Estamos na era do aprimoramento pessoal. “Como” e “melhorar” são os novos mantras: como melhorar a alimentação, como melhorar o trabalho, como melhorar o relacionamento…
Quando aparece a palavra “rim”, é porque o rim não está funcionando bem. Quando se fala muito em paz, é porque não há paz. Se cada vez mais ouvimos sobre desenvolvimento humano, felicidade e transformação, talvez seja por que nunca estivemos tão confusos em relação ao que isso realmente significa.
Ao mesmo tempo em que quase tudo é vendido como transformador, cada vez menos voltamos às perguntas mais básicas: “O que é transformação? Como a gente se transforma?”
Quase não conversamos sobre como a gente se transforma
Quanto mais intensa a experiência (“espiritual”, “transcendental”, “humana”… não importa como a chamamos), menos nos dispomos a descrever internamente como e por que aquilo é realmente transformador – mesmo quando passamos horas detalhando como tudo acontece fora. E menos os outros trucam. Não é raro o diálogo se restringir a uma só fala: “Você precisa conhecer essa comunidade, o trabalho deles é muito profundo!” ou “Renasci depois desse workshop! Foram muitos aprendizados, insights, fichas caindo!”.
Se as falas se estendem, grandes chances de cairmos em algo como “Percebi que tudo é um!”, o que cria uma grande neblina: “Então o que eu preciso fazer para me transformar? Apenas perceber que tudo é um? Ler um livro de física quântica para trocar de paradigma? Como exatamente isso vai reduzir ciúme e ansiedade, por exemplo?”
A falta de diálogo e de linguagem precisa acaba nos deixando sozinhos em meio aos desafios do florescimento humano. Quanto mais becos obscuros, mais facilmente somos enganados por charlatões, por falsos professores, por empresários que se posicionam como gurus, por cientistas com premissas ocultas, por nós mesmos em epifanias e até pela indústria de psicofármacos.
Para iluminar os subterrâneos da transformação humana precisamos voltar para as perguntas mais óbvias. O que é transformação? O que exatamente se altera em nossa mente, nosso corpo, nas relações, no trabalho, na vida cotidiana? Há sinais de avanço, claros e comuns, não importa qual seja nosso caminho? Como podemos descrever e conversar sobre isso com mais clareza?
O limite das mudanças de vida
Para começar o papo, penso ser útil levantar uma confusão muito comum entre dois processos que tenho nomeado — apenas para estabelecer uma linguagem consensual — de mudança e transformação. O problema não se dá no âmbito das palavras: porque chamamos tudo da mesma coisa, perdemos de vista o processo mais profundo (tanto é que nos falta uma boa palavra!).
Quando se fala em transformação na maioria dos casos o que se oferece é apenas mais um tipo de mudança: de estilo de vida, de hábito, de crença, de “paradigma”, de trabalho, de cultura, de visão de mundo, de moradia, de relação, de propósito, de comportamento, de fascinação estética…
Mudamos de relação sem transformar a carência. Mudamos de método de produtividade sem transformar a distração. Mudamos de escritório sem transformar a competição. Mudamos de ansiolítico sem transformar a ansiedade. Mudamos de projeto incrível sem transformar a visão estreita. Mudamos de objetos sem transformar o apego. Mudamos de filosofia sem transformar a ignorância. Mudamos de estratégia sem transformar o medo. Mudamos de casa sem transformar a insatisfação.
Aproxime-se de uma pessoa que já alterou bastante seus hábitos e crenças, que foi de “Você cria sua realidade” a la The Secret para uma visão neodarwinista, do sedentarismo aos esportes radicais, e pergunte o que exatamente ela fez para superar o autocentramento, o ciúme, a dependência emocional… Sem precisar filosofar, apenas observando, descobrimos que é muito possível trocar de hábitos e crenças sem nem fazer cócegas em estruturas profundas de aprisionamento cognitivo e emocional. É possível mudar e melhorar sem se transformar.
Em uma conversa com Luciano Ribeiro, editor do PapodeHomem, ele me disse:
“Organizar e melhorar tudo na vida não significa que você está transformando as coisas. Você pode estar com as contas em dia, um relacionamento gostoso, dinheiro rendendo, corpo saudável, um trabalho dos sonhos… e isso ser apenas uma bomba relógio pois a qualquer momento uma grande aflição pode aparecer internamente ou uma tragédia pode aparecer externamente, e você desabar por falta de equilíbrio e sabedoria ao lidar com as experiências.”
