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Número confidencial

No dia do aniversário "Bem", ela ganhou o telefone com que tanto sonhava: um iPhone! "Leãozinho" deu o aparelho, mas esqueceu de anotar o número que estava já instalado nele. Tinha nada, não, assim que "Bem" voltasse da viagem de urgência que faria a Buenos Aires, acompanhando uma tia doente, se falariam. Um mês passaria depressa. Acostumara-se a chamar a amante de "Bem" porque era assim que tratava a esposa e não haveria risco de trocar os nomes. A mulher tinha um nome comum, mas o de "Bem", era meio estranho: Jopsla! Ninguém sabia a origem do nome, mas não vinha ao caso. "Bem" estava de bom tamanho. Novo telefone, chip novo, pré-pago, e o número não importava, pois sempre que "Bem" ligava, o que aparecia na tela de "Leãozinho" era "número confidencial" que era para disfarçar no caso da patroa atender. Por uma questão cultural, toda patroa se acha no direito de atender o celular do seu esposo e se o telefone dele tocasse assim, no meio de qualquer hora do dia, ela perguntava em tom de exigindo uma resposta: 
- Quem é, meu filho! 
Se o "Leãozinho" ficasse dizendo "alô! alô!", no terceiro "alô", já estava combinado, "Bem" desligaria imediatamente sem falar". E aí, ele respondia sem alterar, o batimento cardíaco ou inventar uma desculpa mais complicada: 
- Sei lá, Bem, é número confidencial. 
E a "Bem" da paixão ligaria meia hora depois. Tudo certo, tudo combinado, e nunca falhou. Ele, por sua vez, nunca ligava para ela, para evitar de deixar gravado um número que podia ser questionado por sua patroa há mais de trinta e cinco anos. "Bem", a bem da verdade, nasceu quinze anos após o casamento de Leãozinho com sua patroa. Ela, virgem donzela, casara-se com ele de véu e grinalda e levava muito a sério esse negócio de "até que a morte os separe", senão...! Tolerância zero! Marcação cerrada. Os encontros dos dois sempre eram pela manhã, três, quatro vezes por mês, quando Leãozinho tinha, digamos, permissão para uma caminhada na Beira-Mar. Aliás, por falar em Beira-Mar, certa vez Bem se engraçou de um cordão de ouro que recebera da esposa e ele, muito afoito, tirou do pescoço e colocou no pescoço dela. Em casa, juntou o útil ao agradável dizendo que um marginal conhecido na área havia arrancado com alguma brutalidade. "Olha aqui, olha aqui..." - apontando para a marca roxa do beijo dado só para infernizar, Bem era assim mesmo, bem moleca. Pois bem, "Bem" ganhou o telefone chique e viajou com a tia doente a Buenos Aires. A tia doente era um senhor também já entrado na idade, como Leãozinho. Bem foi, mas não gostou de Buenos Aires, reclamou que não entendia a língua e mais ainda detestou o frio. Melhor para "a tia doente" que ficou a maior parte do tempo no quarto do hotel barato perto da Calle Florida! Na outra ponta, Leãozinho contava os dias. "Assim que você chegar, quero que vá me encontrar com aquele vestido curtinho, mas vá só de vestido..." "Combinado, Leãozinho, pode deixar...". Quando Bem chegou, ligou. Mas quem atendeu? A patroa. Bem estava no banheiro... Lá de dentro, quase dá a maior bandeira ao gritar entre o ansioso e o desesperado: 
- Quem é? Quem é? É confidencial?" - deixou escapar. "É, por quê?" respondeu a patroa emendando "por acaso está esperando alguma ligação confidencial?" Bem não ligou depois de meia hora, mas se ligou ele não soube. A patroa não só desligou o telefone como fez pior: tirou a bateria.
by A. Capibaribe Neto no Diário do Nordeste

Crônica dominigal de A. Capibaribe Neto

O homem que nunca chegava

Era como se as malas nunca fossem abertas. Mal chegava já estava de partida. Vivera uma vida de desencontros embora estivesse sempre em busca do porto definitivo. Queria chegar, ficar mais tempo, talvez a vida inteira, e precisava encontrar motivos, terreno fértil, plantar sementes, sentir as raízes procurando o fundo da terra para se agarrar, para se fincarem e não temer ventos, tempestades, raios, o que fosse. E chegava, e procurava até cansar. Depois, sentava e ficava ali, ao lado da mala surrada e da mochila onde carrega todos os retalhos da vida vivida e retalhada em mil partidas, em mil buscas e desencontros, na paz aparente de uma praça qualquer que se esvaziava quando a noite se espreguiçava para dentro da madrugada e via o dia raiar. E aí, escolhia uma rua qualquer que o levasse a uma avenida e a avenida se transformasse em estrada e desafiava um novo horizonte. Nunca olhava para trás. Aprendera isso com os indianos que se vestem apenas com um manto de cor laranja e caminham sempre para frente, sem jamais olhar para trás. 
O homem olhava, vez por outra, para ver se havia deixado rastros, pegadas, como se quisesse ser seguido, encontrado e aí, ter um motivo para parar, ficar mais tempo e, quem sabe, nunca mais se despedir de coisa nenhuma ou daquilo que encontrava, mas deixava para trás, como se nunca tivesse passado por ali, deixado o nome, um endereço... Podia ser chamado de andarilho, caminheiro errante, fugitivo, mas fugitivo de quê? 
Ninguém foge de lembranças, de saudades, de nomes de cheiros bons, de recordações marcantes. Ninguém foge da dor. Toda dor tem que doer até passar. Todo pranto tem de ser chorado até que sequem as lágrimas, até que acabe o motivo ou se descubra que também as dores, principalmente as das saudades, de uma benquerença que acabou de um lado, chegam a um fim. 
Ninguém determina que vai parar de sentir saudades ou de lembrar de um rosto ou de uma voz cheia de diminutivos carinhosos que se cansaram ou se esgotaram porque não tiveram eco ou, quando tiveram, já era tarde demais... Muitas vezes, negligenciamos e quando menos esperamos, pinga uma gota d'água que faz transbordar tudo. É a última, contra quem não existe força capaz de juntá-la, e fazer o tempo voltar. Não volta. Existe um homem assim dentro de cada um de nós. Estamos sempre fugindo, ou pelo menos tentando, até das verdades, das realidades, das consequências, mas a pior fuga é aquela que tentamos empreender para nos afastar dos arrependimentos. "O arrependimento quando chega, faz chorar, oi! Faz chorar... Os olhos ficam logo rasos d'água, e o coração parece até que vai parar..." - a música é velha, mas histórias assim são atuais, mesmo que a moda seja outra. 
O homem ficava sentado no banco da praça, olhando para um lado e para o outro, respirava fundo, segurava o rosto entre as mãos, vez por outra alguém via lágrimas cadenciadas se espatifarem no chão sujo e se misturavam a umidade do cimento ou logo eram absorvidas pela quentura de um dia escaldante. Depois, levantava-se, respirava fundo e ia embora. Não importava de onde tinha chegado e muito menos para onde estava indo. Só queria ir. Um dia chegaria ou ao lugar que já o esperava ou para as surpresas da vida que se escondem em cada novo amanhecer. 
O homem não sabia aonde haveria de chegar, mas nunca esquecia de onde havia partido e porque carregava sua história tão pesada em direção a nenhum lugar...

Estrelas esquecidas

Havia tempos que não nos falávamos, mas as lembranças dos últimos momentos que passamos juntos nunca esmaeceram. A primeira vez que a vi chorar de verdade foi no aeroporto, quando assistiu o etiquetar das malas. Pela quantidade, ela se deu conta de que a partida tinha dia marcado, mas a volta estava fora de cogitação. "Por que para tão longe e qual a razão do lugar e sem passagem de volta?"
Explicar certas coisas muito íntimas não é fácil, principalmente quando se deseja guardar segredo para o próprio coração, esconder detalhes até da alma. "Um dia eu explico..." - respondi, depois de pigarrear discretamente, para evitar que ela desconfiasse que estava mentindo. "Quero saber agora, acho que mereço, afinal de contas..." - e deixou, depois das reticências, todo um rosário de motivos que nunca esqueci.
A casa velha fora demolida e a casinha nova mudou de endereço, de inquilino, não importava mais, não contava mais, mas existiam outras razões... Não muitas, talvez duas ou três, talvez apenas uma, mas tinha uma explicação, beirava ser uma justificativa. Nada na vida é eterno. Tudo é passageiro, embora sempre voltemos às origens, mesmo quando viramos pó, o pó das estrelas das quais viemos e de quem somos filhos ingratos.
Não me considero tão ingrato assim, porque de uns tempos para cá, tenho cuidado muito bem delas. Na verdade mesmo, elas cuidaram mais de mim porque me escutaram apenas brilhando, piscando em sua forma de entender e serem cúmplices no contexto das confissões que fiz, muitas vezes, madrugada adentro.

