrar nos detalhes da chuca.

Stephen Fry como Oscar Wilde, na cinebiografia “Wilde” (1997). Fry é homossexual, brilhante e autêntico. Seu documentário sobre a própria bipolaridade “Secret Life of the Manic Depressive” é bem interessante
Stephen Fry como Oscar Wilde, na cinebiografia “Wilde” (1997). Fry é homossexual, brilhante e autêntico. Seu documentário sobre a própria bipolaridade “Secret Life of the Manic Depressive” é bem interessante
Talvez isso não fosse uma opção, contemporizo, embora fosse: era só ir viver na França — apenas que a graça, para esse irlandês, era chocar os ingleses. Mas não foi só ele quem sofreu pela dança estética perigosa da ironia de seus escritos e de seus ideais “estéticos” (e desculpas): sua mulher e filhos, e seus parceiros também sofreram degradação social e econômica. E não foi tanto a homossexualidade ou as meias-verdades que causaram o sofrimento: foi essencialmente a húbris, que sustentou toda essa duplicidade.

Em certo sentido, Wilde foi autêntico ao ideal quixotesco do esteticismo: ele simplesmente não acreditava que uma corte fosse escrutinar os detalhes da sodomia em meio ao decadentismo dândi das tiradas sofisticadas, em meio aos tão elevados ideais da arte como valor absoluto (e a palavra “ideal” aqui é até mais-que-platônica, é o ideal dos ideais, a aesthesis desvinculada de causa e efeito, um mundo totalmente a parte das questões humanas e temporais, a não ser para as menosprezar e ridicularizar — húbris ao quadrado).

A duplicidade está em reconhecer a tensão entre o público e o privado e a usá-la para os próprios fins: Wilde confiava que a homoafetividade podia ser pública, se fosse platônica, ainda que não fosse de fato em privado. É uma forma peculiar de “don’t ask, don’t tell”.

Mas o que é ser autêntico a uma fabricação, a um sonho que inevitavelmente acaba por se tornar o que explicitamente evita ser, uma prescrição, uma propaganda? E, pior, qualquer neopentecostal mais literato vai encontrar na vida e na obra de Wilde moralzinha para boi dormir: “olha só no que deu… e ele ainda encontrou Jesus na cadeia.”

Já toquei um pouco no assunto em meus textos sobre teleologia (“Breve ruminação hiperbólica de alguns clichês teleológicos” e “Mais sobre teleologia: o gênio/demônio“, que se conectam aos aspectos de horizonte e felicidade, mencionados no início do texto em relação aos dois grupos de valores tríplices de estética e ética que preconizo), mas a tensão entre o individuo enquanto construto de fora para dentro e enquanto construto de dentro para fora (“nature vs nurture”), exatamente o conflito de Dorian Gray. O cerne do problema wildeano também no tribunal da sua vida cotidiana, é a questão da autenticidade.

Em outras palavras, retomando o daimon socrático e a vocação cristã, o que realmente somos não é totalmente determinado por deliberação e questões internas, mas sim é um reconhecimento da relação destas com as circunstâncias do mundo (representados pelo “chamado” a se ser o que se é, seja por uma entidade externa, no caso do teísmo cristão, seja por o que for o que seja um “daimon”).

Nossa cultura, com uma motivação econômica deturpada, nos doutrina a acreditar que somos seres plenamente deliberativos, isentos. Porém, na verdade somos tão condicionados por hábitos ocultos que não somos sequer capazes de reconhecer o que seria efetiva liberdade — pensamos que somos livres e, assim, não achamos nada de estranho em estarmos algemados.

Em nosso sonho de seres plenamente deliberativos, acreditamos que podemos nos construir como quisermos — “o que você vai ser quando crescer?”, os adultos brincam de nos perguntar, eles mesmos lidando com os papéis que lhes couberam em suas vidas de adultos. E não estamos só falando em carreira, há a cena famosa de Annie Hall em que as crianças falam como adultos descrevendo seu passado: “eu era viciado em heroína, daí fiquei viciado em metadona”.


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O Wilde anacrônico diria “eu era uma sensação, gênio, popular e chique… daí acabei sacaneando todo mundo ao meu redor, apodreci na cadeia e morri doente e pobre em exílio”. Somos o que conseguimos ser, mas em geral nem temos clareza dos nossos potenciais, tanto pelo lado de os idealizarmos quanto por os menosprezar.

Enquanto isso, toda nossa experiência de clicks e compras parece plenamente deliberativa. “Eu dou like no que eu quero” — mas será que é assim?