Podemos casar com diversas pessoas e ir carregando junto o mesmo e velho ciúme para as próximas relações. Podemos implementar ações positivas por esforço sem nunca cultivar as qualidades que as tornariam naturais, livres e espontâneas. Portanto, assim como é melhor focar em superar o ciúme em vez de ficar escolhendo o próximo parceiro, é melhor focar em transcender qualquer tipo de crença e hábito em vez de ficar escolhendo as próximas crenças e hábitos.
Experimente agora lembrar de seu passado. Quantas vezes você já mudou? E o que você inevitavelmente carregou a cada novo nascimento? Um exemplo daquilo que carregamos junto a cada mudança: a mesma mente reativa, cada vez fascinada por uma nova história.
Mudamos, aprimoramos, melhoramos, rebuscamos, turbinamos, remediamos, resolvemos, ajustamos, lapidamos, aperfeiçoamos nossa pose, nossa esperança, nosso controle, mas não chegamos no ponto de não mais posar, não mais esperar, não mais controlar. E assim por diante.
As mudanças internas são as que mais se passam por transformação. Antes a pessoa se fixava em uma teoria sobre o que é a vida, agora ela mudou: está fixada em uma teoria mais sofisticada. E o mecanismo da fixação segue intocado…
A gente começa a se transformar justamente quando olha mais de perto para tais mudanças. Liberdade é se condicionar em um novo hábito ou não mais agir por condicionamento? Sabedoria é uma nova crença, uma visão incrível ou é compreender como um referencial se implanta e monta toda uma realidade sólida? Equilíbrio vem de controlar com mais esperteza ou de soltar o controle?
Não é fácil detectar o limite do processo de mudança em uma cultura que promove tantas soluções desse tipo. O site do TED é uma boa amostra desse zeitgeist atual. As palestras, se vistas em conjunto, parecem comunicar uma mensagem assim: “Você quer se transformar? Basta saber disso, estudar aquela pesquisa, ler tal livro, não esquecer daquilo, começar a dormir mais, usar esse novo modelo de pensamento, se exercitar assim, comer isso, fazer tal coisa, implementar tal hábito…”
Mudar de vida é diferente de transformar a vida
O processo da mudança funciona como uma constante busca por novas experiências. Quando alguém diz “Mudei” na maioria das vezes quer dizer: “Troquei de experiência”. O processo de transformação trabalha com toda e qualquer experiência, com cada vez menos necessidade de buscar por novas experiências ou de alterá-las externamente.
Quando eu me proponho a mudar, eu preciso de novas experiências. Quando eu me proponho a transformar, eu preciso apenas lidar com as experiências existentes. É por isso que se diz que os processos de transformação são sutis ou internos: eles dizem respeito ao nosso posicionamento, ao que podemos fazer em absolutamente qualquer situação, independente do que aconteça ao redor. Se você pegar as práticas que envolvem cultivo da atenção, equilíbrio emocional, sabedoria, empatia ou compaixão, nada disso exige uma mudança externa, ainda que possa eventualmente causá-la.
Em geral, trabalhos que focam em mudança acabam sugerindo manipulação de experiências. “Agora que você viu que a felicidade é trabalhar de seu notebook cada mês em uma cidade da Europa, peça demissão!”. Já as abordagens focadas em transformação sugerem um outro começo: “Não mexa em nada. Não peça demissão, não acabe o namoro, não raspe a cabeça… Apenas introduza mais ética, equilíbrio, sabedoria e compaixão, silenciosamente, a cada momento. E para fazer isso seria bom você parar de vez em quando para cultivar, treinar isso por dentro. Com o tempo, a partir desse maior espaço de liberdade, ficará mais fácil andar em alguma direção.”
As mudanças (mesmo as consideradas profundas) operam no âmbito dos conteúdos internos e das aparências externas. Mudar é trocar um condicionamento por outro — às vezes melhor, às vezes pior, mas condicionamento igual. A transformação acontece em outro âmbito: me dou conta que tudo que encontro é coemergente com meu olhar, então começo a trabalhar diretamente em meus olhos.
Um exemplo é a pessoa que percebe que não há culpados para seu ciúme (nenhuma pessoa, nenhuma situação), então ela desiste das mudanças de comportamentos, das estratégias todas, e começa a focar seu tempo em olhar para a operação interna do ciúme. Em vez de olhar para fora com o ciúme atrás dos olhos, tingindo a realidade, ela começa a olhar o ciúme de frente.
Quem propõe mudança vai nos ensinar a virar alguém, sustentar algum tipo de construção, tensionar. Quem propõe transformação vai nos ensinar a parar, relaxar, repousar, reconhecer quem somos e onde estamos, desistir da necessidade de ser alguém, olhar profundamente para nossa condição atual. (Claro, e vai nos ajudar em alguma mudança apenas na medida em que isso seja preciso para começarmos ou avançarmos no outro processo, de transformação.)
