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Cearensês: você é o que fala?


Aqui no Ceará, a identidade passa pela linguagem. Não há uma só língua, mas vários tipos de "cearensês". Daí tantos dicionários espalhados. É o nosso "cabra-da-peste" botando "boneco" por aqui e fazendo sucesso mundo afora. Prova disso é o grande sucesso do filme "Cine Holliúdi". O longa está surpreendendo o mercado cinematográfico: em sua segunda semana de exibição, o filme cearense teve um crescimento de 28% nas bilheterias e ocupa a 8ª posição dos filmes mais vistos no Brasil.

Com apenas nove cópias exibidas em 13 salas do Ceará, mais de 100 mil espectadores já conferiram "Cine Holliúdy" nos cinemas. Para se ter uma ideia da força da produção, superou o lançamento de "Bling Ring - A Gangue de Hollywood", de Sofia Coppola. O longa estreou no último dia 9 no Estado e dia 30 irá para várias outras cidades do Norte e Nordeste. Negociações estariam sendo feitas para exibição também no restante do País.

Mas como explicar esse fenômeno? Talvez o jeito peculiar e engraçado de falar, os verbetes, a "arrumação", a molecagem tão característica, cativante. É muita "marmota", gente "amostrada" com esse fervor todo, "mah".

A diversão (antes, durante e depois do filme) é ficar repetindo os termos, rindo de si mesmo: "ai dentro", "ande tonha", "armaria, nam", "só o mi disbuiado". Nessa "gaiatice", ganha quem entende, conhece mais verbetes. Leva um "cascudo" quem não sabe, fica "boiando" na parada.

O filme "Cine Holliúdi" vem como um movimento de autoestima, um ânimo para os nordestinos. As imensas filas nos cinemas e a disputa pelos ingressos à venda são algumas das provas.

Brincadeira

Fã da produção cinematográfica, o jornalista e comediante LC Galleto afirma que esse momento é muito bom para nossa língua porque o cinema tem um poder grande para propagar essa brincadeira que tem alto valor cultural. Questionado sobre o que mais faz rir nesse dialeto "cearês", aponta a naturalidade: o cearense tem um sotaque lento, engraçado. "Preguiçoso não no ritmo, mas quanto aos cuidados com normas. E as gírias completam toda essa marmota", diz.

Por termos a molecagem no sangue, é difícil fazer rir no Ceará? Seria o nosso povo tão exigente? Galleto disse que há uma exigência maior sim, tanto por quem mora aqui quanto para o turista que espera ver o melhor humor do Brasil e rir muito.

Diversidades
Mas, como entender esse dialeto tão típico? Essa comunicação que é interação social, marca cultural? Já em 1967, o historiador Raimundo Girão lançou o livro "Vocabulário Popular Cearense" com 3.058 verbetes. Estudiosa da obra, Maria Silvana Militão, aponta as diversidades tanto regionais quanto sociais. "Não podemos mais manter aquele preconceito de quem fala simples está errado e que só o erudito é certo. Língua não é homogênea. Falamos, no País, o mesmo idioma, mas temos diferenças léxicas e fonéticas. Essa é a nossa riqueza". Sobre as características regionais mais marcantes, ela destaca algumas: o emprego da letra ´r´ apagada no final, o uso do ´r´ onde seria um ´v´ ou ´f".

"A diferença não é deficiência, não há língua melhor ou pior. Ela tem que comunicar, não importa como", reforça a coordenadora do Curso de Letras da UFC, Silvana Militão.