Frases feito tapas na cara

Crônica de A. Capibaribe Neto


ELA ESTÁ VIVA É PORQUE NÃO FUREI NO LUGAR CERTO" - foi o que disse uma das menores aos policiais que as prenderam e a quem chamou de "vagabundos", e cujas iniciais nem ao menos foram liberadas, mas que é conhecida pela alcunha de "Putinha" no seu reduto, e que esfaquearam a médica Larissa Costa Amorim, 23 anos, que nem ofereceu qualquer resistência à abordagem delas. Furaram de maldade, pura perversidade por conta da impunidade assegurada pelas leis vigentes.

De que adiantado seguir à risca as instruções das autoridades, de não resistir, não olhar na cara de suas excelências os senhores bandidos?

Mesmo nas altas rodas, em conversas nem sempre amenas e descontraídas dentro de mansões de muros altos, apartamentos luxuosos com portas blindadas e carrões idem, o assunto nunca sai de moda: 

A VIOLÊNCIA CRESCENTE e a sua relação estável com a impunidade.

A Polícia prende, a justiça solta. A contumácia da evidência dessa dobradinha estarrece e remete à desconfiança da existência de outra dobradinha por detrás de tanta impunidade gritante: a de que delegados sem escrúpulos estariam mancomunados com autoridades de plantão para soltar, se não imediatamente, para não dar na vista, mas em dois ou três dias, marginais de alta periculosidade através de sagrados habeas corpus. E ninguém faz nada ou, no máximo, finge que faz.

Quem faz mesmo alguma coisa são os ecologistas, os ecochatos de plantão e os baderneiros oportunistas que infiltram entre os que reivindicam, com seriedade, o respeito pelo verde. Concordo com a importância de uma árvore, mas entre uma árvore cortada e uma vida ceifada sou mil vezes cortar uma árvore, principalmente quando se trata da vida de uma criança.

Queria ver afinco assim, como o dessa turma que esperneia pela vida das árvores do Cocó, investir, uma semana que seja, em manifestação contra a violência, cobrar rigor das autoridades, exigir TOLERÂNCIA ZERO.

Queria ver, aplaudir e até participar de um grupo aguerrido, como o dos defensores do Cocó, que se predispusesse a protestar com veemência, fazer greve de fome e se acorrentar às delegacias para impedir a soltura de vagabundos que "cortam" vidas.

Eu também sou vítima do trânsito caótico dentro dessa cidade que mal respira; dessas ruas cujos cruzamentos são armadilhas fáceis para os predadores daqueles que precisam viver porque são responsáveis por suas famílias desprotegidas em suas casas, nas escolas, indo ou vindo de um dia de trabalho, e ainda são chamados de "vagabundos", como os policiais que prenderam aquelas senhoritas.

O eufemismo que chama menor de idade, apenas na certidão, de "infrator", longe dos olhos implacáveis dos defensores desses bandidos mirins não passa de cães selvagens. 

A menor, cujo apelido é "Putinha", deve ser mesmo filha da mãe de quem herdou o apelido. E nós, nós todos, vai ver que não passamos de uns miseráveis filhos da mãe abandonados ao próprio azar.


Desde já agradeço a todos que compartilharem a postagem. Obrigado!

Tantos capítulos vividos, A Capibaribe Neto


Ao longo de tanta vida vivida - com muita intensidade, diga-se de passagem - certo ou errado - procurei não desperdiçar essa experiência maravilhosa que é viver, um segundo que fosse. Quem entende o que significa vida, tem obrigação de saber que cada segundo conta e que cada segundo pode ser o mais importante ou o último. E assim, nos intervalos das emoções ou nas pausas para meditação ou inadiáveis reflexões entre o fim de um capítulo e o início de outro, procurei abrigo em páginas brancas ou nas telas luminosas eletrônicas para fazer confissões ou pedir ajuda.

A. Capibarine Neto: a hora do nunca mais


Mensagens, cartas, bilhetes, cartões, confissões sussurradas, ao pé do ouvido, de pé, no colo, na cama, são testemunhas, provas impossíveis de recusar ou refutar quando contam a história de um relacionamento. Não importa se acabou. Tudo acaba mesmo. Nada é eterno, nada dura para sempre.

Nem mesmo as fotografias, desde as primeiras com as primeiras confissões de loucuras que fazem a vida valer a pena. Um dia, por uma razão ou por outra, uma paixão ou um amor chega ao seu fim. Nada é eterno, repito.

Na casinha velha, agora vazia, por onde já não se escuta o arrastar das correntes dos velhos fantasmas de tantas festas, as paredes perderam a graça e as cores. Os pregos não sustentam mais as molduras que contaram histórias e foram testemunhas das molecagens abençoadas dos amantes.

A casinha velha, abandonada, sem ninguém, deixou que a saudade seguisse seu caminho e as feridas cicatrizaram.

Mesmo o que cata com cuidado uma agulha num palheiro enorme, feito de um passado longo que só durou porque ninguém vive tanto tempo apenas insistindo em consertar o mundo, curar desconfianças, mudar pessoas por nada. Sempre existe um motivo: a felicidade e se não foi a felicidade que custou caro, mas foi importante para quem conjugou um verbo especial na primeira pessoa do plural, foi burrice e burrice não pode ser desculpa para pessoas inteligentes.

Teimosia, no máximo! Mas ninguém é teimoso de graça. E quando se encontra a agulha e pensa que a busca chegou ao fim, sente uma picada no pé e se dá conta de que ela escondia uma mensagem oportuna para satisfazer a vontade de um arrependimento pelo tempo perdido, mas tempo perdido precisa ser par.

Nunca é simples e confortavelmente singular. Nunca ninguém faz cobranças carinhosas, insistentes, diárias e repetidas do tipo "está na hora do abracinho..." e abre os braços, e abraça e beija, e depois beija de novo, no dia seguinte, por muitos dias, por muito tempo, para depois alegar apenas lembranças tristes.

O envelope debaixo da agulha gritou restos de verdades felizes e mostrou imagens que, a bem da verdade, não servem mais para absolutamente nada, mas não deixam de ser a melhor evidência de que o oportunismo de um novo contexto é exatamente igual como em todas as outras histórias, todo tempo, em todo o mundo, porque é dessa forma que caminha a humanidade e a fila anda.

O marquês, por exemplo, foi atleta, foi forte, foi ousado, importante, querido e aí, sem culpa que lhe caiba, envelheceu demais, ficou egoísta, enjoado, chato, e esqueceu de segurar com as forças que lhe restasse, a mulher maravilhosa que lhe fez companhia.

O marquês é apenas um exemplo avulso, faz parte de uma história, do outro lado do mundo.

A diferença é que o marquês tem um castelo cheio de fantasmas solitários e um dia, faz bem pouco, o marquês empertigado fez a sua última pose, trancou-se no seu quarto de paredes grossas e, sozinho, chorou.

Todo mundo um dia chora por um amor perdido. E a hora do "abracinho" pode não existir mais porque o relógio quebrou, não tem conserto, ou simplesmente parou, mas as horas continuam catando seus segundos tempo afora.

A hora do "abracinho" existe, com outros abraços, com outro nome e haverá de valer a pena porque um dia a gente sabe que pode se cuidar sozinho sem aquele "abracinho" com hora e tal.

O próximo passo é do tempo


Deixei de lado a ansiedade de esperar até por um simples "oi", ao qual dei muita importância esperando por ele nem que fosse tudo no assunto e nas mensagens curtas que custavam muito a chegar. Isso já era um passo. Depois, consegui ficar quieto e prestar mais atenção ao silêncio à minha volta. 