(E aqui eu abro um parêntese enorme: homossexualidade e deliberação. O progressismo atual é contra a ideia de qualquer grau de deliberação na homoafetividade, mas me parece que isso é assim apenas por que é a forma de combater as ideias abstrusas de naturalismo da ala do teísmo prescritivista homofóbico — ser “criado gay”.

Porém, o quanto há de deliberativo na homossexualidade, fora dessa discussão, é difícil dizer. Em todo mundo possível, eliminando as bobiças da gente do livro tribal dos judeus, não há nada de particularmente positivo ou negativo em algo ter elementos deliberativos, ou mesmo ser “antinatural” — seja lá o que isso quer dizer num mundo não teísta –, porque não há deus a desafiar ou mos tribal universal.

Sem dúvida os defensores das noções de espectro de orientação e gênero hão de convir que há espaço para aqueles que gozam com a artificialidade e em desafiar mores, ou que pelo menos o homoerotismo deliberativo é uma possibilidade. Pela dimensão de contravenção moral decadentista, que talvez Wilde reconhecesse, ela continha deliberação. Mas essa é outra discussão, uma vez que pouco importa se um aspecto ou outro é dado ou deliberado, o que importa é como se pode ser autêntico em meio a isso).

Ao contrário do curioso produto do puritanismo vitoriano, que no seu ápice intelectual sonhava um mundo sem a pressão da sociedade ignorantona, daquela gente simplória e de mau gosto que não entendia nada de “amor grego”, o nosso ápice intelectual sonha uma sociedade auto-organizada, igualitária e acolhedora — espelhando nosso autorreconhecimento como seres isentos e justos, “automaticamente livres”.

Você conhece alguém que não se ache isento e justo? Dá para começar a desconfiar de autenticidade, e entender que há autoengano em massa. Se o autoengano é o que há de prevalente no mundo, daí a autenticidade ser rara.

E o mesmo tipo de tensões vitorianas ainda estão, em certo sentido, presentes: talvez não a “guerra da cultura” (que já foi vencida, por mais que a gente ainda tema a “bancada evangélica”, ou possam haver retrocessos circunstanciais), mas a da construção do eu como fruto de si mesmo e da cultura entrelaçados, e não um tumor na cultura ou a esquizofrenia das pressões da legião.

No seu exemplo mais microscópico, isso se espelha nos extremos da pessoa que fere pelo candor — por não respeitar circunstâncias, e simplesmente “dar a real” avassaladoramente — e da pessoa com a fala totalmente ensebada, que nunca menciona o “elefante na sala”. Há espaço para o candor, e há espaço para o eufemismo e para a fala estratégica: da mesma forma a autenticidade não é o irrascível independente ególatra, e tampouco o almofadinha superajustado.

Há um equilíbrio, um ponto ideal de moderação, entre adaptação, pertencimento e visão estratégica, por um lado, e rompimento, pensamento fora-da-caixa e espontaneidade, por outro.

Figuras trágicas como Wilde ou Sócrates, em suas imperfeições, e em suas amostragens de um período e dos problemas humanos vividos em um período, são importantes por vários motivos. Um deles é o exemplo, óbvio, mas que não é para ser seguido em nenhum tipo de simetria, uma vez que o custo em termos de sofrimento pode ser bastante desnecessário — bem como espelhar e interpretar circunstâncias tão diferentes não ser exatamente fácil.

Eles são ainda mais interessantes como amostras de aspectos da autenticidade, em particular de como é difícil ser autêntico, e que custos se aproximar da (nem vamos dizer conseguir) autenticidade pode acarretar.

oscar-wilde

… Eu queria comer do fruto de todas as árvores no jardim do mundo … E assim, na verdade, eu segui, e assim que eu vivi. Meu único erro foi que eu me limitei exclusivamente às árvores do que me pareceu ser o lado ensolarado do jardim, e evitei o outro lado por sua sombra e melancolia.”

Em De Profundis, Oscar Wilde reconhece que tudo que aconteceu com ele não foi culpa de mais ninguém.

EDUARDO PINHEIRO
Diletante extraordinário, ganha a vida como tradutor e professor de inglês. É, quando possível, músico, programador e praticante budista. Amante do debate, se interessa especialmente por linguística, filosofia da mente, teoria do humor, economia da atenção, linguagem indireta, ficção científica e cripto-anarquia.


