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Delações premiadas são o motor da lava jato

"As colaborações premiadas são o motor que move a Lava Jato. Permitem a agilização da investigação e exponencializam a investigação"  , Dalton Dallagnol - procurador da Operação lava jato.

E a "tortura togada" - prender um acusado por tempo indeterminado -, para ele fazer o "Motor" da Operação funcionar, que ele tem dizer sobre isso?

Tortura no Brasil e os 50 anos da ditadura militar: como não esquecer

Acho surpreendente as estratégias das pessoas que estão enfrentando uma situação limite encontram para (sobre)viver.
No livro É isto um homem?, Primo Levi conta a sua experiência no holocausto e como sobrevivente de Auschwitz: ele diz que foram as pancadas, o frio, a sede, as privações que o impediram de cair no vazio de um desespero sem fim. E não a vontade de viver.
Cedo ou tarde, na vida, cada um de nós se dá conta de que a felicidade completa é irrealizável; poucos, porém, atentam para a reflexão oposta: que também é irrealizável a infelicidade completa.
Os motivos que se opõem à realização de ambos os estados-limite são da mesma natureza; eles vêm de nossa condição humana, que é contra qualquer “infinito”. Assim, opõe-se a esta realização o insuficiente conhecimento do futuro, chamado de esperança no primeiro caso e de dúvida quanto ao amanhã, no segundo.
Assim, opõe-se a ela a certeza da morte, que fixa um limite a cada alegria, mas também a cada tristeza. Assim, opõem-se as inevitáveis lides materiais que, da mesma forma como desgastam com o tempo toda a felicidade, desviam a cada instante a nossa atenção da desgraça que pesa sobre nós tornando a sua percepção fragmentária, e, portanto, suportável (1988, p.15).
Às vezes a escolha que separa a vida da morte vem de onde menos se espera. E mesmo quando se decide morrer, a vida prevalece. Hoje, 31 de março de 2014, o Brasil lembra um triste marco na sua história: os 50 anos do golpe civil-militar. Período que teve a tortura como prática cotidiana pelas forças policiais.
Método usado para arrancar informações, a tortura tem apenas um objetivo: separar o corpo da mente, transformando a pessoa não mais um ser livre, mas em objeto. Ao sentir dor, pânico, desequilíbrio psíquico, o corpo torna-se um inimigo. Para evitar mais violência, a boca fala o que se exige. Ou decide se calar para sempre. Diante do horror, cada pessoa encontra uma estratégia.

Inês: viver para contar

inês
Inês Etienne Romeu era bancária e militante do grupo VAR-Palmares (mesmo em que Dilma Roussef atuou). Ela tinha 29 anos quando foi presa em São Paulo, em maio de 1971. Logo foi transferida ao Rio de Janeiro, para a “Casa de Petrópolis”, ou “Casa da Morte”, como ficou conhecida, um dos principais centros de tortura do país.
Ficou 96 dias neste local e foi a única prisioneira a sair viva de lá, isso porque fingiu que mudara de lado e que trabalharia como infiltrada para o Centro de Informações do Exército. Inês foi agredida, violentada e humilhada diariamente:
“A qualquer hora, do dia ou da noite, sofria agressões físicas e morais. ‘Márcio’ invadia a minha cela para examinar meu ânus e verificar se ‘Camarão’ havia praticado sodomia comigo. Este mesmo ‘Márcio’ obrigou-me a segurar seu pênis, enquanto se contorcia obscenamente.
Durante este período, fui estuprada duas vezes por ‘Camarão’ e era obrigada a limpar a cozinha completamente nua, ouvindo gracejos e obscenidade, os mais grosseiros”
Certa madrugada, ela escutou uma conversa entre dois de seus algozes em que combinavam como fariam para fingir um atropelamento para matá-la. Para não colaborar com a farsa da “morte acidental”, justificativa usada pelos militares para encobrir os assassinatos que ocorriam sob custódia policial, Inês decide se matar.
“Cortei os pulsos. Perdi muito sangue e, sentindo que que já estava perdendo os sentidos, ocorreu-me a certeza que deveria lutar pela minha vida, porque tinha esperança de denunciar tudo o que ocorrera e, ainda, todas as coisas que presenciei no inferno em que estava”.
Morrendo, decidiu viver. Ela então grita e é socorrida. Graças ao relato que fez quando foi libertada pela Anistia, em 1979, foi possível descobrir a localização da Casa de Petrópolis, a identidade dos torturadores e do médico que os apoiava e confirmar o nome de muitos militantes que passaram pelo local, mas não sobreviveram para contar a sua história.