Descobrir sabedoria na ausência dos sons é uma tarefa difícil, mas não impossível. Foi o segundo passo. É lentamente que uma rotina vai ficando ruim e tão devagar vamos nos acostumando ao ponto de ela se transformar em algo insuportável e de tão habituado que estamos nem nos damos conta. 

E aí, um dia, quando ela chega ao fim e de repente o chão some debaixo dos pés, estabelece-se o desespero do rompimento e o encontro com o vazio. No vácuo nem o som se propaga. A sensação do absolutamente nada é simplesmente aterradora. Descobrir que as boas lembranças couberam numa pequena e que a rotina era apenas uma roupa de mau gosto à qual nos acostumamos a vestir todos os dias, e por muitos anos havia chegado a hora de despi-la, foi a terceira lição. 

Mas de tanto repeti-la havia se transformado numa espécie de segunda pele. Era imperativo arrancá-la da minha pele verdadeira para renascer diferente. Foi o quarto passo, desde o primeiro, o do deixar de esperar pelo "oi" que deixou de fazer sentido. Mas faltava o resto e esse resto, que é o que encontramos logo depois, não dava mais medo. Descobrir que ainda tinha forças e coragem foi o quinto e eu já havia percorrido uma longa distância, dobrado muitas esquinas, escalado uma montanha gelada e não sentia mais frio.

A solidão, na verdade, nunca me pesou e até encontrei um lugar para deixar lá a tristeza, com todo o respeito por cada tempo bom que valeu à pena, bem antes da rotina. Em algum momento na vida é preciso desistir de uma rotina quando se descobre que o coração não está apenas batendo devagar, na verdade ele está é parado e não há mais jeito de ressuscitá-lo. Deixar de sentir vergonha por haver escondido o rosto no travesseiro tantas vezes para abafar um choro infantil, foi mais um passo.

Homens de verdade choram, sim, de dor de verdade e principalmente quando a dor é de amor. Ter sobrevivido, estar ali, naquele fim de mundo, aparentemente inteiro e aceitar que eu sozinho era tudo o que havia sobrado nós dois, deixou de ser impossível, até o fim daquilo que nos havia sido prometido ser para sempre e achamos ser impossível de substituir e voltar a acreditar em novas promessas. Outro passo foi aceitar que eu passara a ser um ontem qualquer e que já se havia passado tempo demais... 

Todo hoje passa muito depressa e o amanhã, quando se espera com ansiedade, custa muito a passar. Parece não chegar nunca. Se existe uma coisa chamada destino, ele já havia decidido, desde o começo, que nunca estaríamos juntos. A insistência foi uma forma irresponsável de desafiar o que estava escrito nas estrelas. Sonhos impossíveis só cabem mesmo dentro de sonhos e para viver a realidade nua e crua é preciso acordar e pôr os pés no chão. 

Acabar com a dieta de só comer o pão que o diabo havia amassado especialmente para mim foi mais um passo importante. E até parece, logo eu, que não acredito em Satanás ou no seu oposto, a bem da verdade! Tenho todo o direito de não acreditar em muita coisa sem precisar prestar contas a ninguém. Meus esforços deveriam, isso sim, terem se concentrado em me desfazer do que essas sensações ruins significavam. 

Mais nada! Como alguém pode sofrer pelo que não existe mais, por alguém que nunca mais vai voltar? A tradução de adeus é muito simples: significa apenas adeus, uma despedida definitiva! Depois de resistir à impaciência do coração e ter conseguido sobreviver, agora só faltava esquecer e disso o tempo iria sabiamente cuidar. Como sempre cuidou. 

by A. Capibaribe Neto

Crônica de A. Capibaribe Neto


Refúgio providencial

As reações de cada um de nós, diante de coisas que acontecem sem aviso prévio ou até mesmo aquelas cujo eclodir não deveria ser uma surpresa, mas sem hora para se evidenciar, acabam por entorpecer, confundir, desnortear e entristecer profundamente o que está do lado mais fraco de uma mesma emoção.

Afastar-me do furacão, evitar a calmaria aparente do olho desse cataclismo era a única alternativa possível e capaz de me tirar das águas revoltas. Recolher-me, enclausurar-me eram formas de fugir, de evitar encarar o vento contra, as vagas mais revoltas. Onde estava o homem intrépido? O atrevido? O ousado? As confusões que atacam em bando quando o bom senso fraqueja ou colapsa momentaneamente, podem destruir, irremediavelmente as bases, os alicerces de todos os castelos que se constroem ao longo de toda uma vida. Os dias no quarto da pousada Berg, em Kéflávik, a uma hora de Reykjavik, na Islândia, estavam curando as dores dos machucados emocionais.

A pousada mais parece uma casa de gente de refinado gosto e cuidada nos mínimos detalhes. Nesta época do ano, inverno, de hóspede mesmo só eu. Melhor ainda. Ontem mesmo sai pelas ruas desertas nas proximidades do porto pesqueiro, de onde saem os barcos para pescar o cod, peixe que comemos no Brasil com o nome de bacalhau, que nunca foi peixe, na realidade, mas um processo que o torna tão valioso, salgado, consumido e apreciado mundo afora por suas variadas receitas e preferências.

A pousada Berg fica numa colina e a poucos metros de um penhasco, de onde posso ver as montanhas cobertas de neve e sentir no rosto a força dos ventos frios que chegam do Polo Norte. Não sei explicar minha preferência por lugares frios, afastados, distantes, como o deserto do Sahara e o próprio Polo Norte, bem perto de onde cheguei quando me aventurei acima do Círculo Polar Ártico e vi a Aurora Boreal. Estar aqui, mesmo sem ter com quem comentar ou dividir essas emoções difrentes, está me fazendo bem ao corpo, à mente, ao coração e diminuindo o tamanho das feridas que estão sarando.

O vento cuida de tudo. O frio nos obriga a abraçarmos a nós mesmos, como um abraço apertado que damos na nossa própria alma para aquecer o espírito. Quando saí do Brasil, não tinha um destino determinado.

A vontade continua sendo nunca mais voltar. É fácil mandar fotografias e textos de qualquer parte do mundo, como faço agora. Não tenho feito outra coisa a não ser agarrar-me às palavras, às imagens que se descortinam à minha frente e sem mais tempo de olhar para trás. Confundo-me com o sol que mal nasce e logo se põe. As cores não são nítidas porque é quase sempre uma espécie de amanhecer e logo escurece. Sinto sono sem saber que horas são e me acordo sem ter noção se é dia ou noite, madrugada ou meio-dia. Tudo isso não me deixa pensar em nada, sem exceção. Caminhei até cansar carregando a minha pouca bagagem.

Deixei a mochila e a sacola sobre a neve e me arrisquei na borda do penhasco para fotografar gaivotas teimosas que o vento frio parecia soprá-las contra o céu cinzento. Como nos filmes de emoção, escorreguei na água congelada sobre uma pedra, mas agarrei-me a um arbusto e depois de tudo ainda fiz a foto da gaivota. A gaivota ficou lá, o penhasco ficou lá, o vento me seguiu até a pousada e ficou assobiando pela fresta da janela. E a pousada nem era uma casinha velha, nem uma casinha nova, era um refúgio providencial.

Kéflavík, Islândia - 2013.