Papo de homem - a vida tem um sentido coletivo


  1. Anatomia de um crime

O texto tá finalizado. Se tiver 5 curtidas e 2 comentários, vai ser muito. Pelo menos ninguém pode reclamar que o Papo de Homem não puxa casca de ferida.”
Foi assim que apresentei ao Jader, meu editor no Papo de Homem, o artigo “A vida tem sentido?“. E eu estava sendo franco em relação à baixa expectativa de curtidas/comentários, afinal, o que podia esperar de um texto que fala do sentido da vida sem pretensões religiosas e sob a perspectiva de um personagem neurastênico?
Por isso fiquei incrédulo quando, na manhã da publicação, recebi uma mensagem do Jader avisando que o texto estava bombando nos comentários.
Mais ainda, eu não estava preparado para a excelência daquelas conversas. Foi uma polifonia de testemunhos e referências, em que se harmonizaram vários instrumentos e ritmos. De metal sinfônico à MPB; de curta-metragens à cenas de longa-metragens; de citações de mestres orientais à confissões de romancistas russos: todos convergentes na formação de uma visão única, embora plural, sobre o sentido da vida humana.
Mas algo que me incomodou, por estarem absolutamente certos, foram os comentários de Vinicius Domenes e Frederico Vilela. Segundo eles, faltou, ao final do texto, uma proposta de sentido da vida. A verdade é que assumi a posição confortável de não me expor e, por outro lado, não me sentia a vontade com nenhuma das propostas apresentadas usualmente, principalmente pelas religiões, a respeito do tema.
Ocorre que, após ver a excelência de todos aqueles comentários, não havia mais desculpas — a busca por uma proposição do sentido da vida havia se tornado uma atividade coletiva com todos os leitores que participaram.
Como o seriado True Detective, que inspirou o texto, os comentários tornaram-se uma verdadeira investigação. Mas não uma averiguação criminal, e sim uma busca por pistas que possam desvendar outro tipo de delito: aquele que nos privou do sentimento de integração com o universo, de completude com o mundo circundante, aquele que nos faz perguntar se a vida tem um sentido.

2. A cena do crime

Papo de homem

Álbum de figurinhas: Petit Bamba e a torcida organizada do governo da Costa do Marfim

Na Costa do Marfim, elefantes são uma coisa tão séria que há até uma organização governamental dedicada ao bem estar deles: o Comitê Nacional de Suporte aos Elefantes (CNSE).

Mas se o que veio à sua mente após conhecer a sigla foi algo como a preservação dos paquidermes ou a manutenção de um santuário para animais com risco de extinção, é bom esclarecer: estamos falando de elefantes com apenas duas patas. Ou melhor, pernas. Mais precisamente,  o assunto aqui – e lá no Oeste africano quando o nome vem à tona – é futebol.

Conhecida entre os adversários pelo apelido “Os elefantes”, o time de Didier Drogba, Yaya Touré e Gervinho recebe a cada torneio o apoio incessante de torcedores profissionais, bancados pelo ministério dos esportes para representarem o país aonde quer que o time se apresente.
gaoussou bamba, o torcedor da costa do marfim Petit Bamba
Há 24 anos, é esse o ganha-pão do marfinense Gaoussou Bamba.
Uma das principais atrações de todos os jogos a que vai, Petit Bamba orna seu corpo de laranja, verde e branco desde os 14 anos de idade. E embora a imagem de um homem com o torso nu, uma saia ornamentada e as cores do time pintadas das unhas dos pés à cabeça não seja exatamente o que nos vem à mente quando se pensa em torcida organizada no Brasil, as semelhanças existem. Assim como do lado cá do Atlântico, a vida do torcedor profissional marfinense também parece movida a polêmicas e fanatismo.
Tachado como alcoólatra e usuário de drogas por um de seus desafetos, é acusado de ter ficado rico às custas das doações de dirigentes e jogadores de futebol. Ele nega, declara seu amor ao país e se diz decepcionado com o pouco valor dado às contribuições dadas por ele e pelas outras gerações de torcedores símbolo que o antecederam. Apesar de tudo isso, uma coisa é certa: a paixão pela arquibancada ninguém lhe tira.
“No dia em que eu morrer, quero estar dentro do estádio”.
***
Uma Copa do Mundo se faz com pessoas.
As que entram em campo, as que viajam para testemunhá-la, as que enchem as ruas, as que se voluntariam, as que torcem e as que veem no evento uma oportunidade para garantir seu sustento ou para extravasar.
A seção “Álbum de Figurinhas” pretende contar, com um microrrelato artesanal e um retrato por dia, a história de algumas dessas pessoas, muitas vezes invisíveis, que povoam os bastidores da Copa do Mundo do Brasil.
Para ler todos os textos, basta entrar no nosso Álbum de Figurinhas.
Ismael dos Anjos
É mineiro, jornalista, fotógrafo, devoto de Hunter Thompson e viciado em internet. Quanto mais abas abertas, melhor.