Frei Tito de Alencar Lima: morrer para se libertar

Frei-Tito-de-Alencar-Lima
Frei Tito, cuja história ficou eternizada no livro Batismo de Sangue, do Frei Betto, e no filme com mesmo nome, de Helvécio Ratton, foi preso em novembro de 1969, em uma cilada que logo depois matou Carlos Marighella. Frei Tito sofreu torturas em dois momentos distintos.
Assim que foi preso, submeteram-no à palmatória e choques elétricos no DEOPS (Departamento de Ordem Política e Social). Alguns meses depois, é retirado da prisão e levado à rua Tutóia, em São Paulo, endereço da Operação Bandeirantes – OBAN, que mais tarde se tornaria o DOI-CODI.
Ali, por alguns dias, o queimam com cigarro, batem sua cabeça na parede, dão choques-elétricos na boca. Fernando Gabeira, que estava preso no mesmo local, acompanha o martírio de Tito. Depois de mais um dia de tortura, o religioso dominicano decide tirar a própria vida. Não aguentava mais as dores e, principalmente, o medo de que outros colegas passassem pelo mesmo sofrimento.
“O preso ao lado pressentiu minha decisão e pediu que eu me acalmasse. Havia sofrido mais do que eu (teve os testículos esmagados) e não chegara ao desespero.
Mas, no meu caso, tratava-se de impedir que outros viessem a ser torturados e de denunciar à opinião pública e à Igreja o que se passava nos cárceres brasileiros. Só com o sacrifício da minha vida isso seria possível”.
A tentativa de suicídio no cárcere foi frustrada pelo socorro dado por seus algozes. Mas algo dentro de Frei Tito já havia morrido. A tortura tinha sido eficiente, não para colher informações, já que Frei Tito nunca delatou ninguém, mas ela havia conseguido dividir sua alma de seu corpo.  Em agosto de 1974, já no exílio na França, Frei Tito se enforca.
Em sua Bíblia, encontram os seguintes dizeres: “é melhor morrer do que perder a vida”.

Anivaldo Padilha: lembrar para resistir. Esquecer para sobreviver

Anivaldo-Padilha
Anivaldo Padilha era um jovem atuante no movimento ecumênico e estudantil, participante da Ação Popular, quando foi preso em fevereiro de 1970, também pela OBAN. Na primeira noite, depois de ser muito torturado, Anivaldo é jogado na cela.
Lá, entra em crise: havia conseguido aguentar a tortura sem revelar nenhuma informação pedida. Mas tinha medo, não sabia quanto mais aguentaria. Sabia que, na tortura, o controle não existe. O suicídio seria a melhor solução. Mas a polícia havia lhe roubado até isso. Procurou por algum objeto cortante e não achou. O cinto havia sido retirado na hora da prisão. Não havia nada para se enforcar.
Então se conformou com a morte e entrou num processo de reflexão.
“Veio na minha cabeça uma retrospectiva da minha vida. Eu não estava ali gratuitamente. Me lembrei de todas as decisões que me levaram até ali. E eu fiquei pensando também porque nas sessões de tortura nunca eu fui torturado por uma pessoa só.
Naquele dia, mais ou menos uns oito tinham passado. Se eles precisam de tanta gente para me torturar, e eu sou fraco fisicamente, é porque moralmente eu sou mais forte. Eles são fracos. Eu acho que tenho condição de resistir.
E tudo isso eu acho que acabou me dando forças. E eu acabei me tranquilizando e dormi”.
Ao acordar, já no dia seguinte, Anivaldo se deparou com uma experiência nova: estava sofrendo de amnésia. Os torturadores o pegaram na cela e recomeçaram a seção de violência e perguntas. Mas Anivaldo mal se lembrava do nome dos pais.