A. Capibaribe Neto: Um caminho diferente de tudo

Escrevo esta crônica dentro de um Airbus 380 a 12.500 metros acima do chão, afastando-me cada vez de Fortaleza, das lembranças e dos motivos de empreender esta jornada em busca de um destino qualquer aonde quer que chegasse. Não faria diferença. Naquele momento, em pleno ar, eu era apenas um número de assento e um canhoto da bagagem pouca. Comecei a escrever depois de ler as mensagens dos românticos teimosos que se solidarizavam com as minhas queixas e feridas abertas pelos motivos das partidas, ou pelas razões e culpas que já não valem mais a pena comentar. Desisti de desistir quando mesmo sentindo que o coração estava morrendo devagar por dentro ainda havia o que fazer para completar o caminho, chegar ao fim da estrada fosse para fincar uma bandeira ou uma cruz. Quando é de amor que o coração padece ele começa a bater devagar e depois silencia. Antes de fazer as malas para ir embora, abracei-me ao travesseiro confidente e chorei. Não por querer voltar e bater à mesma porta, mas para ser ouvido, para dizer que senti medo de falar dos meus medos, mais nada. Mas nem para isso tive coragem e ainda havia uma torcida contra, a mesma que fiz rir e riu comigo e se divertiu com o meu bom humor moleque. E aí, sozinho, sem defesa, sofrendo ataque por todos os lado, pelas hienas de plantão, sucumbi, deixei-me escorregar para o chão do fundo do poço e me aquietei rendido. Li, certa vez, que existem momentos na vida de uma pessoa em que a dor é tamanha e tão insuportável que até o amor parece imprestável. E foi assim mesmo. Na realidade, não havia a quem atribuir uma culpa a não ser a mim mesmo. No momento em que achei que estava sendo vítima de uma mesma armadilha, descobri, entre assustado e revoltado que fui eu mesmo quem preparou todas as armadilhas que camuflei com um ego inflado e uma vaidade inaceitável para ver, logo depois que a idade me apontava seus dedos acusadores e implacáveis para as marcas do tempo estampadas no rosto. De repente, um aviso de apertar os cintos por conta de uma zona de turbulência. Quando um avião decola, por mais tecnologia embarcada que exista em sua configuração, quando ele está mais perto das estrelas ou desce e pousa, como pousou, suavemente, no aeroporto de destino. Ou não. A melhor frase para descrever Dubai, a primeira escala antes de Saigon é:...

"Dubai não existe..." Existem nomes que parecem mágicos para um viajor solitário, Akureiry, por exemplo, Saigon, Can Thò, Farida Sokolowsla, delta do Mekong, e Linh Hoang, nomes de lugares e de um anjo da guarda. Os desafios que busquei e os que encontrei foram muitos até ali, e até o momento havia vencido todos. Era uma guerra pessoal, feito um Dom Quixote a enfrentar moinhos imaginários, fazendo com suas mágoas e suas dores uma lança mortal a perfurar ventos distante e desconhecidos; a gritar contra os céus montado em um cavalo de aço alado, voando alto, muito alto, desfazendo sonhos impossíveis, enterrando mágoas e procurando um destino distante para ficar de vez ou fazer a curva e começar um caminho de volta. Diferente. De tudo.

Crônica dominical de A. Capibaribe Neto


Em busca da aurora boreal

Quando vi meu peito aberto e o coração exposto senti que precisava conter o pânico e que a cura seria de dentro para fora, mas estava tudo muito confuso e fora de lugar e precisava estancar o desespero apagando da lembrança quem me deixou do outro lado da porta que se fechou. Nada é pior do que faltar forças para deixar de pensar em quem ficou do lado de dentro enquanto o amor desfeito se esvaía nas ruas. Um dia, as pessoas que mais marcaram a nossa vida morrem nas nossas saudades, mas enquanto esse dia não chega a aflição é terrível. Os sentimentos que nos magoaram muito ao longo da vida, mas insistimos em persegui-los, nunca acabam bem e causam dores terríveis no peito. Essas dores levaram-me a procurar lugares distantes para tentar cuidar delas sozinho. E pelos caminhos que escolhi, felizmente, encontrei o anjo da guarda que me fez desistir de desistir. A paz que brilhava nos seus olhos e o seu sorriso aliviaram as minhas dores, cada uma delas. Não concordo quando se diz que só um novo amor para esquecer um amor que chegou ao fim sem o consenso dos dois corações envolvidos. Descobri que um sorriso, mesmo do outro lado do planeta podia falar a um coração machucado, com serenidade: "para teres chegado até aqui precisaste vencer teus desafios. Para teres sobrevivido a eles precisaste cuidar de cada uma das tuas agonias e agora estás aqui, bem na minha frente. Inteiro! Então, desistir de desistir de tudo valeu à pena!" Não precisei contar a minha história, desabafar como fiz, repetida e cansativamente, tantas vezes! Bastou-me o aconchego dentro do universo que existe num ombro discretamente perfumado onde pude deixar, sem mais lágrimas e emoções, que as lembranças sem mais sentido exalassem, seu derradeiro suspiro. E então pude retomar meu caminho, e todo caminho, mesmo em um lugar no fim do mundo tem sempre um aviso alertando para um "RETORNO PERMITIDO". E fiz esse retorno, e descobri o livre arbítrio para escolher entre continuar sofrendo ou parar de sofrer. Encontrar esses retornos pode ter sido o milagre da última chance porque ainda tinha forças para me levantar do chão do fundo do poço e ir em busca do resto do meu destino. Mesmo quem envelhece tem o direito a um destino, nem que seja pouco.

Crônica dominical de A. Capibaribe Neto


O primeiro dia seguinte

A frase de um comercial na TV me fez refletir sobre a importância do segundo que separa o ano velho de ano novo. Esta fração de tempo, aparentemente insignificante, separa cada momento especial do momento seguinte, seja ele qual for, a partir do Big Bang que separou o nada que existia no desconhecido do início de tudo. Num segundo, o primeiro choro, anunciando o início da experiência maravilhosa que é a vida e todas as s emoções, das mais ingênuas às mais emocionantes que só a coleção de muitos aniversários vividos pode proporcionar. Um dia, um segundo que separa as lembranças de toda uma vida do retorno ao nada definitivo e absoluto depois da morte. Um segundo pode separar o ser do não ser mais; uma alegria de uma tristeza e limita, com linha tênue, um amor profundo de um ódio mais profundo ainda. Tergiversar sobre o óbvio é fazer rodeios para explicar algo explícito de cores vivas; é deitar fora segundos preciosos na necessária aceitação do que já aconteceu e tornou-se imutável, onde nenhum milagre é capaz de refazer qualquer segundo na linha do tempo.

Faltava pouco para a última meia-noite do ano que passou. As três cadeiras vazias em volta da mesa do clube elegante e gente bonita representavam as ausências queridas. Todas elas. Vim um rosto conhecido ali, outro mais adiante, dividi dois ou três abraços e me afastei da azáfama festiva da colmeia, em sua maioria vestida de branco, preparando as taças e copos para saudar, com renovadas esperanças, o Ano-Novo em seus últimos minutos de trabalho de parto, e

Crônica dominical de A. Capibaribe Neto


O mundo acabou?

Hoje deveria ser um dia comum para todas as pessoas espalhadas pela superfície do planeta Terra, mas o mundo pode ter acabado. Esta crônica foi escrita no dia 19, dois dias antes do propalado fim do mundo. Não importa como ele tenha acabado, o que pode ter sido uma pena para quem mal começou a entender a complexidade de viver uma experiência maravilhosa que foi viver, independentemente das dificuldades, problemas, desafios, vitórias, derrotas, enfim, de todas as mazelas, incluindo aí as armadilhas nas quais muitos caem atraídos pela facilidade das ilusões, das fantasias ou das desculpas para escapar do inevitável. O mundo pode ter acabado, mas ainda pode estar girando como sempre girou desde o primeiro rodopio em volta do sol ameaçador e cada vez mais quente e considerado vilão nesses últimos dias. Existem muitas possibilidades de vocês estarem lendo estas mal traçadas linhas, como diria Sérgio Porto e estarem por aí comendo as goiabinhas da estação.

Do alto da minha janela já sem mais graça, vi um homem imóvel deitado sobre um banco de cimento às 3:40 da madrugada. Como ele estava descalço e não se movia, imaginei que os sapatos podiam ter-lhe sido roubados, como é comum na Beira-Mar, com polícia ou sem ela, mas como depois de quinze minutos a observá-lo na avenida deserta e sem se mexer, resolvi descer para saber se ele estava vivo ou precisando de ajuda. E fui até ele. Olhei de perto e notei que seu peito se mexia lentamente. Toquei de leve no braço dele e perguntei se ele estava bem. O homem abriu os olhos sem pressa e encarou-me com naturalidade. "O senhor está precisando de ajuda?" Ele sentou-se, procurou pelos sapatos e sem demonstrar revolta respondeu: "quem levou não irá muito longe... (e riu) e não, não estou precisando de ajuda, não, senhor. Obrigado pela atenção. Resolvi ficar e esperar pelo fim do mundo perto do mar. Se o mundo for acabar em fogo eu corro para dentro d´água.