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Papo de homem

Sou rejeitado porque sou feio demais

“Tenho sérios problemas com minha aparência. Ok, eu entendo que essa não é uma questão pouco usual e que existem centenas de artigos por aí enaltecendo o ‘amor próprio’ como solução. No entanto, meu caso é um pouquinho mais profundo. Não sou feio por descuido. Eu sou um feio três graus acima da Rossy de Palma, não dá pra escapar.
Até o começo do ensino médio minha preocupação girava em torno dos estudos, apenas. Minha família me via como o inteligente, meus poucos conhecidos (não tive amigos até o começo da faculdade) me viam como uma pessoa estudiosa.
Quando comecei o ensino médio, dei de cara com uma série de situações que simplesmente não faziam parte da minha visão de futuro antes. Ser jogado de grupo em grupo pra fazer os trabalhos porque não me queriam neles, ver grupos de amigos saindo no final de semana e nunca ser convidado, ser isolado das conversas no intervalo… No começo pensei que fosse pela minha timidez. A superei e fiz minhas primeiras ‘amizades’. No entanto, eu continuava me sentindo isolado. Passei a ser simpático, a tratar os outros da melhor maneira possível. Não adiantou. E eu sentia uma vontade latente de viver, de sair dos livros por um momento, de aproveitar minha juventude.
No meio do primeiro ano me apaixonei por um garoto que sentava perto de mim. Primeira paixonite, fiquei besta. Eu sabia que ele era bissexual e isso me deu esperanças. Realmente dei a entender que gostava dele. Me sentia numa daquelas séries sobre adolescentes, curtindo o ‘high school’. Mas aí veio o baque. Numa das feiras de exposição de trabalhos mensais do colégio, vendo o tanto de casais que iam se formando no decorrer do dia, parti pra ação. O chamei num canto e contei tudo. Depois de cinco minutos em silêncio ele respondeu: ‘mas você é tão feio…’. Fiquei sem reação, pedi desculpas e fui embora.
Na semana seguinte perguntei pra uma colega se eu era realmente feio. Ela enrolou dizendo que ‘o que importa é o interior’ e tudo mais. Pedi para ser sincera. ‘Sim, você é feio. E não é pouco’. Tudo começou a se encaixar. Eles tinham vergonha de sair comigo e uma dose de repulsa por conta da minha aparência. No decorrer do ano foram deixando isso claro.
Me isolei por completo, numa tristeza profunda, até o final do ano. Foi horrível.