Como isso não está nada claro, pessoas que mudaram de vida são reverenciadas como se tivessem descoberto um grande segredo. Pessoas bem-sucedidas, que conseguiram grandes mudanças, são tomadas como referenciais de transformação. Pessoas cheias de ideias legais são tomadas como referenciais de sabedoria. Pessoas que se equilibram em condições externas e crenças otimistas estão ensinando outras a atingir o mesmo equilíbrio. Como? Não oferecendo sua liberdade, mas compartilhando seus condicionamentos: “Acredite nisso, construa-se de tal jeito, vença tal jogo, monte isso ao redor e, pronto, você será bem-sucedido igual eu!”
Um parêntese
Boas mudanças podem favorecer a transformação, mas elas em si mesmo não transformam. Habitualmente costumamos entender as mudanças como suficientes ou como a única opção para quem deseja transformação. Mudanças (como essa de linguagem que estou propondo) não são o problema. Mudanças são muito úteis. O problema é quando uma mudança se passa por transformação, quando achamos que ela é algo maior. É como se eu falasse: “Apenas comece a falar assim e pronto, seus problemas estarão resolvidos!” Parece um exemplo bobo, mas é exatamente assim: quando esse discurso surge com alguma sofisticação, caímos.
Em um processo de transformação, algumas mudanças de vida acontecerão como apoio logístico — por exemplo, você precisará organizar seu trabalho para passar alguns dias em retiro, se familiarizando e investigando como a gente se transforma. E alguns frutos da transformação poderão também causar mudanças, mas isso não significa elas são a causa, o motor, muito menos o objetivo da transformação. São efeitos colaterais.
Produzir mudanças positivas é melhor do que não mudar ou mudar negativamente. Bons hábitos são melhores do que maus hábitos, cultura de paz é melhor do que violência, sonhos benéficos são melhores do que pesadelos. No entanto, em paralelo, melhor ainda se começarmos a acordar. Nosso problema é que conversamos e praticamos quase que exclusivamente os mais variados tipos de mudança, ignorando esse outro processo que aqui estou chamando de transformação.
Mudar é fácil, transformar não é
Um dos piores sintomas da confusão entre mudança e transformação é o discurso de que esse trabalho é algo simples. E tanta gente acredita! É uma tristeza: a pessoa passa décadas se dedicando a diversas mudanças e chega confusa ao fim da vida, sem quase nenhuma transformação. Mudar é ótimo. Mas apenas mudar é limitante, principalmente com aquilo que precisa ser liberado, superado, atravessado, iluminado, transcendido, não apenas remendado.
Praticantes contemplativos dedicam 30, 40, 50 anos de investigação da mente em primeira pessoa para cultivar equilíbrio, sabedoria e compaixão com métodos poderosos sob orientação de professores qualificados dentro de linhagens autênticas que se desdobram há muitos séculos. Mas aí a pessoa chega falando que está “tentando ser menos ciumenta” ou que antes ela era apegada ou impaciente, mas que conseguiu mudar isso do nada.
A humanidade inteira se esforça, todo santo dia, para construir um mundo que dê espaço para o florescimento do potencial de cada ser, uma cultura baseada em uma visão clara sobre as verdadeiras causas da felicidade genuína, uma cultura bem diferente da atual. Mas aí a pessoa chega e diz que o mundo já oferece mil oportunidades e é você que está bobeando, que basta escolher sua vida e ser feliz num estalar de dedos, apenas mudando alguns hábitos e crenças pessoais.
O trabalho da transformação é longo, diário, paciente e muitas vezes sujo. Sem oba-oba, sem fogos de artifício. Trabalho para a vida inteira. E isso não é uma fala bonita ou poética, é verdade: precisamos saber como começá-lo, experimentar, nos apropriar dos métodos e conversar mais sobre como ele acontece.
Caso contrário, vamos apenas mudar de vida, de novo e de novo e mais uma vez, apenas atualizando o software da confusão, enfeitando a mente reativa, aprimorando nosso autocentramento sob diferentes narrativas, lustrando nosso ciúme com romantismo, melhorando e pirando cada vez em uma nova história, uma nova dieta revolucionária, um novo hobbie, um novo look, um novo propósito, uma nova prática espiritual, um novo exercício físico, um novo método de produtividade, um novo insight genial, mais um projeto incrível de crowdfunding…
Mudar no máximo nos levará a uma versão melhorada de nós mesmos.
GUSTAVO GITTI
Professor de TaKeTiNa, autor do Não2Não1, colunista da revista Vida Simples e coordenador do lugar. Interessado na transformação pelo ritmo e pelo silêncio. No Twitter, no Instagram e no Facebook. Seu site: www.gustavogitti.com