E quem levou meus sapatos não conseguirá ir muito longe porque o mundo vai acabar para ele também..."Bati no ombro do desconhecido e fiz meu caminho de volta para a moldura da mesma janela que me foi cúmplice de reflexões, lamúrias, tristezas, medos e sobressaltos. Não levei mais que dois minutos do banco ao retângulo da janela e quando espiei lá pra baixo, a madrugada estava mais calma e vazia que nunca. O homem havia desaparecido. Ou foi no encalço do ladrão barato ou em busca de um lugar mais quieto, talvez numa das jangadas adormecidas na praia para esperar pelo fim do mundo. O dia de hoje, bem pode estar sendo um dia comum, quente, cheio de gente carregando presentes, cheio de esperanças pelas festas fartas do Natal. A gente nunca sabe.

Como estou escrevendo dois dias antes do provável fim do mundo, aproveito pera me desculpar pelos erros que cometi, pelas ofensas, pelas mágoas e decepções que causei aos que me queriam verdadeiro bem e dizer do meu arrependimento pelos erros mais graves e por ter caído nas armadilhas que podia ter evitado. 

Recibo de cobrança


Corações com feridas profundas ficam insensíveis ao perdão que se lhe peça e só param de sangrar quando deixam do lado de fora os que vão sentir na culpa o gosto amargo de um arrependimento tardio, carregar nos ombros o peso de uma despedida, e escutar os lamentos de uma saudade chorando no peito enquanto se faz o penoso caminho em busca de um refúgio.

A cada passo lento, uma reflexão sobre a importância que demos à insegurança de nos doarmos, aos medos das sombras do passado sem jeito, medo de viver, e às desconfianças e inseguranças da felicidade do dia seguinte. Pois de repente, quando menos esperamos, elas deixam de fazer sentido e nunca estamos preparados para essa descoberta. São grandes os riscos de pressupor reciprocidade num bem-querer, na paixão, no amor ou na confiança que se tenha nas pessoas, porque não se podem medir emoções, pesar sentimentos ou comparar verdades guardadas debaixo de sete chaves. As palavras ou frases que usamos para dizer aos outros, numa conversa despretensiosa ou nos sussurros ardentes sobre lençóis podem ser diferentes se perguntássemos a nós mesmos, diante de um espelho se fomos verdadeiros, se era aquilo mesmo que queríamos dizer. Quando o que dizemos às pessoas é uma ofensa, geralmente nos arrependemos e precisamos escolher entre pedir desculpas, perdão ou deixar que o orgulho ou a arrogância decidam o que fazer.

Quando contamos uma mentira, fica o receio da vergonha da descoberta, o constrangimento do descrédito ou da frieza da indiferença. Quando fazemos uma promessa no calor de um abraço ou de um beijo ardente, pode-se até alegar depois a embriaguez do instante passageiro, mas é preciso ter cuidado com o que se escreve, data e, principalmente, com o que assina, mesmo de forma carinhosa num beijo no papel.

Não porque um "eu te amo e vou te amar para sempre" tenha um valor legal que possa ser cobrado. Cobranças assim só podem ser feitas, com alguma dignidade, dentro de um envelope com um endereço certo, mas sem necessidade do remetente implícito. No máximo, uma frase magoada escrita numa folha em branco: "tudo mentira"! E aí, fica o consolo frágil de esperar pelo tempo de todas as curas e que um dia, quando o coração haverá de sarar, mesmo ficando com a cicatriz difícil de fazer esquecer a razão de estar ali. Quando se ama ou se amou alguém de verdade, é impossível desligar esse sentimento como quem desliga uma luz e tentar descobrir na escuridão um lugar para se esconder. Toda acusação magoada não deixa alternativa de resposta além daquela que confirme as razões dos dedos apontados. Para as lágrimas dos ofendidos ou feridos não existem justificativas ou explicações. Lágrimas assim são vingativas e a vingança é uma semente que se planta e cultiva, cuidadosamente, dentro do perdão que se concede para a colheita sem remorso mais adiante. A vingança não é um prato frio; pelo contrário, é bem preparado com os ingredientes do oportunismo que alia a alma lavada pelas lágrimas choradas em alegado silêncio e que vem no recibo da cobrança, essa sim, geralmente muito fria. ­

Como tudo na vida anda em círculo e cada ciclo é um circo, mudam os espetáculos, mudam os palhaços, as bailarinas, os trapezistas, as feras e os domadores, o mundo se encarrega de corrigir as distorções no tempo e no espaço.

Depois do espetáculo surpreendente de cada dia, o silêncio das ausências, mas certos silêncios podem ser a manifestação explícita de uma resposta, uma confissão ou a melhor alternativa para deixar uma dúvida.

Crônica de A. Capibaribe Neto


Os últimos fantasmas

Estava ali, fazendo as malas dos fantasmas aos quais me apegara com unhas e dentes para que não fossem embora. Ou que fossem, como no filme Gosht, logo que conseguissem pelo menos fazer o que não haviam feito por mais de dez anos enquanto matéria, enquanto corpo, enquanto voz. Ruim é descobrir que por detrás de muitas culpas assumidas havia razões para os erros cometidos e exageradamente confessados. Finalmente, os fantasmas estavam prontos para seguir em direção à luz da porta de saída definitiva e ganhar seus merecidos descansos e paz eterna. Estava tudo pronto. Havia calma e serenidade na penumbra do quarto. Fotografias e bilhetes estavam rasgados, passados na máquina de picotar e já devidamente embalados e colocados nas mochilas dos fantasmas. Eram três: arrependimento, saudades e lembranças. 

Quem dirigia a carruagem que os conduziria a luz era uma mulher nua, chamada Verdade, mas que atendia também pelo nome de Realidade. 

Arrependimentos precisam de uma culpa; saudade de um nome que valha a pena e lembranças são as que deveríamos carregar pelo resto da vida. 

A Verdade precisa checar as mochilas. 

Ninguém viaja até à luz assim, de qualquer jeito. "Abram as mochilas!"E como ninguém discute com a autoridade da Verdade, assim foi feito. Nenhum item deixou de ser verificado. E os fantasmas ali, sem dizer nada. Alguns arrependimentos podiam embarcar. Eram verdadeiros, havia uma razão de ser neles porque faziam parte de tudo aquilo que uma pessoa faz numa fração de segundo e se arrepende pelo resto da vida, como atender a um pedido ridículo, feito pelo amor de Deus para um imbecil cair em tentação. Depois, quando chega o recibo das consequências, a dívida que nunca deveria ter sido contraída é apresentada numa conta quase impossível de pagar. Outros arrependimentos, já empacotados e prontos para seguir em direção à luz, não. "Arrependimento do quê? Neste item aqui?"- perguntou em tom debochativo a Verdade. "Deixa de ser bobo, seu tolo. No circo da vida muitas vezes é preciso que um olho seja a paga do olho arrancado e o dente quebrado que arranque o dente de quem o quebrou e preencha o lugar vazio na outra boca. Você estão pelo conjunto da obra..."- complementou a Verdade. 

Toda culpa tem seu tamanho. Não se pode aumentar o tamanho dela para mostrar um arrependimento maior. Também ele precisa ter seu tamanho exato e sem exagero na humildade com que seja vestido. 

Quanto às saudades, a Verdade disse que só se sente saudade de uma coisa que mereça ser guardada dentro do peito e do lado esquerdo. Saudades precisam de nome, sobrenome, origem, data de nascimento, filiação. Não se pode sentir saudade de um sentimento misturado, um sentimento que nasceu confuso, uma história que se manteve torta nem um desfecho cheio de dúvidas. Se uma saudade não está clara, não pode embarcar. E várias saudades desceram. Ficou uma, com a roupa da Lamentação pelo tempo perdido. "Ei, desça você também. Ninguém pode seguir para a luz com a maquiagem do interesse e as bijuterias da conveniência..."- falou com ar pesado a Verdade. E aí, foi a vez de checar as lembranças... 