Ano novo, professores novos, alunos novos. Decidi dar a volta por cima e sair da fossa. Se antes eu era simpático, agora seria tão amável que qualquer um esqueceria da minha feiura. A situação piorou. Agora eu ouvia comentários maldosos quando passava pelo corredor. Apelidos que só entendi agora.
Comecei a gostar de outro garoto, de outra sala, e dessa vez fui mais discreto. Fiz amizade, o ajudei com os trabalhos, conquistei sua confiança. Depois de alguns meses éramos muito íntimos. Quanto senti segurança contei o que sentia. A resposta: ‘Eu até ficaria com você… mas não dá’. Perguntei o motivo. Ele desviou do assunto. Fui insistente. ‘Você não é atraente, sabe?’. Bang. Até hoje não entendo o que motivou as pessoas a serem tão sinceras comigo.
Entrei em depressão. As notas despencaram, a neura da minha mãe em me controlar se tornou mais intensa por conta disso, os professores só reclamavam. Me afastei dos poucos conhecidos que tinha. Eu lia vários casos de pessoas que se sentiam feias e não me sentia representado, por algum motivo. A sociedade me isolava por ser gay, e os gays me isolavam por ser feio.
Terminei o ensino médio raspando, com as notas riscando o vermelho. Consegui vaga numa faculdade particular para o segundo semestre.
Durante metade de um ano refleti muito. Não queria passar por tudo aquilo de novo na faculdade, queria tomar uma atitude. Sempre fui vaidoso, mas dessa vez comecei a extrapolar. Roupas novas, atividade física, alimentação saudável, todo tipo de tratamento pra acne, mudança de atitude. Me senti pronto.
Não adiantou. Foi desastroso. As piadas sobre minha aparência surgiram logo no primeiro mês. Pra conseguir os primeiros amigos foi um sufoco. Dar em cima de alguém? Nem pensar. Foquei nos estudos como forma de distração.
No meio do segundo ano recebi um comunicado, por um professor, de que uma empresa estava interessada em me contratar por conta do meu desempenho exemplar na universidade. Marcaram a entrevista, engoli o medo e fui de queixo erguido. Era o momento de esquecer tudo o que me deixou pra baixo.
Sala de espera: eu e outro garoto da minha universidade (lindo). Tremi. A autoestima evaporou. Nunca me senti tão inseguro. Eu sabia que tinha mais chances de ser contratado, tanto pelas recomendações dos professores quanto pelo meu esforço. Me chamaram. Logo na entrada senti a surpresa nos olhos do entrevistador. Fingi não perceber. No mais, foi tudo como eu planejei. Respondi tudo da melhor maneira possível. Me forcei a acreditar em mim por meia hora. A última pergunta me deixou constrangido: ‘você acredita que sua aparência poderia influenciar sua vida profissional?’. ‘Sim, a apresentação pessoal é fundamental para o desenvolvimento de boas relações com os clientes’. Ele deu um risinho de meia boca, me agradeceu e eu saí. A pergunta dele era sobre outra coisa. Não consegui a vaga.
Agora, estou aqui. Tenho faltado muito na faculdade, me isolando de novo. Pensei em me matar três vezes. Não o fiz por medo do que aconteceria com minha mãe.
Quero um conselho, qualquer coisa. As respostas que vejo para meu problema são pré-fabricadas. Por favor.
Z.”
Caro Z.

) Papo de homem

Conversas que tocam o chão
Barbatuques no espetáculo "Corpo do som"
Barbatuques no espetáculo “Corpo do som”
Ontem conversei com uma amiga que está vivendo complicações no namoro. Ao ouvir seus relatos e reclamações, além da ausência de rede, percebi um entrave fundamental para qualquer tentativa de pacificação: eles não conseguiam tocar o chão.
Tentei descrever para ela o que entendo por “tocar o chão”; e agora abro o papo aqui. Escrevo de coração para registrar e ouvir de vocês sobre esse processo que para mim infelizmente ainda é muito raro. Vou focar no contexto de uma relação de casal, mas é bom manter em mente que isso se aplica a todas as outras relações, entre amigos ou em uma empresa, por exemplo.