Essas são histórias que fazem parte da nossa história

Boa parte dos chocantes relatos sobre a violência durante a ditadura, como estes descritos acima, estavam no livro Brasil: Nunca Mais. Publicado em 1985, o livro denunciava, com base em documentos produzidos pela Justiça Militar, a repressão política, as torturas, as prisões arbitrárias dos considerados inimigos do Estado, os “terroristas” e os “subversivos”.
Havia uma criminalização de certos setores da sociedade, tais como sindicalistas, operários, estudantes, militantes de esquerda. Para estes “terroristas”, eram sistematicamente negados o direto a ampla defesa, a um inquérito policial isento, a proteção de seus direitos civis e de sua dignidade humana.
Em nome da Segurança Nacional, sevícias eram aplicadas por agentes do Estado, que em tese deveriam ser os protetores da sociedade civil.
Passados quase 30 anos do fim da ditadura militar, o apelo do “nunca mais” não foi comprido. A mesma estrutura judicial e de descaso com setores da sociedade civil permaneceram intactos. A impunidade com os torturadores do passado deu carta branca para a continuidade da violência. Hoje, a população periférica, pobre, negra, e de alguns movimentos sociais, sofrem com a criminalização e consequente desmando da Justiça e violência policial.
Infelizmente, os casos do assistente de pedreiro Amarildo de Souza, capturado, torturado e morto por policiais sob uma falsa suspeita de envolvimento com tráfico ou da Cláudia Silva Ferreira, auxiliar de limpeza que, quando estava indo comprar pão, foi arrastada pelas ruas como um saco de lixo, ambos no Rio de Janeiro, não são exceção.
Ítalo Calvino, no livro As Cidades Invisíveis, tem uma frase que diz: “o inferno dos vivos não é algo que será; se existe, é aquele que já está aqui, o inferno no qual vivemos todos os dias, que formamos estando juntos. Existem duas maneiras de não sofrer. A primeira é fácil para a maioria das pessoas: aceitar o inferno e tornar-se parte deste até o ponto de deixar de percebê-lo. A segunda é arriscada e exige atenção e aprendizagem contínuas: tentar saber reconhecer quem e o que, no meio do inferno, não é inferno, e preservá-lo, e abrir espaço.”
Reconhecer e preservar. O livro do Primo Levi, citado logo no começo deste texto, começa com o poema/oração que também dá nome ao livro: “É isto um homem”. Peço licença para reproduzir aqui integralmente.

É isto um homem?
Vocês que vivem seguros
em suas cálidas casas,
vocês que, voltando à noite,
encontram comida quente e rostos amigos,
pensem bem se isto é um homem
que trabalha no meio do barro,
que não conhece a paz,
que luta por um pedaço de pão,
que morre por um sim por um não.
Pensem bem se isto é uma mulher,
sem cabelos e sem nome,
sem mais força para lembrar,
vazios os olhos, frio o ventre,
como um sapo no inverno.
Pensem que isto aconteceu:
eu lhes mando estas palavras.
Gravem-nas em seus corações,
Estando em casa, andando na rua,
ao deitar, ao levantar;
repitam-nas a seus filhos.
Ou, senão, desmorone-se a sua casa,
a doença os torne inválidos,
os seus filhos virem o rosto para não vê-los.
É preciso lembrar continuamente das violações, do medo, da dor, da violência, da privação. Isso precisa estar guardado em nossos corações. Lembrar é resistir. E não permitir que se repita. Somos nós, homens e mulheres, que podemos mudar essa história.

Ajude o projeto Coratio – 30 anos do “Brasil: Nunca Mais”

Nota do editor: a Ana, autora desse artigo, está com um projeto no Catarse justamente visando manter viva essa noção que devemos ter do que foram as torturas no Brasil na época da ditadura militar e como isso tudo se reflete nos dias de hoje.
CORATIO é um documentário sobre a violência de ontem e de hoje. E o fio que liga o passado ao presente é nada menos que a tortura.
Nosso ponto de partida é o livro “Brasil: Nunca Mais”, cujo lançamento completa 30 anos em 2015. Foi a primeira publicação que denunciava a tortura do Estado, durante a ditadura militar, com base em documentos oficiais. As páginas dos processos de presos políticos relatavam o uso de choque-elétrico, pau-de-arara, de cães e cobras para intimidação, afogamento, ameaças de morte e de estupro e outros inúmeros castigos inexplicáveis e desumanos.
Absurdos.
[...] CORATIO discute por que ainda repetimos os mesmos erros do passado. E se existem novos caminhos pra percorrermos no presente e no futuro.
Sem violência, sem absurdos.
Você pode colaborar com diversos valores e alavancar a realização desse projeto. É só entrar no site do Catarse, ler a proposta completa e ajudar como for mais interessante. O importante mesmo é não deixarmos que esse tipo de ação se repita e, mais, que continue acontecendo.
Ana Castro

Jornalista, doutoranda em comunicação e, principalmente, mãe da pequena Tarsila, que a encoraja a lutar por um mundo melhor. Está produzindo o documentário “Coratio”, que vai contar a história do “Brasil: Nunca Mais”. Se você quiser ajudar o filme a ficar pronto, aqui está a sua oportunidade:catarse.me/coratio


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