A Verdade ali, sem deixar passar nada. "Hummm, essas são lembranças boas... Bem antigas, mas boas. Lembranças do começo quando se chamavam Paixão. Boas, boas. Pra sacola, podem se acomodar. Lembranças dos primeiros beijos, das primeiras entregas... Irresponsáveis, mas sinceras. Podem se acomodar também. É, as lembranças pode ir. As boas são em maior número que as ruins e a gente pode dar um jeito. Com os arrependimentos não condesso  Com as saudades muito menos. Não quero ouvir choro de lamentação pelo que não merece ser eternizado"- concluiu a Verdade e assumiu a boleia da carruagem negra. Dois cavalos de pelos reluzentes, saindo fogo pelas ventas se agitaram ao primeiro estalar do chicote de fios de ouro. Um tinha os pelos quase negros de tão castanho que eram, como seus olhos. O outro, pelos dourados e olhos verdes. Uma verdadeira multidão cercava o embarque dos fantasmas, e dentre os presentes, uma figura que nunca perdoa: 

A Vingança! Procurando esconder-se dentro do capuz onde esperou tantos anos, ria seu risinho de satisfação comendo seu bocado frio. Os fantasmas foram embora arrastando suas correntes, a multidão se dispersou, a Vingança aliviada se aquietou. Agora estava tudo quites. Aqui se fez aqui se pagou. As derradeiras luzes do lusco-fusco engoliram a carruagem e nunca mais se escutou dentro do castelo o choro do homem que criou fantasmas de coisas que nunca deveriam ter existido e os alimentou de ilusões até a chegada da Verdade, quando tiveram de ir embora. Para sempre. Agora, sim, para sempre, deixando um lugar modesto para uma paz necessária ao que muitas vezes precisou apenas de um abraço para sobreviver do outro lado de uma despedida. 

Porque a vida é assim


Um monte de porquês
A. CAPIBARIBE NETO - capi@globo.com

Sem querer ser repetitivo, mas sendo, já disse algumas vezes que tudo na vida se resume em dois "porquês": um, escrito separado, precisa de um sinal de interrogação, por que é o que pergunta; e o escrito junto, é o que responde. Pode até ser que as perguntas sejam indiscretas, indevidas, imbecilizadas, fora de hora, constrangedoras, inocentes, maliciosas, mas quem pergunta quer saber, tem uma razão que pode transcender a uma simples curiosidade e mergulhe nas águas perigosas das segundas intenções. Quem responde pode inventar uma resposta, fugir pela tangente, começar com o "veja bem" tão em moda, responder com uma mentira, uma insinuação ou com outra pergunta. Todo mundo quer saber quem ganhou, quem perdeu, com que gastou, por que comprou, por que vendeu, se foi golpe do baú, se é Maria chuteira, se entrou, se saiu, se deixou lá, rendendo juros, se é corno, se já foi, se foi demitido, se pediu demissão, por que foi demitido, se foi contratado, se roubou, se faz parte do mensalão, enfim, um mundo de coisas, incluindo-se aí até as milhares de milhares de perguntas, sobre o Bóson de Higgs, a Teoria da Relatividade do Einstein, o espaço, as estrelas, a origem de tudo, se Deus existe, se o pastor obra realmente milagres ou se é um embusteiro e o que faz com o dinheiro inocente dos carentes de um rumo. Tudo pode ser perguntado, mas bem menos pode ou deve ser respondido.

"O que está acontecendo com você, Adamastor?" - pergunta indiscreta quando o Adamastor no caso não conseguiu comparecer e deixou a mulher vencida na mão, literalmente. "Isso nunca aconteceu comigo antes" é apenas uma frase solta, evasiva, uma viela das respostas, uma fuga. 

"Cadê o dinheiro que estava aqui?" "Não tenho a menor ideia" - respondido assim, com a maior cara de pau do mundo. 

"Senhor Cachoeira, o senhor roubou tudo o quanto dizem que o senhor passou a mão?" "Veja bem, doutor..." e a resposta está implícita mas não é explicita ou, mais grave, "reservo-me o direito constitucional de permanecer calado", embora tenha sido tão falante ao telefone enquanto engendrava suas ideias para lesar os outros ou o cofre farto, padrinho e madrinha dessa grande nação. Indo por essa linha, comecei a fazer-me mil perguntas...

No princípio, pensei que podia mentir. Não deu. Senti vergonha de olhar-me no espelho porque encontrei um brilho incriminatório próprio do óleo de Peroba. Era muita cara-de-pau querer mentir para mim mesmo. Quando me dei as respostas certas assumi meus próprios dedos acusadores e me fiz promessas de nunca mais repetir, embora nesse contexto específico esteja uma mentira distante. "A ocasião é que faz o ladrão", mas isso não significa tacitamente que se trate de um roubo, mas de uma oportunidade de pecar igual, do mesmo jeito que ficou pendurado num arrependimento descoberto numa confissão íntima. No fundo, no fundo mesmo, cada bandido do colarinho branco sabe por que está sendo tão desnudado diante do País inteiro, os Nardonis sabem por que estão presos; só não sabe de nada é quem já morreu, mas morrer tem uma causa, nem que seja de velhice. Morreu porque foi flagrado pelo marido cuja mulher ele estava terceirizando, porque a parada não deu certo, porque estava acima do limite de velocidade, porque bebeu e foi dirigir pensando que era imortal, essas coisas. 

A vida é um festival de perguntas e um concerto de respostas às vezes enfadonhas e pouco convincentes. "Por que estou escrevendo sobre perguntas e respostas?" Sei lá, deu vontade. Por que você está perguntando?" Veja bem, você conhece a Silviamara? - Quem? Eu sabia, mas me fiz de surpreso, principalmente porque... É a vida. 

Por que a vida é assim?

Perdoar não significa esquecer

[...] Perdoar é apenas um gesto oportuno que beira o simbólico para demonstrar superioridade e alguma compreensão. Perdoar fica para passagens bíblicas, para a frase de efeito de "perdoai, Pai, pois eles não sabem o que fazem". Conversa! Quem faz maldade, perversidade, sacanagem, comete violência gratuita sabe muito bem o que faz e faz de ruim, pela índole, pelo caráter, pela falta de escrúpulos. Há muito tempo, fui atingido pelas consequências de uma frustração alheia e senti a dor da picada traiçoeira que doeu fundo por muito tempo.

A dor já passou e o tempo ajudou a fazer adormecer a vontade de vingança, de retaliação, tudo dentro de um contexto de ódio puro, de ira santa. Deixei a infeliz pra lá. O destino se encarregaria de apresentar alguma cobrança por mim. E apresentou, e bateu nela, mas não aquietou a minha cicatriz, o "esquecer" passou longe. Pior que ela existem muitos, os que se aproveitam de um momento de fragilidade alheia e se armam de oportunismo barato para tirar uma vantagem pobre e se esquecem que o mundo gira, que a Terra é redonda e não adianta apressar o dia porque ele só nasce na hora certa e o sol se põe apenas quando a tarde acaba.

Meu limite vai até "desculpar" quando aceito os argumentos de uma ignorância pura ou a infelicidade de uma casualidade que machucou. A covardia embasada na velhacaria de uma atitude ou um gesto proposital, com intuito de prejudicar e ferir gratuitamente não encontra compreensão no meu coração.

Falso é aquele que diz que nunca teve vontade de esganar um assassino perverso (como se existisse um assassino sem ser perverso), de sangue frio, que atira covardemente, mesmo que a vítima não reaja, que demonstre medo ou subserviência diante das suas ameaças. Agora mesmo (quinta-feira), leio no jornal que um animal que atende pelo nome de Francisco Antonio da Silva Souza, agrediu e abusou sexualmente de uma senhora de noventa anos.

Não tenho conhecimento do tipo de assistência que alguma autoridade tenha prestado a essa senhora quase centenária, mas os direitos desse dejeto humano estão assegurados. Devo ter alguma herança genética distante que me liga a Talião, aquele do "olho por olho, dente por dente".

Por mais devoto que sejam os familiares dessa senhora, por mais alienados que possam ser por conta das lavagens cerebrais que lhe fazem alguns pastores oportunistas, não acredito que tenham, nem que seja por um breve momento, vontade de esganar esse "coisa". Para essa senhora eu não sei, mas para esse bandido não faltara um advogado com fome de aparecer ou buscar alguma atenuante por conta de um possível momento de embriagues ou coisa que o valha. Já fiz coisas das quais me arrependo... bem poucas, a bem da verdade, mas nunca pedi ou esperei que me perdoassem. Preferi confessar, com humildade, que me sentia profundamente arrependido. Nunca me ajoelhei diante de homem nenhum para pedir perdão e procurei conforto numa penitência regada a dezenas de "ave-Maria".