Papo de homem - o erro, o culpado e o chefe

Senta aí!
“Então vai ser assim”, pensou Marcelo apreensivo, enquanto sentava na cadeira vazia em frente à mesa do chefe de operações da unidade de São Paulo. A cara dele não era das melhores e a conversa seria complicada. Marcelo havia errado feio.
— Entende o problema que você causou a essa empresa, Marcelo? Faz alguma ideia do que perder esse cliente significa?
— Na verdade, nós nunca perdemos algo que nunca tivemos.
— Se você for bancar o espertinho, nem vou me dar ao trabalho de ter essa conversa…
— Se você for me demitir de qualquer forma por ter errado, eu também não.
Nem Marcelo acreditou na coragem que teve para falar aquilo. No dia em que ele decidiu que faria as coisas da forma como fez na apresentação para o cliente, sabia que poderia chegar a esse ponto, se tudo desse errado. Era arriscado, era audacioso e com grandes chances de dar errado, e como Murphy nos ensinou, deu errado da pior forma uma vez que o cliente entendeu as ideias de Marcelo como chacota.
— Renato, eu sei que definimos uma estratégia há semanas, sei que conversamos várias vezes sobre isso e eu realmente gostava do nosso escopo inicial. De tanto que mergulhei nesse projeto, acabei tendo outra ideia, meio fora dos padrões… sim, concordo, mas se fosse tocada para frente, mudaria o mercado desse cliente para sempre. Caso a maioria dos objetivos fossem atingidos usando aquela estratégia, estaríamos falando da criação de uma nova Apple…
— Não importa, Marcelo! Você fez a empresa passar vergonha, a diretoria em Minas está querendo sua cabeça. E eu não vou nem mencionar o que o pessoal do Rio quer fazer com você, já que eles conseguiram essa reunião.
— Eu sei que agora não importa mais. Eu preciso que você entend…
— Se eu não entendesse, você acha que estaria tendo essa conversa comigo agora?
— …
— Você é um rapaz inteligente. É tranquilamente um dos melhores colaboradores…
 Não sou colaborador, sou empregado…
— Posso terminar?
— Desculpe.
 Você é meio petulante, meio arrogante, mas tem ótimas ideias. Convive bem com o pessoal, quando não enfia uma ideia na cabeça e começa a não aceitar a opinião de mais ninguém. Eu vejo um futuro brilhante para você, Marcelo, mas você tem que me ajudar, pô! Pare de achar que você vai resolver tudo sozinho. Se não trabalhar junto com outros, e não usar o que tem de melhor para um objetivo maior do que conquista pessoal, então você vai ser pra sempre o que é hoje… um grande ponto de interrogação.
Todos nós sabemos que em qualquer situação existem momentos-chave que, dependendo da sua escolha, irão mudar completamente o final da história. Marcelo sabia que o que ele dissesse agora decidiria o rumo das coisas. Independente do resultado, ele iria seguir seu feeling – que afinal de contas era o que tinha colocado ele nessa situação.
Marcelo respirou fundo e preparou o discurso:
“Eu errei por não ter vendido a ideia antes para todo mundo, mesmo que não houvesse tempo para isso. Devia ter seguido sua liderança e não agido de forma egoísta. Às vezes, acreditamos tanto em alguma coisa que seguimos adiante, não importam as consequências. Mesmo assim, acho toda essa reação um tanto exagerada. Você não pode me culpar por tentar. Eu sou culpado por aquilo que disse e não por aquilo que outra pessoa entendeu.
Não posso ser execrado como um pária porque um cliente ou qualquer outra pessoa não entendeu o que eu disse. Você mesmo disse que concordava com o que fiz, mas claramente discorda da forma que eu fiz. Tudo bem. Mas me puna apenas por aquilo que sou culpado. Todos nós erramos por vários motivos, grandes homens ou homens sem importância.
É dito por aí que Einstein era péssimo em algumas matérias na escola. Nobel explodiu o laboratório inteiro quando inventou a dinamite, Colombo errou o caminho das Índias, Michael Jordan inventou de jogar beisebol antes de encerrar a carreira, Sergei Korolev explodiu inúmeros foguetes antes de conseguir mandar pela primeira vez para o espaço, James Cameron dirigiu Piranhas antes de Exterminador do Futuro 2, Henry Ford faliu duas empresas antes de abrir a Ford.
Eu, você, nossos pais, colegas, amigos erram, mas as grandes mentes e prodígios da humanidade também erraram feio antes de conseguirem grandes feitos.
A lista é interminável. Você pode nomear quase qualquer um e ele terá algo no currículo do que não se orgulha muito.
Os russos foram os primeiros em tudo na corrida espacial, menos pisar na lua, e eles só não foram primeiros nisso também por causa da morte prematura de Korolev. E se eles tivessem desistido dele antes?
Isso sem falar na humanidade como um todo e nas atrocidades que já cometemos. Erros imperdoáveis que nunca devem ser esquecidos mas que devem ser superados através do esforço em conjunto para que eles jamais se repitam.
Eu não estou, obviamente me colocando no mesmo nível de algumas dessas grandes mentes que citei.
Estou apenas dizendo que o senhor estaria cometendo um grande erro ao me demitir sem me dar outra chance.”
— De acordo com sua lógica, se eu cometer esse “grande erro” de demiti-lo eu poderia dormir tranquilamente sabendo que grandes homens também cometem erros.
— Várias editoras recusaram Harry Potter antes de ser lançado pela Bloomsbury. Walt Disney foi demitido do jornal que trabalhava, por não ter imaginação, nem boas ideias. A Decca Records disse que uma certa banda chamada Beatles não tinha futuro no show business…
— …
— Eu não vou prometer que não vou errar. Porque eu vou. Errarei grande e pequeno. Só posso prometer me envolver mais com a equipe e confiar no seu direcionamento.
No meio do argumento Marcelo já tinha certeza de qual seria o resultado. Mesmo assim, aqueles segundos antes do chefe de operações Renato Costa dizer qualquer coisa eram torturantes.
— Eu quero um e-mail endereçado para toda a equipe envolvida com uma retratação. E quero que você se concentre no próximo trabalho. – disse Renato por fim.
— Obrigado.
— Até mais.
Marcelo então saiu da sala do chefe e sentiu vários olhares atraídos para si.
Sentou e voltou a escrever.

Pedro Turambar

blog O Crepúsculo e No Twitter, atende por @pedroturambar.


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