Cinema: em cartaz Flores raras e Cine Holliudy

Petrópolis mais Pacatuba
Cacá Diegues, O Globo
A maturidade de uma cinematografia nacional se mede pela distância entre seus filmes. O contrário disso seria a sujeição a um único gênero, o tédio imperdoável da representação única de um país. Nada mais inapropriado para o cinema brasileiro, fabricado num vasto território cuja grande vantagem civilizatória é a diversidade de manifestações regionais, étnicas, culturais, suas diferentes geografias física e humana. Mais do que uma forçação de barra, seria um crime cometido contra nós mesmos. Um suicídio cultural.
Um exemplo dessa saudável distância em um mesmo universo está em cartaz no país. De um lado, o belo e sofisticado filme de Bruno Barreto, “Flores raras”; na outra ponta desse mesmo espectro, “Cine Holliudy”, a surpreendente comédia antropológica de Halder Gomes.
“Flores raras” conta a história do encontro entre a poeta americana Elizabeth Bishop (Miranda Otto), ganhadora do Prêmio Pulitzer de poesia, e a arquiteta brasileira Lota de Macedo Soares (Glória Pires), criadora do Parque do Flamengo, no Rio de Janeiro da passagem dos anos 1950 para os 60.
Com uma encenação luminosa e delicada, Bruno Barreto não só nos narra a história dos sentimentos entre essas duas mulheres formidáveis, como nos traça também um impecável retrato da sociedade carioca e brasileira daquele momento de transição.
A Bishop cai na malemolente teia sedutora do Brasil quase que por acaso. Ela veio apenas visitar rapidamente uma amiga brasileira que, naquele momento, vive com Lota em Petrópolis, e acaba se apaixonando por essa.
O que o filme nos mostra não é apenas a densa história de amor entre as duas mulheres; mas também a difícil conquista da poeta contrariada, pelo país que observa com imenso espirito crítico, como alguém que reage à atração por algo que sabe que não lhe fará bem.
Essa droga cultural do excesso e do jorro vicia Elizabeth, que, já vivendo no país, escreve esse verso irritado e contundente, no poema “Questões de viagem”: “There are too many waterfalls here” (numa tradução livre, “aqui tem cachoeiras demais”).
Inaugurando sua carreira internacional no último Festival de Berlim, “Flores raras” ganhou o prêmio de público da sessão “Panorama”, repetindo a mesma premiação em Tribeca (Nova York), Los Angeles e San Francisco. Agora está em cartaz por todo o Brasil.
Um filme que é também de Lucy Barreto, criadora do projeto e sua produtora, “Flores raras” é mais do que o retrato de duas grandes mulheres apaixonadas (no qual se destaca a interpretação visceral de Glória Pires).
Ele é também a história de uma tragédia cultural, da incapacidade de alguém se entender com um mundo em mudança, diferente do seu. Com solidariedade crítica, Bruno Barreto nos dá esse belo filme em defesa da diferença e da necessária tolerância, do universo privado ao público.
Na outra ponta desse nosso cinema, Walder Gomes, cineasta cearense, dirigiu e produziu “Cine Holliúdy”, que por enquanto se encontra em cartaz apenas em Fortaleza e mais algumas cidades do Ceará, onde foi realizado na cidade de Pacatuba.
Inspirado em curta-metragem de seu diretor, uma comédia que não tem nada a ver com as comédias urbanas do eixo Rio-São Paulo que estamos acostumados a ver, “Cine Holliúdy” reinaugura com inteligência e perspicácia um gênero regional que já foi cultivado por Amácio Mazzaropi, por exemplo.
Falado em “cearensês” com legendas em português, esse filme nos conta a história de Francisgleydisson (“nome tão cearense”, diz um personagem), um amante de cinema que tenta resistir à chegada avassaladora da televisão ao interior do Brasil, naquele início dos anos 1970, outra data de grandes mudanças culturais.
Mais do que uma comédia despretensiosa, “Cine Holliúdy” registra uma antológica coleção de personagens originais e seu comportamento. Francisgleydisson (Edmilson Filho, comediante digno da tradição cearense de Chico Anísio e Renato Aragão), instalando uma sala de cinema em Pacatuba, se cerca de moradores que vão do prefeito ao bêbado da cidade, do chefe da oposição ao cego que pretende ver o filme (um genial Falcão, o cantor, de cujo personagem alguém diz que “pelo menos ele não paga nada à vista”), num empolgante corte antropológico de certa civilização brasileira nem sempre visível a todos os olhares do país.
“Cine Holliúdy” já foi visto por quase 200 mil espectadores, só no Ceará, e chegará em breve às salas do resto do país. Com uma média de 2.300 espectadores por cópia, o filme de Halder Gomes bateu o recorde local de “Titanic”.
Barato, mas sem perder nada de sua qualidade técnica, cheio de curiosos efeitos especiais, “Cine Hollyúdi” é um exemplo de que o cinema se faz de várias maneiras, e em todas elas o filme pode ser bom. Nesse caso, ele estimula a multiplicação dos editais de BO (baixo orçamento) promovidos pelo Ministério da Cultura, cada vez mais bem-vindos.
“Cine Holliúdy” e “Flores raras” são testemunhas excepcionais da vitalidade do cinema brasileiro e das diversas opções que ele tem pela frente. É preciso ir vê-los.

Filme: Cine Holliúdy

Queres ser universal, cante tua aldeia
O filme é falado em cearensês e legendado em português do Brasil
Marco St