Não! Fiz, ficou feito, é preciso arcar com as consequências e não posso fugir do preço que se me cobrem. "Errar é humano, mas perdoar é sublime..." - fico apenas com a primeira frase. Errar faz parte da vida porque ninguém detém o conhecimento da Pedra Filosofal, mas aceitar essa coisa de perdoar assassinos frios, bandidos sedentos de violência, deixei procuração para os que se acham bons demais. Esta foi uma semana confusa, cheia de notícias ruins e de ameaças veladas de policiais oportunos que farejam brechas para ameaçar justo a população que deveria encontrar nelas um mínimo de segurança. Foi o que se ouviu nas gravações dos bandidos fardados da PM baiana. Como se não bastasse tudo isso, morre Wando, cercado de milhares de calcinhas perfumadas de seu público cativo, mesmo chamado de brega.

Wando viveu bem, aproveitou bem a vida, principalmente porque já sabia que as suas fãs mais ardorosas, ao lhe entregar a peça tão íntima já lhe dava o recado explícito de que estava pronta para o que desse e viesse. "Que foi isso, romântico? E as estrelas? Apagaram como o Wando?" Não, não é que no meio de toda essa confusão eu vi de longe o rosto feio de uma bruxa ruim. Moça, me espere amanhã..."


por A. Capibaribe Neto
[...] ou como dizia Tiváva: Cada doido uma mania.

Por alguma razão o ser humano, depois que nasce, dependendo do contexto em que vive, em que foi criado, adquire, muitas vezes sem se dar conta, medos e fobias. Muitos desses medos não passam de frescura, de falta do que fazer, mas alguns até se justificam em razão de passagens da vida, coisas específicas, como traumas, por exemplo. Agorafobia, por exemplo, não é medo do agora, mas medo de estar em lugares abertos, de multidão, já a ablutofobia é medo de tomar banho. Agirofobia é medo de cruzamento de ruas, vê se pode? Afefobia é medo de afeto. Dá para imaginar que existe até o medo de gelo. Uma pessoa assim não pode encarar uma cerveja estupidamente gelada, imagino. Pode parecer engraçado, mas só por curiosidade, fui pesquisar sobre medos e fobias e elas existem aos montes, de A a Z e são centenas. Tirante o lado engraçado, os medos nos acompanham a partir do momento em que tomamos conhecimento dos limites, dos perigos, do tamanho dos desafios e, principalmente do desconhecido. Medo de altura, de lugares escuros, de elevador, de andar de avião, do mar, é medo que não acaba, mas existem os medos que não se justificam, como o medo de amar, principalmente se não tiver a certeza da correspondência. A vida é única, é passageira, e pode-se dizer que chega a ser muito breve. Vi a reportagem sobre o homem que falava no MSN com a esposa e de repente a comunicação foi cortada e ele talvez tenha creditado o fato às nossas operadoras de telefonia voltada para a internet. Desta vez não foi. Antes tivesse sido. A vida da esposa desse homem acabou justo na fração de segundo em que o edifício onde ela estava desmoronou sobre ela e mais de uma dezena de pessoas que tiveram suas vidas interrompidas. Quantas pessoas agora não começaram a desenvolver medo de entrar em prédios velhos ou ficar trabalhando em edifícios altos até tarde? A verdade é que os medos estão à nossa volta, esperando para nos atingir como uma picada de cobra e o veneno se espalha dentro da gente, muitas vezes para o resto da vida. Para a maioria dessas fobias existe cura. Para o medo do toque, talvez a cura seja um abraço carinhoso, de preferência perfumado; para o medo de amar, a cura pode estar na ousadia para enfrentar o desafio, para não ligar para nada nem pra ninguém e aceitar os riscos de descobrir o que vai acontecer depois do primeiro passo. A vida não pode ser adiada e não se deve deixar para amanhã qualquer chance se ser feliz, nem que por um momento. O mundo precisa de alguns medos, é verdade, mas por enquanto sobra coragem para muito cabra safado, sem nenhuma vergonha na cara, como o JOSÉ MARIA MARIN, vice-presidente da CBF e ex-vice- prefeito de São Paulo. Sem medo de nada, nem do flagrante explícito, nem de vizinhos, nem de ser preso, nem do público, nem da ira dos atletas que se fizeram merecedores da comenda surrupiada em público. José Maria Marin não tem medo de ser ladrão. No contexto em que está inserido, pode ser considerado um homem de coragem. Medo de morrer tem lá a sua explicação, medo de perder o emprego também, de ser enganado pela mulher ou vice-e-versa, tudo bem, mas medo de ser feliz? De ousar, de se atrever? De sair na chuva? De um abraço apertado, um beijo demorado? Faça-me o favor!
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As lições nossas de cada dia

A vida de quem já viveu muito carrega lições e cobra aprendizado compulsório. Por mais turrão, desligado ou irresponsável que alguém seja, as lições estão sempre ali, feito sentinelas, com a farda da experiência e a experiência tem uma cara antipática e ao mesmo tempo cheia de presunção. Com o tempo, a gente se acostuma às dores, às saudades e às lembranças sem jeito. O que passou, passou, ficou sem jeito porque o tempo nunca dá uma segunda chance. As lições que aprendemos ou nos são impostas fazem parte do cotidiano. Pois bem... aprendi a conviver com algumas lembranças transformadas em saudades que preencheram vazios incômodos. Quando quis me arrepender, era tarde demais, não havia como consertar porque o estrago já estava feito, e aí, o caminho de volta me deixou numa encruzilhada: para a direita, o bom senso dizendo que o melhor a fazer era virar a página, deixar pra lá, esquecer ou fazer de conta que não doía mais; para a esquerda, a teimosia, a insistência em acreditar que pedir perdão consertaria tudo. Conserta nada. As coisas do coração são estranhas, complicadas e as suas leis muito severas, por mais amor que exista. Quando o jarro quebra, não tem jeito. Guardo comigo um jarro quebrado. Era de estimação. Ele não representa a história de um amor, não está ligado a nenhum nome, a nenhuma situação. Se não me falha a memória, foi Francisca, uma mocinha de humilde cor morena e olhos amendoados que o quebrou numa das suas desastradas faxinas, mas tenho-o guardado porque é uma fina porcelana japonesa. Quem me, visita e é atento aos detalhes, acha-o bonito e nem nota que está quebrado. Apenas digo que o comprei numa loja de produtos japoneses que visitei nos Estados Unidos, mas eu sei que está quebrado, pronto. Deixo-o fora do alcance do mais curioso porque não quero ver o tamanho da ferida. O jarro está lá. É um jarro quebrado. Não tem jeito, contudo não me atrevo a jogá-lo fora. Por mais que um amor tenha acabado, que uma paixão tenha chegado ao fim, por mais força que a gente faça, nunca é possível esquecer que houve uma história, que existiram abraços e todas aquelas promessas de para sempre. Quanto mais a gente vive, quanto mais aprendemos lições, mesmo aquelas penduradas nos ditados populares desbotados, mais vemos que a vida é assim mesmo, feita de coisas simples, como uma saudade presa a um nome, a um perfume distante ou a um vaso quebrado. Maria, por exemplo... Maria foi minha inspiração por muito tempo e quando nos despedimos, ela foi logo cuidar da vida, procurar outros caminhos, enveredou por outros atalhos. Tempos depois, descobri que por pior que eu tivesse sido, ainda assim eu fui seu melhor chegar, estar, ficar, ser e muitos outros verbos que conjugamos com a cumplicidade dos amantes. Não, não é presunção, Maria nunca conseguiu ser feliz outra vez, nunca mais foi a Maria de sorriso farto e largo, nunca mais riu das sadias molecagens que eu fazia só para ver o desenho de sua boca como moldura perfeita e perfumada para seus dentes alvos e bem cuidados. Maria nunca mais sorriu. Riu aqui e ali, mas nunca mais gargalhou como fazia quando estava comigo. A vida me ensinou que aquilo que já aconteceu não pode mais deixar de ter sido e que não podemos adiar a própria vida e muito menos a felicidade. E foi o que fiz. Maria, não; insistiu no aprendizado modesto de sua escola de cidade distante e assim ficou até sumir de dentro dos meus beijos, dos meus carinhos e de outros braços, dentro dos quais se atreveu na busca inútil do seu recomeçar cheio de exigências. Cada dia na vida de uma pessoa é uma existência em miniatura. Cada dia nos ensina uma lição, e quer queiramos ou não, essas lições estão bem diante dos nossos olhos e quando cometemos um erro mais pesado, alguma coisa dentro de nós parece dizer "eu não disse?" A vida me ensinou que nunca mais eu deveria procurar Maria outra vez para reviver uma história que teve um começo, um meio e teve seu fim, como tudo na vida, mas nada me impede de, vez por outra, olhar para o nada ou me fixar num ponto imaginário qualquer e suspirar sozinho o nome dela: Maria! 
A. Capibaribe Neto

Como num conto de fadas

No céu, a lua pela metade era apenas uma referência maior. Deixei a Internet na tela do computador e fui descansar os olhos mergulhando no céu estrelado. Numa fração de segundo, estava viajando, percorrendo distâncias indizíveis, subindo o mais alto possível para, lá do alto, procurar o brilho do teu rosto que não conheço. Me bastaria escutar o som da tua voz e poderia segui-lo, como quem segue um rastro conhecido porque já sabe de quem são as pegadas. E voltaria correndo, sem precisar adivinhar formas e contornos nos campos vastos e férteis da imaginação, onde o poeta cria, fantasia, devaneia, sonha...

Dos teus olhos já me disseste, são dois retalhos de mar sereno em manhã de sol. Não sei como é a tua boca, mas tenho desenhado aqui dentro, onde as fantasias se acumulam e se agigantam, o teu sorriso, a tua gargalhada solta, vencendo distâncias, chegando bem perto. Quase te posso sentir o perfume e sem me dar conta, experimento uma saudade especial dentro dessa ausência, como se estivéramos juntos uma vida inteira. 

Chegaste de mansinho, como as primeiras luzes de um dia radiante que vai tomando o lugar da timidez da madrugada e beijaste meu rosto com um raio de sol apenas morno. A solidão magoada no meu retiro voluntário foi a de um pássaro que ganhou uma liberdade que não sabia o que fazer com ela. Voltei à gaiola, onde um dia cantei duetos com amor que supus eterno e encontrei a gaiola vazia. Fiquei sem saber o que fazer com o céu, com os horizontes.

Acordaste o menestrel e me fizeste cantar outra vez. Provo, agora, de emoções que supunha mortas. Estão mais vivas que nunca porque milagres acontecem. Quando a gente menos espera. Minhas esperanças, que do verde passaram ao amarelo sem graça das derrotas, assumem as primeiras cores avermelhadas de um camaleão das paixões, de um amor que chegou, entrou acanhado, abriu os braços e fez confidências no aconchego da cumplicidade.

Até parece um conto de fadas... "Num conto de fadas/ um carpinteiro/ sozinho sem nada/ também sem dinheiro/ amava a princesa/ mais linda da terra/ e tinha certeza/ que nada era pra ela/ mas um dia..." lembrei da música, versão brasileira arranjada para o "If I Were a Carpenter". A diferença é que foi teu beijo de voz que me acordou, tirou-me da letargia do comodismo de uma espera doente, sem jeito, condenada por mil absurdos e incoerências.

Estou vivo! Pulso! Meu coração bate mais forte, meu peito parece que vai explodir. Fada! Fada madrinha do meu milagre, desse despertar gostoso, dessa espera por uma linha, por duas, mil, cheias de palavras acanhadas, sem jeito, num contexto de medos diante dos direitos que todo mundo tem de ser feliz. Nós estamos. E é bom conjugar o verbo na primeira pessoa do plural, sem ligar para as regras, para as convenções, para as fronteiras que a sociedade determina, como se fosse possível aprisionar o pensamento, encarcerar vontades, limitar fantasias e conter impulsos. Sou teu milagre, és o meu sonho maior de voltar a ser feliz. 

Não me importo se amanhã, quando raiar um novo dia, eu desperte para a realidade desse conto e tudo acabe na última página de um livro que a gente gostaria que nunca terminasse. Não importa. Vivi um sonho, fui parte de uma história. Mesmo que nunca te segure nos braços, que nunca te carregue no colo, eu te abracei, deitei do teu lado, fiz amor contigo e vivi uma felicidade que só vive quem consegue entrar num conto de fadas. Fada!
A. Capibaribe Neto,

por A. Capibaribe Neto

Tristezas, lamentos e lamúrias

Existem aqueles que só conseguem chamar a atenção alheia como arautos de notícias ruins ou debruçados em lamentações as mais diversas. A vida não é feita só de alegrias, de festas, de carnaval, de folia, de boas taças de vinho. A tristeza é o contraponto. 

O dia seguinte pode deixar um sorriso bobo no rosto do que participou ou a cara fechada ou arrependida pelo que fez consciente ou, principalmente, inconsciente. A vida também é feita de cansaços e ressacas, de dores de cabeça e promessas de "nunca mais" que só duram até uma nova oportunidade. Aquele que está feliz dentro de uma relação, dificilmente dispõe de tempo para dividir com os circunstantes as razões de tanta completude.

É um egoísta justificado. No máximo, quando é ingênuo ou gabola, se lambuza com as facilidades da permissão alheia, fazendo comentários sobre o que fez, com quem fez ou deixou de fazer porque não quis, por aí. Para as confissões sobre as tristezas que se instalam, para as lamentações, as dores, principalmente as que doem na alma, via coração despedaçado, ou as lamúrias, que a nada levam como a sua própria definição, existe sempre um ouvinte paciente ou um confessor de plantão para escutar ou oferecer um ombro amigo para o conforto do desconfortável confidente. 

A vida é feita de desafios, a começar pelo desafio de viver, que, nos dias atuais, é quase uma façanha de sobreviver diante de tantas ameaças urbanas, mundanas, corriqueiras em cada esquina, em todo lugar. A vida é feita de conquistas, das menores, das mais supostamente insignificantes àquelas que exigem maior esforço, maior dedicação, objetividade e perseverança. A vida também é feita de calma, de calmaria, aquela que sempre chega depois das procelas, a chamada bonança. A vida é um perde-e-ganha, como um dia é da caça e o outro pode ser do caçador. 

Nessa vida, muitas vezes somos um alvo fácil para a alça da mira de um atirador anônimo, capaz de acabar, numa fração de tempo, com o sonho de uma vida inteira... Mas, quantas vezes não estivemos apontando as nossas armas implacáveis para o inimigo que consideramos mortal, muito embora o nosso disparo seja apenas para satisfazer um momento de ódio sem perdão. 

A vida é um misto de muita coisa, de pouca coisa, de quase nada. De discursos longos, prolixos, infindáveis; de explicações amarelas, desnecessárias, de justificativas que dependem do juiz que existe dentro de cada um de nós: o mais severo, o que não aceita mentiras, por mais disfarçados que sejamos, descarados, caras de pau, cínicos, artistas. 

A vida é cheia de silêncios oportunos que podem significar muito mais que um milhão de palavras, porque esconde, com fidelidade, o que realmente sentimos, o que vai na nossa alma, no nosso coração. "El silencio puede ser una resposta..." - foi assim que começou uma história de amor da qual fiz parte e depois deixei de ser na moldura de um silêncio cínico. 

Na vida, somos quase sempre juízes a nosso favor e dificilmente apontamos nosso dedo, mesmo para as culpas mais bobas, mais banais. Temos sempre razão, mesmo quando passamos muito longe do que isso possa significar. 

Ao longo da vida, somos capazes, competentes, fracassados, arvorados, seja lá do que for; somos arrogantes, prepotentes, valentões contra os que reconhecemos como mais fracos ou covardes diante da certeza da nossa fraqueza ou vulnerabilidade.

A vida é assim, cheia dessas divagações, quando não brincamos carnaval, quando preferimos ficar dentro de casa, cercado por silêncios conhecidos ou pela algazarra moleque de vizinhos indesejáveis. O título da crônica... bem, o título, vejam bem, é apenas um título, não uma apologia a essas mazelas que chamam atenção, nem que seja por um breve momento no alto de uma página. 
A vida é assim mesmo!